38x14 Nick

Imagem: TingTing Huang

"tudo bem. era só ter perguntado, eu não mordo b., apesar de parecer. podemos ir pra qualquer lugar, andar, conversar, essas coisas. até quarta da semana que vem estou livre o dia todo.
onde você gostaria de ir? eu não sei que tipo de lugares você gosta de ir, na verdade eu não sei muito sobre você mesmo rsrs.
não pire por causa disso, não vale a pena criar expectativas demais pq sempre nunca vai ser como imaginamos e só descobrimos o significado de tudo bem depois. não que tudo será uma droga, mas tudo que é espontâneo é mais legal e sincero.
não sei quando entrará novamente online, então se quiser me ligar tudo bem, tem meu número."


O que aconteceu entre a gente?
Quase 3 da manhã, eu tô ouvindo a sua voz, eu tô te imaginando tocar, eu tô tentando me lembrar onde é que a gente desandou.


Dizem que minto.
Que eu não confio em ninguém.
Foi isso?
Foi isso o que você quis dizer quando me acusou de ser incapaz de conversar sem máscaras?


Você partiu meu coração também, muito tempo atrás.
E eu sobrevivi.
Eu sobrevivi.


É isso o que importa? É essa a moral da história?
Que todos os amores que parecem infinitos, eternos, podem chegar a um fim?
Que a dor passa?


Essa moral não me satisfaz.


Vênus retrógrado ou não,
eu tô me coçando de vontade de saber
se poemas ainda te fazem dormir.


Eu quero saber se, no dia dos namorados, você quer sair por aí pra cuspir na cabeça das pessoas ou se você anda de mãos dadas, se traiu nosso movimento.


3 horas já e eu queria te mandar mensagem, e-mail, eu quero te mandar umas poucas palavras, enigmáticas, eu quero te chamar pra sair um dia desses,
cinema?
sorvete?
o bendito show?


Não sei, sei que quero te ver.
Quero ouvir da sua boca aquelas suas coisas de quem sabia tudo, você ainda sabe tudo?
Ou será que você nunca soube de nada?


Calma, eu não vou te escrever.
Não vou te ligar,
nem mesmo pra saber o que é que você tem escutado ou pra qualquer uma dessas coisas que envolva sua boca suja de sorvete, as estrelas e meus all stars.


Eu só tô curiosa,
acho que sinto falta, mas não é de você.


Eu sinto falta da sensação de querer tanto te ver, desesperadamente,
e sentir medo disso.
De ter que esconder parte do que eu sentia pra não te assustar,
do nosso primeiro beijo com gosto de via láctea,
e do seu abraço quando peguei o ônibus pra voltar pra casa.


Eu sinto falta de estar apaixonada por você,
e isso não justifica mensagem nenhuma,
uma invasão da sua vida ordeira de capricorniano
e as brigas que provavelmente teríamos.


Eu te mandaria mensagem agora,
manipularia um encontro,
eu te faria gostar de mim, eu me tornaria o teu autorama se pudesse
mas não faria sentido.


Não faria sentido.


Então eu saio depressa do meu e-mail antigo, cheio dessas memórias de nós dois, mas tão poucas memórias que eu nem sei se fomos mesmo felizes, eu quero saber mais, eu quero te ver de novo, eu quero segurar a sua mão pra atravessar ruas e lugares escuros, eu quero fugir de casa pra te ver--
mas eu não quero realmente
Eu quero a sensação de querer fugir de casa pra ver alguém, quero enfrentar meus medos, inventar nós dois, eu quero a expectativa de segurar sua mão enquanto assistimos filmes.


Mas isso você não pode me dar,

pode?

38x13 50/50

Imagem: TingTing Huang

Estudei a manhã inteira, a noite inteira.
Dia de prova,
matei aula,
e estudei, estudei.

Fiquei nervosa,
mas escrevi em todas as páginas, furiosa:
uma criança tentando ganhar uma sandália de brilhos.

Eu tô feliz.
Hoje. Inexplicavelmente.
Dou risada de tudo e danço,
eu danço.

Meu cabelo está seco, murcho, mas a gente tá bonito.
Chove muito e eu tudo
e eu muito

E eu saudade,
leio um livro,
como demais
eu jogo
e assisto uma série
mando milhões de áudios,
eu BERRO

e rio nas escadas
que dia bonito.
Que chuva incrível,
essa música.

Eu sou toda amor,
eu quero o teu bem.

Pégaso me diz "Você tá assim 50% do tempo"
e eu sei do que ele tá falando
porque eu tenho medo, muito medo, dos outros 50%

Eu tenho que viver agora, eu tenho que aproveitar esse lado dos 50%
Pra comer um pão, que gosto maravilhoso de pão
eu tenho que cantar
tenho que rir, eu tenho que amar a senhorita agora e
dançar
me deixa cantar em voz alta, rouca, desafinada

Saio correndo na chuva,
eu pego um barco,
eu molho meus tênis,
eu corro pra te ver
eu preciso te ver,
eu preciso me ver

Eu quero estar aqui, agora
eu quero sentir esse gosto,
essa chuva,
esse medo,
essa vergonha,
eu quero essa risada,
esse som,
a música me assombra,
Tô maravilhada, minha boca forma um O,
tô boba,
bato palmas e seguro nas suas mãos,
eu fico na ponta dos pés
e danço esse menino magrelo e cabeludo, meio sonolento, meio barbudo, meio lindo, meio meu
deixo que ele arrepie os cabelos da minha nuca
e deixo a chuva chover
o povo se atrasar

Eu não vou dormir,
eu vou cochilar
sozinha,
no meu sofá,
não vou te contar sobre o meu dia, mas eu vou piscar,
iluminar,
e as pessoas que me amam vão se sentir amadas
porque eu só quero dividir essa sensação.

Eu só quero que essa sensação dure,
só essa
por dias e dias a fio, sem parar
quero tocar as pessoas e contagiá-las

e alguém vai dizer que isso que eu tenho,
isso é doença
isso não é rebeldia, não é um dia bom,
isso é a química errada do meu cérebro
mas ai
ai
me deixa mudar a química do teu cérebro e te ensinar exatamente o que é estar feliz
porque é lindo
as cores
as pessoas
o cheiro da chuva
e o ruído da voz desse magrelo barulhento que eu amo tanto.

Eu quero aproveitar até a última gota desses 50%
porque eu não tenho a menor ideia
de que lado dos 100% eu vou estar amanhã.

Então corro na chuva, crio uma coreografia pra lua,
eu vou morrer de pneumonia,
mas tudo bem se a gente se casar agora,
se você me beijar só um pouquinho

porque eu não sei quem eu vou ser amanhã
mas o que importa é hoje.

Agora.

Vem?

38x12 Won't you stay with me?

Imagem: TingTing Huang

A gente volta tarde e eu só quero te beijar. Por que?
Por que você não vai embora e me deixa sozinha, desaparece do mundo, da minha vida, da minha cabeça, do meu corpo?

Beija a minha boca e meu corpo todo acende, elétrico. Back against the wall, você tira meu cinto de segurança, seu cinto de segurança e eu não me sinto mais segura.

Eu preciso ir pra casa, almoço fora amanhã, mas eu não quero ir, eu quero subir, quero te agarrar nas escadas. quero te beijar enquanto você abre a porta e entrar aos tropeções na tua casa escura.

Subimos e eu rio, bêbada, dizendo olá a toda e cada silhueta de objeto na penumbra, enquanto você tira a camiseta e a minha blusa.
Me joga na tua cama e ela faz um ruído engraçado, e a gente ri, sem parar de se beijar.

Você me olha com aquela cara, como se nada tivesse mudado entre nós e eu percebo,
que merda,
que tô sóbria demais pra fingir que tá tudo bem.

Você continua, como se nada mais importasse, como se não tivéssemos nos abandonado e nos arruinado, mas eu já não consigo mais. Sou a velha B. de novo.
Peço que você pare e você pergunta o que houve
"É que isso é errado de tantas maneiras que eu nem sei por onde começar a listar".

Você suspira, mas entende, e deita do meu lado, seminu, sem saber o que dizer, o que fazer.

Eu me levanto pra pegar minhas roupas jogadas pelos cantos e ir embora pra casa tentar entender o que é que eu tô fazendo com a minha vida.
Mas você segura a minha mão.

- Fica. A gente não precisa fazer nada.

E eu normalmente não acreditaria, eu riria na sua cara. Mas eu quero ficar.
Eu quero ficar e conversar até dormir. Acordar de manhã e sair pra comer pão de queijo. Dar umas risadas, escovar os dentes com o dedo.
Eu quero olhar seu rosto quando a manhã chegar.
Eu quero.
6 de espadas invertido, eu tô tão presa à você, à essa ideia errada de que a felicidade se recupera no lugar onde foi perdida, que eu não consigo enxergar mais nada.

Mais ninguém.

Eu quero ficar.
E é por isso que pego as minhas roupas
 e vou embora pra casa,
pra tentar entender o que é que eu tô fazendo com a minha vida.

E falhar miseravelmente.

38x11 Solo

Imagem: TingTing Huang

Não dá.

Eu tento, levanto da cama, escolho uma roupa. Não dá, não dá.
Eu não quero ver ninguém.
Quero ficar sozinha no apartamento vazio, quero todo esse ar só pra mim e, ainda assim, não é o bastante. Nunca tem ar suficiente.

Eu grito pras pessoas se afastarem, chegarem pra trás, mas elas não chegam e o ar não é suficiente.

Alguém me pede algo, e eu dou. E de novo, e de novo. Mas eu não tenho mais nada pra oferecer.
Eu não tenho nada pra oferecer. Digo isso, repetindo as exatas palavras que você me disse em janeiro, e sinto nojo de mim mesma. Não por tua causa, mas porque eu me deixei adoecer. Eu, logo eu, a mulher mais forte de todo o universo. Todos os socos na cara que você me deu, as suturas que eu mesma fiz sentada no chão do banheiro de madrugada, quando ninguém podia ver e, mesmo assim
você levou a melhor.

Porque eu não tenho nada pra oferecer.

Mas eles não acreditam em mim, ninguém me escuta, presta atenção, prestem atenção
Eles não me escutam.
Elas não me escutam.

Eu não posso, hoje não.

Mas ele precisa de uma amiga, ela precisa de alguém responsável, alguém precisa de mãe, de tempo, de um documento, roupa limpa, espaço, consolo, companhia, conselhos, amor.
Não, não.
Não pode ser outra pessoa?
Tanta gente no mundo com tanto pra oferecer e você bate à minha porta no meio da noite
mas eu não tenho nada pra oferecer.

E eu tento, eu juro que tento.

Eu pego a sua mão, eu digo o que você quer ouvir, eu digo o que você quer saber, eu cumpro o meu papel, eu abro a porta, eu lavo a louça, tomo um banho, eu finjo que tá tudo bem, eu sigo o protocolo dos últimos 15 anos, mas você quer mais.
Você quer mais.
E eu não tenho mais.

Você quer o meu bem, me quer saudável, limpa, sóbria, quer beijar a minha boca, dormir de conchinha, quer que eu ouça, quer que eu seja alguém, quer que eu tenha tempo, quer que eu tenha amor pra dar e eu não
eu não posso.

Eu não posso.

Então eu ajo impulsivamente, te chamo pra sair e
me falta o ar
dou pra trás
invento desculpas
e eu sei que tô te afastando, que tô te magoando de novo

Mas eu não tenho nada pra oferecer
Presta atenção
Me escuta
Eu não tenho nada pra oferecer
Seguro a sua cabeça entre as minhas mãos e tento gritar
Mas não consigo respirar

E eu sei que você entenderia se eu te explicasse
Eu sei que você daria o seu melhor
e tentaria me curar
e tentaria cuidar de mim

Mas eu não quero melhorar,
eu não quero a tua ajuda
eu quero espaço
eu quero ar
quero quebrar minhas costelas e deixar que meus pulmões se expandam até que eles explodam

Isso é tudo o que eu quero.

Eu tento te explicar, eu tento te contar
mas você não me escuta
ninguém me escuta,
eles continuam esperando, me tocando, me chamando,
me ligando

Você não entende,
ninguém entende.
Então eu me sento, abraço meus joelhos e tento respirar.
Mas não consigo.
Não com todos vocês em volta.

E eu sei que preciso fazer alguma coisa.
Mas eu
eu não tenho nada a oferecer.

nem mesmo pra mim

38x10 Pra me machucar

Imagem: TingTing Huang

Chego em casa tarde, respondo às mensagens, desabafo com Elspeth, deito no colchão: está na hora de me machucar.

Coloco pra tocar minha playlist, Cat Power, The 1975, ANA, Mila Cavalhero

E abro os pulsos, mas não é o bastante.
Fico fraca, boca seca, tonta, meu coração quer sair pela boca. Mas não é o bastante. Não dói o bastante.
Abro uma ferida antiga e enfio o dedo lá dentro. Mordo uma toalha de rosto, filha da puta, dói pra caralho, mas não dói o suficiente.

Eu tento dormir, e eu quase consigo, porque é só o que consigo fazer. Mas não dói o suficiente.
Saio pelas ruas à caça de alguém que queira me bater, partir a minha cara, alguém que me odeie, a quem eu possa empurrar, que vai revidar.
Mas não encontro ninguém e isso me deixa agoniada.

Alguém me diz alguma coisa
e eu não sinto nada.

Enfio a cabeça debaixo da água e tento ficar lá, mas o instinto de sobrevivência do meu corpo é forte, resiste. Eu resisto.
Só quero me machucar, eu não quero morrer.
Eu quero sentir.

Dou um tapa no meu rosto e não dói o suficiente.

Então eu faço o que esperam de mim, eu vou atrás de você, eu quero me machucar, eu quero que você me machuque, vamos lá, vamos lá, dê o melhor de si, venha, com tudo, com toda a força, mas você também tá cansado e suas palavras não me machucam.
Porra, suas palavras não me machucam.

E eu preciso que você me machuque.
Você pode fazer melhor do que isso, pode me cortar em pedaços.
Eu coloco meu coração na tua mão, e você aperta
e até dói, mas não é o suficiente.
Não é o suficiente.

Então eu bebo, eu bebo pra não ter que pensar na dor que eu quero sentir, que eu preciso sentir, que eu mereço sentir
e já tô passada de bêbada quando começo a ouvir a tua voz, Otto
me falando sobre ossos quebrados e me explicando, devagarinho, que não é de dor que eu preciso, que não é dor que eu tô procurando, é só a minha tradução que tá meio confusa.
Diz que não é dor que eu quero, que eu quero
que eu quero

mas eu não tô pronta ainda, Otto.
Não, não, pra isso não.

Ainda não.

38x09 Porque sim

Imagem: TingTing Huang

Estive pensando.
Por que a gente se apaixona por quem se apaixona?
Eu não tô falando de MHC, de química, das memórias, das células, dos astros.
Porque isso eu até entendo, entendo de seguir padrões, até acredito em destino.

Mas por que ele?
Por que eu?

Eu entendo a sua solidão, entendo tanta coisa,
mas não entendo essa ideia errada de que eu posso ser mais do que a menina estranha no fundo da sala.
Gosto do meu corpo, do meu cabelo, do meu beijo,
mas pelo amor de Deus,
você já me viu de manhã, em segundas feiras terríveis, muitos bad hair days.

Não sou eu essa sua garota dos sonhos, não tenho o corpo bonito, não sou sexy, não sei conversar.
Eu não sei ser boa.
Eu não sei fazer cafuné.

Olha cá, meu bem,
eu vou ser honesta,
não sei nem gostar.

Não entendo essa sua mania de gostar de mim porque sim.
Por que?
Digo que é vontade de companhia, de atenção, que é tudo o que eu tenho pra oferecer.
Porque é só o que posso dar.
Eu não tenho aquela coisa que as pessoas amam, não tenho aquela coisa incrível que as garotas bonitas e seguras têm.
Só tenho mesmo esse cabelo bagunçado, essas olheiras e minha mania de me vestir como eu quero. E essas unhas do pé pintadas de cor de rosa.

Eu sou cheia de regras, de mistérios
e ninguém sabe nada sobre mim.
Como é que você ousa gostar de mim?
Com todas essas dificuldades, meu quarto bagunçado e minha mania de não enxergar um palmo além do nariz?

Como é que você pode me amar sem me ler nas entrelinhas, sem saber que eu tô explodindo por dentro, incerta,
sem jamais ter ouvido a história de como eu um dia fiquei seminua em público. As histórias haha, porque sou dessas.
Como é que você pode me amar sem nunca ter me visto usando meu vestido azul? Ou sem que eu tenha te olhado do meu jeito estranho, sem que a gente tenha contado um pro outro sobre as coisas estranhas que a vida pode trazer?

Me perdoe, mas não entendo, não aceito.
Não existe gostar de mim porque sim.
Quero motivo, razão, circunstância pra essa insanidade, quero deitar vocês no meu divã e questionar cada pormenor dessa história, quando é que começou?
Eu disse algo que fez com que vocês pensassem que eu era normal, que eu era gostável?
Quero tirar essa ideia da cabeça de vocês, passar remédios pra esquecimento, pra anestesiar a dor que eu possa vir a causar.

Porque eu não consigo gostar de ninguém, eu não consigo nem me imaginar gostando de alguém, tocando alguém.
Eu só consigo me imaginar sozinha, quieta. Distante de tudo, de todos, insensível, civilizada.
E você pode até me perguntar
Por que?

Mas fique sabendo,
a resposta que tenho pra dar só pode ser
"Porque sim".

Porque sim.

38x08 Sketch

Imagem: TingTing Huang

Ela me olha, os olhos vazios, o coração partido,
partido tantas vezes, em tanto pedaços, que ela até já perdeu a conta.

Eu tento te detestar e não consigo, eu nem quero conseguir, quero te abraçar pra aplacar a dor imensa que é não ser amada por quem a gente ama.
Crueldade pura, visceral,
eu seguro os cabelos dela enquanto ela vomita, vômito negro, escuro, sangue e mágoa.

Levanto a mão no meio da aula e pergunto à professora se, algum dia, isso passa.
A gente aprende?
A gente para de querer sofrer?
E ela me olha sem entender, responde que não. Responde que a gente vai sofrer pra sempre.

Ela deita no chão, encosta o rosto no azulejo frio desse colégio escuro que é o cenário dos meus pesadelos recentes,
e eu quero dizer que vai ficar tudo bem.
Eu quero dizer que amor
eu quero dizer que amor
mas dói muito, meu Deus, dói muito
e nada que eu diga a ela vai fazer passar, porque nada do que me disseram foi capaz de fazer com que melhorasse.

A dor é contínua, difusa,
alguém vem e te pede pra descrever,
vem tentar te curar.
Às vezes, ninguém vem, e a gente fica se rasgando em pedaços de carne,
se machucando e se odiando, fazendo a boca sangrar e só parando quando a dor física consegue superar aquela outra dor. (O que não é fácil de conseguir, tem que estar disposto a fazer muita coisa)

Eu quero dizer a ela que entendo,
mas não sei como fazer isso sem contar pra ela que ela já me deixou nesse estado,
que, por causa dela, eu vomitei sangue e mágoa num vaso branco e sujo, apoiada no chão, sem ninguém que me segurasse os cabelos porque eu não podia demonstrar fraqueza.
Eu não posso dizer isso,
então não digo nada.

Só fico lá, segurando os cabelos dela com firmeza,
pra que ela possa vomitar todos os últimos meses,
os últimos anos,
cada vez que escutou uma ofensa, cada vez que alguém a tocou ou agiu como se ela fosse algo garantido.
Eu a deixo vomitar cada paixão que não foi pra frente, eu aliso as costas dela enquanto ela vomita chamando seu nome de um jeito que você não foi capaz de fazer, desvio o olhar quando ela não para de dizer seu nome,
porque eu também me sinto assim.

Ela vomita tudo o que tem de ruim, suja o chão, o vaso, meus pés, seus joelhos.
Nada a ser feito sobre essa sujeira, sobre nós, sobre eles, então eu a ajudo a se levantar, a se limpar. Lavamos as mãos, retocamos a maquiagem e ela sai primeiro, altiva, natural, como se aquilo não fosse nada.
Normalmente, eu faria o mesmo.
Mas não hoje, não.
Eu me apoio na pia, me olho no espelho, e eu sei que não quero mais isso.

E eu sei que estou de saco cheio das noites em que passo deitada do seu lado da cama, esperando que você volte. De me sentar ao seu lado e tentar chamar a sua atenção, enquanto você me ignora deliberadamente, de te ver olhando as outras garotas quando saímos juntos, de perceber que você não está lá quando estamos juntos, ouvir histórias sobre como você se diverte infinitamente mais quando não estamos juntos, te ver saindo com outras garotas e me procurar só nos seus piores momentos, todo sujo e machucado. De tentar te encontrar em outras pessoas que tem muito mais a oferecer do que uma cópia das suas melhores características. De perceber que você não se lembra quem sou eu.

Uma garota entra no banheiro, olhos inchados, meio pálida
e eu quero dizer algo, eu quero ficar e ajudar. Mas eu também preciso de ajuda, da minha ajuda.

- Você 'tá na fila? - ela me pergunta, apontando para o reservado de onde Lucy e eu acabamos de sair.
Olho pra ela, e ela sou eu, uma garota como eu, passando por uma dessas coisas pelas quais a gente não precisa passar. Não, definitivamente, ninguém precisa passar por isso. Mas não é algo que eu possa dizer a ela agora.
- Não. Pode usar.

Saio do banheiro correndo e vou pra casa.
Vou pra casa e sussurro baixinho, no escuro, pra que só Lucy possa ouvir, onde quer que ela esteja, com quem quer que ela esteja, porque só ela vai me entender agora, sussurro que a gente merece mais, sussurro um feitiço curto pra que, só hoje, só hoje
possamos dormir um sono tranquilo,
sem sonhos,
sem aquele medo costumeiro
de que não haja ninguém por aí que vá nos amar.

Amanhã, a gente sofre de novo.

38x07 Sábado

Imagem: TingTing Huang

"Me diz que me ama"

Ela sorriu.
O que acontece com essas mulheres, o que elas comem que faz com que elas sorriam assim?

Tomo meu café, enquanto ela ri dessa mensagem que recebeu no whatsapp, e não me diz de quem é, não me diz o que foi. Sinto ciúmes, mas não pergunto nada.

Coisas assim me lembram: não sou o seu dono.

Me levanto da mesa e levo a louça até a pia, bem comportado, quero que ela repare, quero que ela me elogie, quero um beijo na boca como agradecimento, mas ela não diz nada.
Se espreguiça e seu cotovelo estrala, boceja, bagunça ainda mais os cabelos amassados de travesseiro, depois ajeita a camiseta branca amassada, a minha camiseta branca, como se fosse sair daqui a pouco. Meu Deus, eu a amo e ela é a coisa mais linda que já vi.

Essa percepção me deixa aterrorizado, paralisado. Eu a amo, de um jeito que parece, e eu sei que só parece completamente novo. Tento ser racional, tento argumentar comigo mesmo enquanto lavo a louça, eu já me apaixonei antes. Sempre parece a primeira vez. Dessa vez, também parece diferente. Mas não é.

Tento dizer isso pro meu corpo, mas ele fica todo trêmulo quando ela se aproxima por trás e encosta o nariz gelado na minha nuca. Me abraça pelas costas pra colocar seu copo e prato na pia e me beija as costas, sem deixar de me abraçar. Me diz alguma coisa engraçada, pra me convencer a lavar sua louça também, e eu lavo. Eu lavo e me sinto grato por poder lavar a sua louça, beijar a sua boca, dormir na sua cama e ser a primeira pessoa que você vê pela manhã.

Ela corre pro banheiro, ouço a descarga, ouço o chuveiro ligando. Roupas jogadas no chão, sujas e limpas, tudo misturado no meio do caos, e eu cato as roupas como se catasse pedaços dela, junto em um montinho no canto do quarto e me lembro de quando era criança e minha tia me elogiava porque eu era tão organizado, tão limpo, tão educado. Estou apaixonado pela antítese e mim. O caos. Isso me lembra um trecho de um livro de mitologia grega que li quando adolescente "Primeiro, havia o caos". Soa certo, deito na cama quentinha e rolo para a ponta dela, esquerda, sempre a esquerda. Tem o cheiro dela, de condicionador e essa coisa, essa coisa que é só dela.

Sinto uma coisa estranha, faço um esforço imenso pra respirar. Como é que eu vou viver com isso, como é que eu posso fazer isso, o que eu faço com isso tudo, com essa sensação insana de que eu não posso mais viver sem ela?
Isso tá errado, isso não é amor, isso é assustador, é bizarro, é

Ela sai do banheiro, usando calcinha e sutiã descombinados, secando o cabelo com uma de suas técnicas secretas de secar o cabelo e me pega olhando pra ela, embasbacado, assustado. Me pergunta se vi um fantasma. Digo que não. Uma barata, então. Digo que não tenho medo de baratas. Ela diz que tem medo, um puta medo, mas que não é medo, é nojo, que se mistura com medo e vira um pavorzão. Conta uma história sobre um pesadelo que teve com baratas. Adoro quando ela conta histórias.

Ela fica empolgada com as próprias histórias, para pra rir e arregala os olhos de um jeito como eu nunca vi ninguém arregalar os olhos. Eu quero ouvir todas, todas as histórias, quero conhecer cada pedaço do seu corpo e cada fragmento da sua memória, por favor, me deixe fazer parte de tudo o que aconteceu antes de nós dois.

Ela continua a falar, alheia ao fato de que eu me desespero, e eu fecho os olhos pra me concentrar só no som da sua voz. Ela para de falar, pensa que dormi, e eu deixo que pense assim. Eu não quero que ela saiba, ainda não. Sou humano, um desses humanos que acha que é ruim demais quando as pessoas sabem o quanto gostamos delas, que é até errado que elas saibam.

Deita na cama, com cheiro de desodorante, condicionador, creme de pele, protetor solar, sabonete e pasta de dentes, uma mistura doida que dá certo no corpo dela, e me beija na boca. Me beija a boca. Como isso soa bem quando estamos apaixonados. Me beija a boca. E beijo de volta, com toda a intensidade permitida nas manhãs de domingo, e eu quero dizer, eu quero sussurrar entredentes que eu a amo mais do que já amei na vida toda, que o corpo dela é a única coisa que me faz sentir seguro, que eu não quero que ela me deixe, eu quero ficar assim pra sempre, aqui, pra sempre.

Abro os olhos e olho diretamente nos olhos dela. "Diga que me ama"
Então espero, olhos nos olhos, enquanto o mundo inteiro passa por trás dos olhos dela, sem que eu saiba em que ela pensa. "Diga que me ama"
Mas ela se levanta, ajeita o cabelo, ajeita as roupas, me diz que a gente vai se atrasar se eu não for tomar banho logo, sai do quarto e me deixa sozinho, perdido em dúvidas, pensamentos e insegurança.

Caos.

38x06 Limpeza de outono

Imagem: TingTing Huang

Caro David,

eu não sinto dor.
Eu não sinto nada.
Sempre achei que fosse estar satisfeita quando esse momento chegasse, mas não estou, eu nunca estou.

Um homem me disse que o luto tinha acabado.
Me disse pra voltar pra casa, doar as roupas velhas do meu marido morto, pra jogar fora os papéis, sua escova de dentes, parar de dormir com suas camisetas. Pra tirar a aliança.
Ele me disse pra aceitar, e eu percebi que eu não tinha mais que aceitar nada. Tudo já me tinha sido imposto: aprendi pela pedra.

Casca grossa, dura. A vida andou me lixando e me deixou assim, não tenho como chorar, não tenho razão pra ficar ou pra responder a mensagem, eu não quero encontros furtivos, eu não quero migalhas e não quero uma tábua de ouija. Eu não quero não ouvir a verdade, eu não quero não encarar de frente o que eu não queria ver, o que eu não queria saber.

Eu não tenho força de vontade pra fechar a boca, e engulo seco o que suponho ser a exata dose que eu posso aguentar.
Fumo um cigarro, só um. Só um, pros dias ruins de verdade.

Pego um saco de lixo, e vou colocando as coisas dele, uma por uma, uma por uma.
Tá na hora de seguir em frente, de parar de achar que isso é tudo o que eu mereço.
Encho o saco, tô com o saco cheio, tô de saco cheio
e jogo tudo em cima do guarda-roupas, por receio de jogar fora.
Ainda não.

Não é que eu vá me arrepender, só tô dando um passo de cada vez, quero fazer tudo de caso pensado.
O verão tá chegando ao fim, e o luto também.
Mal posso esperar pela chegada do outono.

Entende o que quero dizer?

Com amor,
B.

38x05 Nau frágil

Imagem: TingTing Huang

Deito no chão de madeira, fecho os olhos.
O professor me pede pra imaginar coisas, meditar.
Não consigo.
Mente a mil por hora, acelera até a velocidade da luz, eu tô quicando.

Durmo, e isso é um bom sinal.
Ou não?
Não sei, porque durmo 14 horas seguidas, depois acordo e não consigo ficar acordada.
Meu médico dizia que, se eu tô dormindo, então é um bom sinal, nesse contexto.
Mas não sei se é.
Eu tô doente?
Pego o telefone, mas não tenho pra quem ligar.

Tô sentindo
Tô me sentindo fragmentar, como se meus dedos estivessem se separando do meu corpo, como se meu cérebro corresse em direções diferentes, minha boca, meus olhos caem enquanto corro e vou deixando pedaços de mim pelo caminho torto que sigo.
Eu sento.
Respiro fundo, 1,2,1,2,1,2

Mas não adianta, adianta?

Eu sinto isso vindo na minha direção, como se eu pudesse prever uma batida de carro fatal, eu a vejo vindo e isso me deixa agoniada.

Durmo.
Durmo, durmo, durmo, durmo, durmo, durmo, durmo
Faço listas.
Faço listas o tempo todo, começo a criar regras novas, regras pras coisas, pras pessoas, eu preciso de regras, eu preciso ficar aqui nesse quadradinho, estável, completamente estável, segura e sã. Não posso sair, não posso sair.
Durmo.
Tenho que estudar, mas não estudo.
Eu não quero estudar.
E isso me deixa agoniada, porque eu não quero.
Porque tocar nos livros me dá engulhos, eu não quero.

Minhas unhas caem, meu nariz ferido solta casquinhas e eu começo a fazer listas
Faço listas
e mais listas
Febril, no meio da madrugada, eu respondo à perguntas que ninguém me fez, eu encontro padrões.
Depois durmo e falto às aulas e volto, dou risada
Depois tô de mau humor, não quero que me toquem, não quero que me toquem, não quero que

Ligo pra L., em desespero, números desenhados na pele do corpo inteiro, em todas as partes que consegui alcançar e como vai doer pra tirar tudo até amanhã de manhã
Ela me diz, como sempre, "por que você não se corta, como uma pessoa normal?", daí a gente ri, porque essa piada nunca fica velha.
Mas eu digo a ela, eu digo a ela que eu tô me fragmentando, explico que, debaixo da minha pele tem alguma coisa estranha acontecendo, que o gosto na minha boca não é de algo que eu comi, que--

E ela reconhece o padrão. Respira fundo e me diz, daquele jeito dela, pra não sair de casa, que ela tá vindo.
Mas eu não tô em casa, L.
Tô no meio da rua, tentando pegar meu braço esquerdo do chão.

Tiro uma nota ruim, tenho um dia ruim, uma mulher grita comigo.
Tantas regras, tantas listas
E eu não consigo ficar aqui, estável.
Eu não consigo fechar os olhos.

Holden me manda mensagem e ele sabe.
Eu não sei como ele sabe, eu nem sei se eu sabia até agora.
Mas ele sabe,
ele sabe mesmo sem ter me visto assim, sem dedos, sem braço, completamente desconectada.
Eu tento dizer que tudo bem, meu bem,
isso já aconteceu antes. Muitas vezes, incontáveis.
E eu tô aqui. Eu tô bem. Eu vou ficar bem.
Mas ele sabe.

Sabe, eu estou fazendo algo errado.
E eu não sei o que é.
Eu não consigo ver onde é que eu tô errando.
Porque eu erro quando acordo de manhã, e quando durmo demais.
Quando vou a todas as aulas e estudo e me aplico, eu erro quando mato aulas pra descansar, eu erro quando fico, quando vou pra casa, quando tô junto, quando tô sozinha, eu estou fazendo algo muito errado
Eu tô tentando ficar aqui, nesse quadrado estável, seguro. Eu só tô tentando fazer isso, não experimento coisas novas, eu repito as receitas, as fórmulas de ficar bem, mas elas não querem funcionar.
Nada nunca funciona.
Porque parece que tá tudo bem,
aí eu durmo
aí eu não durmo
faço listas
escrevo números
e, mesmo assim,
meu corpo se parte em pedaços

mas eu continuo correndo
sempre correndo

No final, sempre fica tudo bem.
Ou não.

38x04 Sucedâneo de Paixão Violenta

Imagem: TingTing Huang

(Peço desculpas por qualquer perturbação que possa causar, querido leitor. Mas não meço palavras. Hoje não. Eu sofro, e não vou sentir muito, por sentir tanto)

Sonho com baratas.
Você me sufoca, durante um sonho.
Eu, Selvagem,
estive tentando te dar amor
mas você não foi feito pra ser amado, foi?

Ah, não, você não foi feito pra isso, sentimentos desse tipo, pra pessoas desse tipo. Você quer limpeza, quer fordeza, quer gramas de soma e Golfe-Obstáculo, sentir beijos que não lhe foram dados, você quer essa sensação passageira, esse interesse breve, seu amor possui interruptor.

Desembaraço meus cabelos com força,
mas sem me machucar
e percebo que te odeio, que todas as gramas de Soma não são suficientes pra me fazer esquecer disso.
Oh, meu Ford,
eu te odeio e não se deve odiar ninguém.
É proibido, não é?

Enfio as unhas nas palmas das mãos
e eu te odeio, eu me deixo te odiar.

Um rapaz me pergunta, educadamente, se amo alguém, baixinho, como se fosse um pecado
e eu digo
não.
Mas eu odeio, e ódio e amor são a mesma coisa, em dias como esses.

Eu odeio você,
e tenho ignorado isso por tempo demais,
por medo das consequências que odiar alguém podem trazer.
Mas
será que podem ser diferentes disso?
Te odiar vai me partir em mais pedaços?

4 comprimidos de meia grama pra mim,
4 para Henry,
e derretemos no chão de madeira,
acalentados pela voz de vestido fúcsia, eu tô tão cansada,
eu tô tão cansada
que confundo tudo, mas não quero mais confundir,
estendo meus dedos na direção dele,
mas ele também sente dor, e não pode me ajudar.

Então, eu me levanto e dirijo pra casa,
ébria,
falsamente feliz,
a cabeça trabalhando numa fórmula pra te apagar do universo.

Cheguei em casa e ela me disse,
essa mulher minúscula, mínima
que eu tô aqui porque eu sou forte,
ela me disse coisas,
ela encheu meus bolsos de soma
e me sussurrou no ouvido
pra não tomá-lo,
ela me disse pra ficar sóbria
pra esperar,
pra entender

e eu esperei,
esperei até o efeito passar pra poder perceber o que tô percebendo aqui, agora, na frente do espelho
eu te odeio

Eu quero fazer coisas horríveis com você,
estamos ligados por esse sentimento horrível e escuro que tô carregando
essa coisa que me torna amaldiçoada e incapaz de me sentir plena, feliz, satisfeita
essa nuvem negra em cima da minha cabeça.

Alguém me oferece mais uma grama, outra grama, outra
e eu tô tomando
até a euforia bater, a vontade de acordar do lado,
de ouvir músicas bonitas à tarde toda,
eu tô tomando,
eu tô tomando, uma grama, outra grama, outra
e fingindo que tá tudo bem

Porque, quando eu parar de tomar,
quando eu parar de fingir
vou acabar com você,
vou arrancar cada grama de soma do teu corpo
e te ver sentir dor e adoecer,
como você fez comigo.
Eu vou despejar o ácido das minhas feridas na tua goela
e te ver queimar por dentro,
vou ter a coragem que você não tem e nunca vai ter,
eu vou te fazer sangrar no mesmo chão em que você me deixou pra morrer,
vou arrancar a sua língua pra que você nunca mais possa me machucar,
vou arrancar seus olhos,
furar seus ouvidos,
eu vou arrancar tua pele toda e queimar,
vou urinar no seu rosto, e vou sentir o prazer físico de me aliviar,
eu vou arrancar o seu coração e não, eu não vou comer,
eu não quero pegar essa sua doença.

Eu vou pisar nele.
Eu vou pisar nele.
Tantas vezes, tantas vezes, que me dá água na boca imaginar a carne se desfazendo sob os meus pés, se transformando em uma massa de sangue e carne, disforme.

Eu preciso te machucar, entende?
Porque você me machucou.
Porque não tem outra cura, porque eu finalmente te odeio, como você queria que fosse,
como deveria ter sido desde o começo.

2 gramas no total, eu tomo e me deito na cama
fecho meus olhos
e espero que passe
mas não quero que passe,

não mais.

38x03 Somebody else


Imagem: TingTing Huang

Penteio os cabelos, alheia ao fato de que as coisas estão mudando, de que os deuses possuem planos que não compreendo, de que meu corpo manda mensagens que não visualizo.

Minha mãe se assusta porque as pessoas me amam, mas eu não entendo. Eu não entendo. "Eu não fui feita pra isso", minto.




Saio da aula, compro sorvete e tomo na frente da sua casa. Porque eu quero te ver, mas você não volta pra casa. Você não volta mais.

Então eu saio pelas ruas à caça de qualquer coisa que me distraia do meu cotidiano horrível, uma festa cheia de luzes e eu beijo alguém de cujo nome não me lembro, eu danço e eu não sou capaz de gostar de ninguém. Meu Deus, como eu te amo, como eu te odeio, você me estragou, ou eu já era estragada, sei lá.

Bebo mais um pouco, e ele me manda mensagem. Eu visualizo, respondo imediatamente, eu sei o que está acontecendo, mas eu quero ver até onde vai.

Uma garota me chama no banheiro, me diz pra fugir de você, me diz que você machuca as pessoas, que é tão estragado quanto eu, que você é o pior tipo de pessoa que existe. Eu tento socar o rosto dela, mas percebo que é só o espelho, quando os cacos de vidro cortam meu punho e a dor fica insistente demais pra ignorar.

Enfaixo o braço no casaco e volto pra casa andando, sem rumo, porque eu percebo que não quero você. Eu não quero você, eu não quero você. Mas eu não consigo não querer você, acendo um cigarro e me sento no meio-fio, na frente da sua casa, eu só quero que você venha me machucar. Venha me machucar, me pegue pela mão, me arraste pra sua casa, pro seu quarto, pra sua cama, pra

Vomito.

Eu não quero você. Eu quero uma cura pra isso, não você.

Limpo a boca e cambaleio até a minha casa, durmo de roupa, fedendo à vômito e álcool, cigarro e decepção.

Acordo cedo com uma mensagem dele, e dou risada sem querer.

Respondo, e ele responde, e respondemos, e eu não consigo me desligar desse diálogo ameno, e eu não consigo me desligar dele. Me permito fechar os olhos, pensar como seria se

E, talvez, nesse exato momento, um estranho em um bar talvez esteja dizendo a ele pra fugir, que eu sou a pior pessoa do universo, mas eu quero saber até onde isso vai. Tenho um interesse quase doentio em saber até onde isso vai, que eu espero que passe assim que eu começar a beber de novo.

Vou até à cozinha, como morangos, tomo um copo de leite azedo e meu corpo inteiro fica arrepiado de nojo

Jogo tudo no ralo, leite, você, eu, ele, ela, os próximos dias.

O que tiver que ser, será.

38x02 Old Flames

Imagem: TingTing Huang

Oráculo de Delfos, ela me disse
pra tomar cuidado, tome cuidado, quando ela chegasse.

Mas eu não tenho medo de nada,
ou tenho
eu me esqueço rápido,
nada faz sentido até fazer

Até você me mandar mensagem no meio da noite
dizendo coisas desconexas
e eu respondo
e você responde
e eu respondo
e você responde

Como se você soubesse
como se finalmente soubesse
o que elas disseram pra mim num quarto escuro com cheiro de tecido

Mas você não sabe, sabe?

Isso é só parte de uma ilusão,
de uma brincadeira de mal gosto, um trote,
e eu pergunto a ela "Por que você faz essas coisas?"
mas ela não responde, ela nunca responde.

Mas você responde
e eu respondo
e você responde
e eu respondo

e espero pela sua resposta

as palavras do oráculo se confundem na minha mente
"você vai começar a confundir as coisas"
e eu percebo que tô confundindo as coisas haha
e que deveria ser óbvio
que é óbvio pra todo mundo
menos pra mim

Isso não é real.
Não é coincidência, é um estado de espírito
passageiro
uma vela acesa no caminho escuro do labirinto
que se apaga quando ela for embora
e me deixa aqui
esperando pela sua resposta

mas você não responde mais,
passou a vontade

Por que é que a minha não passa?

38x01 Lembrol

Imagem: TingTing Huang

- B.? Você ouviu o que eu disse?

Eu não ouvi.
Ando distraída, comunicativa, me sentindo horrível, insuficiente, incompetente.
Eu estava pensando sobre essa fotografia.
Eu não me lembro sobre o que estava pensando.

Tenho que estudar, tenho que agir, mas tô parada olhando pro nada há uma hora.
Eu não estou mais aqui.

E, mesmo que não consiga me lembrar de onde estive nos últimos minutos, nas últimas horas, eu sei.
Meu corpo está se lembrando.
Como um efeito tardio,
sinto me tocarem quando não tem ninguém por perto,
acordo e respondo algo que ninguém me perguntou,
sinto essa vontade de fazer algo que não sei bem o que é, de dizer algo.

Você vê,
penso em você.
Quando danço
quando como
quando dirijo
e quando calço meus sapatos.

Quando danço.

E eu estou cansada, tão cansada
de me sentir assim.
Eu estava amarrando meus cadarços, no outro dia
e amei você, toda a sua existência e cada átomo que faz parte do seu corpo.
Mas eu não quero mais.

Você me dá colo e diz que vai ficar tudo bem,
mas não vai.
Nunca mais vai.
Não importa o que você diga,
não importa o que elas digam.
Nunca mais vai.

Então eu marco meu corpo, apago as chamas nas minhas veias
e espero que o sol se ponha pra fazer um pedido
pra pedir
esquecimento.

As luzes se apagam e alguém me sussurra todas as minhas falhas
e eu quero te pedir desculpas
mas isso é só o fogo nas minhas veias querendo o seu retorno
e eu sou forte o bastante pra não dizer nada, pra ficar no silêncio que existe entre nós dois.

E eu peço
Ou penso que peço
Sem pedir nunca porque, no dia seguinte,

quando eu amarro os cadarços
quando eu visto minhas calças
ou encosto a caneta no papel

quando eu danço

meu corpo inteiro acende
queima
como uma chama presa dentro de uma redoma
até se extinguir, sem ar
e me tornar cinza

E eu volto pra casa,
cuido das minhas feridas
E peço
Ou penso que peço

Uma hora dessas,
talvez eu peça.

E aí

quando amarrar os cadarços,
vestir minhas calças

quando eu dançar

bom, você já sabe.

37x21 O terrível dia jamais descrito (Season Finale)

Imagem: TingTing Huang

Estava organizando as temporadas, ao invés de estudar, de explicar pra minha irmã como é que uma camisinha vai parar no quarto de alguém, de ler meu livro ou fazer qualquer coisa útil, quando me deparei com o terrível dia jamais descrito. Eu decidi, há um tempão, que jamais escreveria sobre ele porque não sabia como.
Acho que doía, também.
Acho que incomoda, um pouco, o que quer que isso queira dizer.

Mas não tenho medo da dor ou do incômodo.
Vamos lá, vamos terminar essa temporada com bravura. Vamos quebrar regras.

24 de julho de 2015.

Eu estava lá.
Acordei cedo, voltei pra casa bem cedo, como nunca tinha voltado antes.
O dia todo era bonito, eu ouvia o álbum recém saído do forno da Florence, e fingia que não estava indo ver se a gente tinha volta.
Não me lembro da minha roupa naquela manhã.
Roupa de dirigir.
Lembro de usar meus óculos de coração, os cor de laranja, e de pensar que o mundo inteiro queimava.
Eu não sabia o que ia acontecer naquela noite. Sabia o que queria que acontecesse. Mas não tinha coragem de imaginar. Eu tinha muito medo.
Eu tinha muito medo de chorar.
Estava doente.
Digo isso porque agora me parece muito nítido, mas eu não percebia, então.
Trazia na bolsa um monte de sudokus e palavras cruzadas, que me acompanharam durante algumas das piores fases da vida, como um lembrete de que, quando tudo está ruim, eu sempre podia fugir pra dentro de mim.
Arrumei meu cabelo. Na época, estava em transição, meus cabelos estavam furiosos, eu me sentia a medusa, cachos tortos, em desalinho, como se alguém os tivesse dado vida própria e os congelado em seguida.
Eu usei azul.
Azul é a minha cor favorita, às vezes.
Blue.
Caiu bem.
Eu queria ficar bonita, mas bonita feito uma pessoa comum em uma tarde comum.
Penteei os cabelos, usei maquiagem, mas não tanta, porque queria parecer que estava ali só porque tinha que ir.
Fiz o caminho mais cedo, eu queria esperar, eu queria estar lá quando você chegasse.
Sentei no deck, e fiquei olhando o pôr do sol, esperando você chegar, com medo da sua chegada, com medo do futuro, com medo da falta de estrelas pra quem pudesse pedir, com medo de não saber o que pedir.
Você chegou e, olha, você estava lindo. Nossa.
Eu estava de novo, desajeitada, meio maluca, sozinha, escrevendo em papéis e nos cantos dos sudokus, trazendo um presente sem pacote, uma caixa cheia de mim e das coisas que eu não pude te dar. Cheia de amor sem sentido, sem destinatário.
Deixei que você lesse, eu queria que você lesse, era seu, não era? Mas não era mais.
E foi uma droga perceber que não era mais.
Porque ainda tinha amor ali, ainda tinha amor em mim, o que eu ia fazer com aquilo??
Pra quem eu ia dar, se não pra você?
Soco no estômago, saímos pra comer, de acordo com o que eu planejara.
Eu precisava de tempo, ficar estável, peguei meu carro e fui pelo caminho mais longo e mais familiar que conhecia.
Eu precisava ficar estável, eu precisava não sentir nada.
Eu precisava respirar fundo e não te querer mais, eu precisava que você me quisesse, eu precisava--
Chegamos ao shopping, mas não entramos de mãos dadas, não teve sorvete e nem você me deu bronca por alguma razão boba. Fingi que estava diferente, em uma tentativa desesperada de te fazer voltar, mas hoje acho que isso não fez, nem faz diferença.
Comi carne, e estava ruim, mas eu não reclamei.
Conversamos.
Sobre coisas amenas.
Coisas amenas, eu e você, conversando sobre coisas amenas, uma morte lenta.
"Não, não, não, tá errado. Me fala da tua casa, da tua vida, da saudade que você sente de nós dois, vamos pra minha casa, dorme comigo essa noite e a gente resolve tudo amanhã, volta pra mim, volta comigo pra sua casa, eu te faço o café da manhã e a gente começa do zero, a gente finge que nada aconteceu, eu nunca mais discuto por coisas pequenas, eu não vou mais brigar, eu não vou mais ficar indecisa, eu vou ser melhor, eu vou--", era o que passava pela minha cabeça. Mas eu nunca disse, eu nunca diria, eu sou a mulher mais orgulhosa que já andou por essa terra, e até isso me orgulha.
Então eu sorri, e falei com a minha voz estável. Eu fui estável. Porque era o que eu achava que deveria ser.
E tinha tanta coisa que eu queria dizer, que eu queria cobrar, que eu queria te dar, e a minha estrela, e tudo aquilo que a gente ainda ia fazer
mas eu não tinha voz, nem bravura
nem nada.
Eu só tinha o meu orgulho, pra me manter de pé, pra me fazer te soltar quando a gente se abraçou uma última vez, pra me levar pra casa, pra minha casa, não pra sua, pra me tomar o celular quando eu só queria escrever tudo o que estava entalado na minha garganta, me apertando o peito, pra colocar o colchão na sala porque entrar no quarto e ver as coisas de nós dois espalhadas doía, pra me abraçar e dizer que ia ficar tudo bem, mesmo quando eu sabia que não ia ficar, pra me fazer cafuné enquanto eu chorava pela primeira vez, oficialmente.
Meu Deus, como foi horrível aquele dia, terrível. Parece tolo, agora.
E nem de longe tão ruim quanto os que vieram depois.
Mas ruim.
E não sou insensível a ponto de dizer que o seu também não foi ruim. Deve ter sido, tão ruim quanto. Mas acho que nunca vou saber.

O que sei é que esse foi o meu dia terrível.
Não o primeiro, não o último, mas especialmente terrível.
Como todos os dias terríveis.

Se eu teria feito algo diferente?
Tudo, eu diria, mas não tenho certeza.
Porque eu realmente gosto de azul.
E eu realmente gostava desse cara, mas
Eu sei que as pessoas imaginariam que eu diria que deveria ter deixado o orgulho de lado, mas ele me trouxe até aqui.
Ele me manteve de pé,
me fez comer quando eu não queria,
pentear meus cabelos, ir pra aula fingir que estava tudo bem, tirar notas boas,
falar com meus amigos, nem que fosse pra responder "Tudo bem sim :) e você?".
Ele me abraçou e me impediu de pedir ajuda, é, mas também me impediu de tomar atitudes drásticas, de dizer o que sabia que não adiantava ser dito e de ficar em casa chorando as pitangas.

Então, eu mudaria o dia terrível?
Talvez, possivelmente.

Mas provavelmente não.

37x20 Trick or treat

Imagem: TingTing Huang

- Diga. Diga de novo.

Tô sentada chorando no meio desse quarto escuro, e o barulho me irrita, pela primeira vez. O ruído da tesoura, implacável, cortando o tecido, me enlouquece.

Eu não deveria ter vindo.
Porque existem coisas que não estou pronta pra saber.

- Não era isso o que você queria? - pergunta a donzela, me observando com seu único olho.
- Eu não sei.
E não é mentira.
Eu não sei.

- Diga de novo, por favor.

E ela diz.
Ela me conta sobre um homem atraente, fútil, me fala sobre ilusões. Diz que ele é alegre, passa essa impressão de sorte e realização, mas que age com desamor e de forma desorientada. Nada de novo. Eu pergunto a ela sobre seus sentimentos e ela me diz que são efêmeros, desejo, alegria, prazer. E eu me preparo para a bordoada a que estou acostumada, tô esperando que ela me diga que não, mas ela diz, repete
que vamos ser felizes.

- Você tá me zoando.
Se ela tivesse arrancado meu coração do peito a dentadas, eu sentiria menos dor.
- Eu odeio vocês. Vocês estão brincando comigo, eu não sou um brinquedo. Vocês estão me machucando.
Todas se voltam na minha direção, mas é a Donzela quem responde
- Você faz as escolhas, B. Você escolheu vir aqui, você escolheu passar por isso e, pelo que vejo, vai fazer muitas escolhas parecidas. Mas são escolhas. Existem outras opções. Lembre-se disso.

Eu não quero me machucar.
Tô olhando pra elas sem saber como explicar, como dizer, como fugir, como

- Seja leal, honesta. Cumpra com sua palavra. Você não vai se machucar, se fizer isso.

Eu quero fazer perguntas, eu quero entender quando é que isso aconteceu, o que foi que mudou, o que vai mudar, mas tô muito enjoada pra abrir a boca.
Além disso,
não tô pronta ainda pra saber o que mais acontece no próximo episódio.

Acho que odeio spoilers.

37x19 Keep your heart strong

Imagem: TingTing Huang

2005

Eu estava deitada no chão, chorando, dramática, mais infeliz do que eu achava que poderia ser na vida toda.
- Por que você gosta dele? Ele é idiota. E nem sabe que você existe.

Naquele momento, eu pensei uma coisa que penso até hoje, em momentos como aquele "se eu ganhasse uma moeda pra cada vez que já ouvi isso..."
E isso diz algo sobre mim, eu suponho.
Mas, naquele momento, eu continuei deitada, contendo qualquer ruído, e chorando, sentindo as lágrimas escorrerem pelo meu rosto.
Eu achava que nunca ia parar de doer.

E David estava lá, me julgando, me dizendo que eu estava sendo estúpida, que eu
Tanta coisa, tanta coisa se perdeu na lembrança daquela noite.
Ele estava preocupado, zangado
porque eu estava apenas iniciando um comportamento que viria a repetir minha vida toda,
eu estava escolhendo o impossível,
amando uma pessoa que eu tinha inventado.

Eu poderia tê-lo amado.
Amado pessoas que me amaram e eu nunca entendi a razão.
Mas eu queria o impossível,
eu queria me deitar no chão e chorar,
eu queria a dor de não poder ser amada.

- Levanta daí.

Mas eu não me levantei.
Eu queria sucumbir, eu não queria mais nada,
a vida nem fazia mais sentido,
então ele se deitou no chão comigo, derrotado,
e me fez cafuné, enquanto dizia coisas boas
coisas bonitas, das quais eu queria me lembrar, mas se perderam,
porque o meu estilo de vida não permite que as coisas boas permaneçam.
Só o que é ruim fica.

Ele me olhou nos olhos, cochichou no meu ouvido
e só agora, quase 12 anos depois,
é que me bate uma curiosidade de saber o que ele disse.
De saber me ver pelos olhos dele.

Por que é que eu estava chorando, afinal?
Disso eu me lembro, é claro.
Mas não importa, não agora.
O que importa são as palavras de que não me lembro,
a pessoa que se deitou do meu lado, sem poder fazer nada,
a coceira que aquele tapete me deu depois,
a cor de verniz do guarda roupas antigo.

12 anos depois, é só isso o que importa.

E, daqui a 12 anos,
o que vai importar não é a repetição de padrões ou a chateação que causam certas coisas,
mas aquele dia em que você usou seu quimono e ele olhou pra você como se você fosse única no mundo,
ou uma tarde passada na chuva,
coisas boas que as pessoas dizem, das quais você nem precisa lembrar direito pra saber como te fazem sentir,
aquela tarde em que você leu um livro que te fez sentir mais forte,
e a sensação boa de se manter sã,
as pessoas que te mantiveram sã.

Então, respire fundo,
aguente firme,
chore deitada no chão, se precisar
nada disso fica.
Felizmente, ou não,
tudo é por enquanto.