45x04 Unsteady

 

Imagem: TingTing Huang

Ele me pede pra andar na faixa branca que divide a pista, sem perder o equilíbrio. 

E eu consigo, eu sei que consigo. 

Nunca estive tão estável, eu nunca fui tão equilibrada. 

Tá tudo bem, agora eu sei quem eu sou, eu sei o que eu quero. 
Eu estou exatamente onde eu deveria estar. 

Ele me importuna, grita, sem fazer muito sentido, e cai na risada: quer ver se eu consigo andar em linha reta sem cair. 

Mas e se eu cair? 

Não tem problema, me tranquilizo.
É só uma linha no asfalto. 
Só uma linha. 

Se eu cair, talvez nem me machuque. 
Mas eu não vou cair. 
Por que cairia? 

Estou sóbria. Estou sã. 
Ele ri. 

E eu não reconheço essa risada.
E eu reconheço essa risada. 

- Anda, quero ver. Até o final da rua. 

Mas a rua é longa demais, a noite escura demais, minhas pernas tão curtas, meus cotovelos tão ossudos, ossos tão frágeis, tão frio aqui fora, e tão sem sentido estar aqui. 

- Por que estamos aqui? - pergunto a ele. 
Ele dá de ombros. 
- Você disse que conseguia, sem sombra de dúvida, andar na linha. Então, prove. 

- E se eu provar? O que eu ganho?

Ele não responde. Inclina a cabeça pro lado e me encara, pensativo. 

- O que você quer ganhar? O que você está tentando ganhar?


Eu não sei. 
Eu não faço a menor ideia, mesmo agora. 

Ainda assim, me coloco em posição. Um pé, depois o outro. 
Ando na linha, sou capaz de andar na linha, de chegar ao final. 

O que eu quero ganhar? 

Vou pensando no caminho. 
Eu te digo, quando chegar ao final. 

45x03 Ariel (Anna)

 

Imagem: TingTing Huang 


Plic-ploc-tzzt-tzzt-plic-ploc

Ariel é uma fogueira. 

Ela queima alto, brilha, ilumina a noite, milhões de cinzas caindo do céu. 

Ela alimenta a chama, drogas, paixão e dor. 
Ariel queima. 

A noite toda, incessantemente, sugando todo o ar ao redor, sufoca os homens e as mulheres, lambe e queima. 
E seu cérebro: plic-ploc-tzzt-tzzt-plic-ploc, grita sem fazer som. 

Ariel queima. 

Álcool, gasolina, tecido, madeira seca, carvão. 
Queima, queima feito um pedaço de sol. 

O cérebro tzzt tzzt
E ela, nada. 

Queima e brilha, ela é incrível, a maior, a melhor, maravilhosa e mágica. 

Ariel queima. 
Queima tudo e todos ao seu redor, dança até o amanhecer, de novo e de novo, sozinha ou acompanhada, sem nunca parar de queimar. 

Tzzt tzzt

Crepita,
queima. 

mas um dia chove.
E o fogo se apaga como se nunca tivesse existido. 


Mas existiu. 
Extingue-se, deixando pra trás tecido queimado, pele queimada, madeira queimada
e o cérebro?


tzzt-tzzt-tzzt
tzzt
tzzt


ztzz

Early Cuts: Horcrux

Imagem: TingTing Huang


(Esse texto faz um ano no dia 20 de julho. Quanta coisa mudou, quanta coisa aconteceu... Ainda bem)


Caro Otto, 

Sei que estive sumida e peço desculpas. Eventualmente, falaremos sobre isso. 

Mas hoje, eu precisava falar com alguém. Eu precisava que alguém entendesse, mas ninguém entende. Então, talvez, você entenda, onde quer que esteja. 

Eu perdi um paciente. Outro paciente. E estou tão cansada de perder pessoas, Otto. Ultimamente, parece que só tenho perdido pessoas. 

E cada uma delas, mesmo quando desconheço seu nome ou quando me falta a oportunidade de falar com sua família, cada uma delas parece levar consigo um pedaço da minha alma. 

E eu não sei quantos restam, Otto. 

Eu não sei se posso mais perder pedaços. 

Eu quero ser o melhor que puder pra salvar todo mundo, mas não consigo. Eu não consigo salvar a mim mesma. 

Cada vez que eu volto pra casa chorando por alguém que não é mais, alguém que poderia ser seu pai, seu avô.
Sua mãe.
Minha mãe.
Você. 

Eu sinto como se morresse um pouco. Como se o mundo tivesse ficado diferente, mais leve e mais pesado. O ar mais denso. As pessoas em suas rotinas diárias, como elas podem não sentir? 

Por um instante, uma luz se apagou como se apaga com um desiluminador. E as pupilas dilatam, escuras feito um abismo no fundo do oceano, perpetuamente silencioso. 


De repente, não se é mais. 


E eu? Quem sou eu nisso tudo? Um conduíte da morte, um anjo?
Eu tento, e eu preciso tentar, mas eu não quero mais. 

E diariamente alguém a me colocar o laringo na mão e a dizer que ele precisa, ele vai morrer, ele vai morrer se você não fizer nada, vai morrer se você fizer alguma coisa, ele vive e morre aqui e agora. Eu tento decidir e fazer o certo, eu tento dizer que não, mas ainda assim canto a hora do óbito. 

E que hora é essa? 

Chamo o pulso e ele não vem, o ar e ele não vem, chamo a alma, mas eu não sei se isso existe. Se existe mais. Se eu devo mesmo me desculpar, aos prantos, na volta pra casa, como se alguém pudesse me ouvir e me perdoar. Ou me punir. Me punir por tentar. 

Eu não quero mais errar, Otto. 

Eu não suporto mais errar. 

Mas eu não sei como acertar. 


Então, talvez, eu deva parar de tentar. 

O que você acha? 


Espero que esteja bem. Use máscaras. Fique em casa. Fique vivo. 


Com amor, 

B. 

Early Cuts: Vamos embora

 

Imagem: TingTing Huang


Caro Otto,

Vamos embora. Estarei te esperando, às 7h30 da manhã, sob a garoa fina.

O ônibus das 7h20 quase nunca se atrasa. E eu já estarei lá quando ele passar. 

Regata, saia
Façamos uma mala pequena, levemos pouco.
Escova de dentes, não me esqueço. Papel e canetas. E pijamas.
Posso deixar as mágoas pra trás? E as meias sujas, paixões antigas.
Quero levar uma goiaba pra comer no caminho. 

Vamos embora. Tenho comigo um tanto de dinheiro e uma blusa de frio antiga, furada. 

Otto, vamos embora. Palavras sinceras de quem já não se reconhece no que faz. Você dorme, eu dirijo.
Você dirige, eu durmo.
No intervalo dos desencontros, conversamos.
Você me conta sobre sua vida, uma mulher. Sinto ciúmes, mas sinto carinho, alívio. Tá tudo bem.
Sonho com a comida de beira de estrada, em algum ponto você para pra que eu vomite. 

Vamos embora, e já é noite na estrada, uma estrela única no céu pra fazer pedidos que nunca são atendidos até ser tarde demais.
Eu até já pedi por você.

"Você já pediu por mim?", eu pergunto, e você sorri, enquanto me leva pra casa, pra ele, o calor do homem que eu amo. 

Vamos embora. 

Vamos embora.

Vamos embora. 

Vamos embora. 

Meu corpo pede. Meu coração pede.


Tô esperando o quê? 

Talvez você, Otto, possa me responder. 


Vamos embora. 

Estarei esperando. 


Com amor, 

B.