47x22 Pappenheim (Season Finale)

 

Imagem: TingTing Huang

- Você me quebrou?, eu perguntei a ele
- Não, B., nunca. Eu te consertei. 

Estávamos sentados num banco de pedra. Era bem cedo, estava frio. 

Lembro das nuvens, da grama. 
Das cores. 
Do vazio. 

Passávamos horas sentados, em silêncio. 
Eu sempre me sentia péssima, exausta. 

Meus pensamentos eram muito frágeis, fios e linhas finas de fumaça que eu tentava agarrar pra formar palavras e frases e algo (sem sucesso).

Ele me perguntava coisas, mas elas nem sequer chegavam ao lugar onde nasce o entendimento. As palavras batiam feito pássaros em vidros e caíam aos seus pés. 

Voltávamos ao quarto e eu comia, tomava remédios, dormia, acordava, comia, tomava remédios, dormia, acordava. 

Aos poucos, os dias tornaram-se semanas, e as semanas tornaram-se meses, meu cabelo cresceu novamente e as marcas da contenção desapareceram, e eu permanecia dócil e vazia, uma tabula rasa. 

E ele vinha e me fazia perguntas e me dizia coisas e contava a história de mim, sobre mim. Uma história de raiva e de medo que eu não reconhecia mais. 

Ele me mostrou cicatrizes de arranhões, dentes, hematomas em absorção, no próprio corpo e no de outras pessoas. 
- Não sei, não me lembro. 
E não era mentira. 

Ele vinha, diariamente, mesmo nos fins de semana. Sentava-se no jardim e falava, enquanto eu não ouvia, em silêncio. 
Ele falava, até cansar. E depois escrevia, até cansar. 

Eu nunca li o que ele escrevia. Não me interessava, à época. 
Nada interessava. 

Lembro de sentir-
nada. 
Absolutamente nada. 
Eurídice, atravessando o submundo em completo silêncio. 

E ele teimava, com suas palavras bonitas, sua lira feita de lítio, em me forçar a atravessar. 
Como se fosse sobre ele. 
Tudo era sobre ele, até eu era sobre ele. 

Por meses, eu não disse uma palavra sequer.
O ar entre nós se enchia de tensão e o sufocava, enquanto eu assistia, sem sentir nada. 
Eu até sentiria, se pudesse. Mas era incapaz de sentir, e de existir fora da órbita das criaturas destruidoras de universos. 

E, assim mesmo, ele teimava em me envenenar, com agulhas e palavras e pílulas amargas e preparados que me embrulhavam o estômago.
Ele queria me ouvir gritar, mas eu não tinha mais força pra evocar um grito. Desaprendi o que era dizer, pensar, sentir. 
Mas ele queria me ouvir gritar, então não parava. Dia e noite, ele tentava invocar a Besta, mas ela já não existia. 

Dentro de mim, só existia o silêncio, e ele não sabia ainda que eu queria dizer algo por meio da ausência de som. 
Ele buscava, frenético, transformar a Besta em Mulher, mas eu já era Nada, muito distante de qualquer uma das duas. 

Depois de meses de silêncio, 
eu falei. 

e, por alguma razão, aquilo o irritou, muito mais do que o silêncio. 
A existência de algo, a existência de alguém dentro de mim, pensante, senciente o enfurecia. E ele demonstrava e lutava uma luta travada no campo do inconsciente, na qual a minha convalescença era o seu grande oponente. 

Ele continuava vindo, impecável, pontual. Camisas sem nenhum vinco, calças perfeitamente passadas e sapatos engraxados, mas, ocasionalmente, um fio fora do lugar, olheiras mais profundas, alguns fios de barba por fazer, uma irritação difusa e a força com que escrevia nas páginas do seu caderno me indicavam que algo estava acontecendo. 

Aos poucos, eu melhorava e, a medida em que o número de comprimidos diminuía, ele tentava me forçar a gravitar seus pensamentos, sem admitir que ele gravitava os meus e que a minha melhora era a cura forçada para a sua obsessão por doença e morte. Às vezes, eu me pergunto se ele sentia medo. Se acordava no meio da noite, apavorado com a ideia de ficar só e ter que olhar para si. 

Haviam muitas como eu, inúmeras mulheres silenciosas, mas "nenhuma como você", ele me disse, certa vez. Eu fazia com que ele se lembrasse. Ele nunca disse o quê. E eu nunca perguntei. 

Na véspera da minha alta, acordei no meio da noite, perturbada por um silêncio que só posso descrever como pesado. Anormal. A ala toda em silêncio. Nenhum choro, nem gritos, nem os passos ocasionais dos seguranças e das enfermeiras. Nenhum carro distante, nem animal noturno. Eu não conseguia ouvir nenhum som, mas eu sabia que ele estava ali, em algum lugar, me olhando. Dentro, ou fora do quarto. Eu quase podia ouvir o seu coração bater. 

Eu não senti medo. Eu tinha essa certeza de que não me tocaria mais, uma sensação de que eu estava completamente fora do seu alcance, sempre estivera. E ele sabia. 

Mesmo agora, ele sabe. 

E espera. Mas eu não volto mais. 

Nunca mais.