41x04 Dollhouse

Imagem: TingTing Huang

Oi, meu amor.
Como cê tá?

Tá feliz, ela.
Me diz que comprou uma calça nova. Tá trabalhando bastante. Me conta histórias engraçadas sobre a vida dos outros, nunca sobre a dela. E eu, burra, cega.
Eu só vi o que eu queria ver, não é? Eu não vi o que você não queria que eu visse.

Ou eu vi?
E fingi que não.

Eu não vi quando ele te fez sentir doida, você vestida de boneca, arrumando a casa e tentando explicar pra ele que o seu ponto de vista também era válido, e ele gritou e gritou, cada vez mais alto, enquanto a sua voz ficou mais baixa até sumir.

Onde é que eu estava quando ele disse que você era louca? Vagabunda, prostituta? Quando ele disse isso na frente da sua mãe.
Na minha frente.

Onde é que eu, onde é que o feminismo que eu tanto prego foi parar nessa hora?

Cheguei pra te ver, te dei um abraço e você sorriu, mas eu coração estava escuro e murcho,
você tinha recém sofrido mais uma humilhação, só mais uma, mas tá tão acostumada a esconder de mim que seu sorriso não saiu do rosto nem um segundo sequer.
Eu te amei, mulher.
Eu amo sua força, seu caráter.
Mas não se esconda de mim.

Você é forte, independente
mas não quer ficar só.
Só com quem?
Você não consegue ficar consigo mesma?
Então fica comigo.
Ou aprende a se gostar.

Quando você diz não,
é não?

Por favor, não me diga que acredita quando dizem por aí que você tirou a sorte grande porque ele te quis.
Por favor, não me diga que se importa quando dizem o quanto ele é ótimo, porque sabemos que as pessoas só veem o exterior da casa de bonecas que vocês construíram, cujos tijolos e azulejos ele colocou com tanto carinho pra te prender lá dentro, pra te fazer sentir pequena e inútil, dependente e fraca.

Você tá conquistando o mundo,
chega na minha casa dando risadas altas e me contando coisas e eu percebo que não nos vemos há séculos,
aí ele te liga, pergunta sobre o seu dia
e você mente,
mesmo sabendo que não fez nada de errado.
Morro um pouquinho, mas não digo nada.
Porque sempre foi assim.

Sempre foi assim.
Tanto que eu até me acostumei.

Uma amiga me perguntou se eu gostava dele.
Eu me lembrei do seu ex, aquele ser monstruoso e nojento, que eu mataria com minhas próprias mãos, não fossem elas tão pequenas à época.
E eu disse que ele era ok.
Mas ele não é ok só porque é menos pior.

Você merece mais.

Você sempre merece mais.

Você conversa com as pessoas,
conta coisas,
e ele não suporta seus segredos.
Ele não suporta sua vida, sente vontade de costurar juntos os dois, sua boca aos ouvidos dele
e isso me assuta.
Eu tenho medo da prisão que é uma vida sem a opção de guardar segredos. De ser um indivíduo pleno.

Eu tenho medo
Das coisas que devoram crianças no escuro,
e dos olhos de quem ainda não dissocia o bem do mal.
Eu tenho medo das vezes em que eu quis que você ficasse calada.
E das vezes em que achei que você fosse a culpada.

É normal se sentir assim só porque todos os seus relacionamentos foram assim?
Não.
É normal que relacionamentos sejam assim?
Não.
É culpa sua? Você vai atrás de homens assim?
Não.
Sua personalidade sempre vai atrair homens ruins?
Não.

Nada disso é verdade.
Você é linda. Incrível. Existem homens bons. Homens que vão amar você. Que vão se apaixonar por você. Que vão te tratar bem. Que vão cuidar de você, sem tirar sua independência. Vão se apaixonar pela sua vida e pelas suas histórias.

Tô sentada na mesa, pensando.
"Em briga de marido e mulher não se mete a colher",
mas eu tô vendo,
eu tô ouvindo,
eu tô vendo.

Como você quer que eu ignore?

Eu finjo que ignoro porque acho que é o que você quer que eu faça, mas eu não vou mais fazer isso.
Eu não vou mais.
Você chora e veste sua roupa de boneca, prende os cabelos, pinta o rosto e sai pra mostrar pro mundo que está tudo bem.
Quer que eu mostre.
Mas não tá tudo bem.
E eu não quero mais trégua.
Eu quero você longe daqui.
Lá em casa, ou em qualquer lugar onde ele não possa te alcançar e te podar.

Vocês brigam e ele dá um soco na porta.
Mas ele não dá um soco em você, você me diz.
Tudo bem enquanto for na porta, Maria?
Não. Ele deu aquele soco em você.
Aquela porta é você.
Aquela porta amassada é o jeito como ele diz que conseguiria amassar seu rosto da mesma maneira.

Ele sorri para o público.
E nem parece o mesmo homem que grita e chuta as portas, grita tão alto que a rua toda ouve, a rua toda sabe.
O prédio todo sabe, mas você é teimosa e continua fingindo, com a cara mais lavada, que nada aconteceu.

Ele vai embora,
ele promete te tirar tudo, tudo pelo que você trabalhou, mundos e fundos,
ele volta.

Eu não digo nada, mas você vê.
Você vê nos meus olhos.

Pensa que tô decepcionada com você.
E eu não digo nada, eu sou covarde.

Eu não tô decepcionada com você.

Eu tô decepcionada comigo.

Eu tô decepcionada com o fato de que não pude me levantar e enfrentá-lo por você,
ou te sacudir os ombros e dizer umas verdades,
eu tô decepcionada com o fato de que eu não percebi isso antes, tão ocupada que estava em te ajudar a criar essa mentira de que estava tudo bem.
Nunca esteve,
e eu to decepcionada com o fato de que eu não te peguei pela mão e disse "Vamos embora".

Eu quero fazer isso.
E tô morrendo de medo
de que você diga que quer ficar,
que isso é amor,
que é o que você quer.

Por favor, não fique.

Você merece mais.
Muito mais.

Só precisa perceber.

41x03 Happy pills

Imagem: TingTing Huang

Eu queria me preocupar com as consequências, eu queria,
mas eu só consigo me preocupar com a hora em que você vai chegar pra dormir comigo.

Queria me preocupar com os sentimentos das outras pessoas, mas só consigo pensar em jeitos novos de encostar minha boca na sua.

Queria me preocupar com roupas e meu cabelo bagunçado, mas só quero mesmo é passar a perna por cima do seu corpo e te abraçar apertado.

Queria me preocupar em engordar demais, mas quero mesmo é que você me convide pra jantar e pra tomar sorvete.

Eu queria não querer tanto beijar a sua boca,
mas aí você chega e derrete meus muros de gelo, e aceita meu labirinto,
brincamos de Marco Polo pelas galerias subterrâneas e, quando eu me percebo, tô correndo pra te encontrar mais rápido, mais cedo.

Porra, eu queria dar um basta nisso, queria te explicar que eu sou undateable, eu sou horrível, monstruosa, ciumenta, triste e infeliz,
eu derrubo barcos,
destruo mundos.
Mas eu não quero te afastar, eu quero você mais perto,
eu quero o seu sorriso absurdamente infantil e fofo, eu quero não ter medo de mais nada.

Minto, queria ter medo do que as pessoas vão dizer,
de como vão enxergar isso que tá acontecendo,
mas eu só quero não soltar sua mão.

Eu tô feliz, horror dos horrores.
Eu tô muito feliz.
Você me faz feliz.

E isso é absurdo,
bizarro,
esquisitíssimo.

E maravilhoso.

Eu não quero outra coisa, não quero viver de outra maneira.

E eu queria me preocupar com o final dessa história, como momento em que você vai embora, mas ei
Obrigada
Obrigada por existir agora.
Por hoje.

O resto a gente vê depois que o efeito da dopamina passar.

41x02 Pra você dar o nome

Imagem: TingTing Huang

Eu tenho que escrever sobre você.
Tanto, tanto. Uma temporada inteira sobre os últimos dias.

Eu tenho que escrever sobre o seu suéter de azul, o seu carro e noites frias demais.
Tenho que escrever sobre o quanto você fica feliz quando come frutas cobertas de chocolate.
Sobre a primeira vez em que eu pensei "E se?" sobre nós dois.

Papa, Lhamacaco, lhamas e macacos.

Seu garoto estranho, maluco,
eu tenho que escrever sobre nossas conversas bizarras fora do horário comercial, sobre "The edge of seventeen", sacrifícios, Hip to be square, substância cinzenta e doritos.

Também sobre frango xadrez e todas as garotas que você já beijou na boca.
Sobre seu gato e os pelos dele que se infiltram nas suas roupas. Tô bem feliz por não ser alérgica.

Sobre todas as viagens noturnas de carro, sobre colocar a cabeça pra fora da janela, minhas tentativas frustras de não pensar no quanto era bom ficar perto de você.
Sobre temaki, o verão, chocolates, peixes dourados, empurrões. Sobre o jeito como você me deu as costas, pulp fiction e a tarde em que eu não fui com você pra qualquer lugar.

Eu quero falar, eu não quero só escrever, eu quero contar histórias sobre filmes, frio, sorvetes, colheres derretidas, canecas mágicas com água, sobre o seu rosto e o primeiro gosto da sua boca na minha, sobre a familiaridade e estranheza de tocar o seu corpo no meio da noite e sob as primeiras luzes da manhã, sobre as conversas que temos antes de dormir enquanto tentamos não dormir.

Quero sair por aí criando poemas, espalhando felicidade e contando pras pessoas sobre as coisas que fazemos na penumbra. Quero escrever sobre a poesia da sua mão na minha, a sua expressão quando toma sorvete, as nuances de cores do seu rosto e das suas costas, o tom engraçado da sua voz e suas histórias.
Quero criar histórias sobre cada detalhe do seu corpo e me assustar com a nossa intensidade bizarra. Eu quero acordar com você, eu quero voltar pra casa, pra você e eu quero não ter medo disso.

Somos intensos, somos malucos, e isso é lindo.

Eu tô com medo, eu tô sempre com medo,
mas não quando eu tô com você.

Isso é novo,
isso é bom,
isso é belo,

sensacional.

41x01 Tempestades

Imagem: TingTing Huang

É exatamente por isso que eu não posso gostar.
Marte e plutão,
eu não consigo esperar.

Eu quero você agora.
Eu quero teu rosto cortado pelo frio.
Agora ou nunca.

Eu quero poesia, luzes, estrelas,
o seu mundo inteiro,
eu não quero migalhas.

Eu sou intensa.
SIM
Eu sou do tipo que quebra pratos,
eu empurro você contra a parede e te digo que devemos pular.
Vamos pular.

Você não pode vir,
se não puder vir por inteiro.

Eu sou uma doida furiosa,
incorrigível,
incurável,
eu quero amor,
eu quero paixão,
eu quero gritar por aí o seu nome,
eu não quero nada morno.

Eu quero agora,
eu quero escuridão,
eu quero luz pura,
não tô pronta pra estabilidade,
eu quero explosão
eu quero mais.

E eu sei que isso não é possível,
não é humanamente possível.

Então não venha.
Por favor,
 não venha.

Eu tô bem sozinha,
estável,
quase ok.

Mas se você vier,
elétrico,
raio,
furacão,
trovões,

tem que ser pra se afogar em mim,
naufragar,
não consigo lidar com meios termos,
nem com gente que só quer molhar os pés.

Se você vier,
tome fôlego:
vai doer.

40x20 Flores da estação (Season finale)

Imagem: TingTing Huang

Era uma vez um livro sobre o tempo.
Em algum lugar, existe tempo pra tudo.

Tempo pra aceitar mudanças, tempo pra dormir, pra assistir seriados.
Tempo pra comer.
E pra cozinhar o que se come.

Existe tempo pra irmãs.
E tempo pra amigos.
Tempo pra fazer as pazes,
tempo pra dizer verdades.

Existe tempo pra ler os livros empilhados nas estantes.
E pra arrumar o quarto.
Tempo pra assistir as séries na ordem alfabética, e pra sair da ordem.

Existe tempo pra aprender sobre pancreatite.
E pra aprender sobre psicofármacos.

Existe tempo pra escrever artigos,
histórias,
posts,
projetos.

E tempo pra tomar sorvete.
Tempo pra esperar que você diga que gosta de mim,
tempo pra decidir se eu gosto de você.
Tempo pra me apaixonar,
e desapaixonar.
Pra beijar sua boca,
pra beijar outras bocas.

Existe tempo pra segurar sua mão.
Existe tempo pra ficar com frio do seu lado,
e pra me consertar o bastante pra ficarmos juntos.
Existe tempo pra que eu me torne a pessoa que você quer que eu seja.
Existe tempo pra que você perceba que gosta de mim sem que eu precise mudar nada.

E existe tempo pra que eu me apaixone por gente que já sabe que eu não preciso mudar,
por gente que gosta de quem eu sou.

Existe tempo pra dançar,
pro calor,
e pra se afastar de quem quer cometer erros.

Existe tempo pra entender melhor
pra cometer erros
pra perdoar erros,
pra não perdoar erros.

Tempo pra terminar e não querer mais saber de amor,
tempo pra só querer saber de amor.
Tempo pra querer você o tempo inteiro,
tempo pra odiar sua existência.

Existe tempo pra conhecer seu rosto, seu corpo
suas mãos
E tempo pra te dizer que não quero mais,
ou que nunca quis.

Tempo de te puxar e beijar sua boca com toda a força de todos os sentimentos guardados desde sempre,
e tempo de perceber que não é bem isso o que eu queria.

Tempo de me aventurar pelo mundo,
e de só querer dormir a tarde inteira do seu lado.
De ser má,
de ser boa,
de ser robô,
de ser humana.

Eu não sei que horas são.
Nem o que acontece agora.

Eu queria muito saber, queria ter a convicção,
a firmeza de caráter de alguém que sabe que é você
que é você e mais ninguém,
que vai me fazer sair de casa numa noite gelada de julho pra qualquer coisa
qualquer coisa

Mas eu penso nisso, e meu estômago aperta,
cheio de comida, borboletas e de "e se?"s, sacolejando, gelados.

Vamos ter que esperar pra ver.
Isso me cansa, é.
Mas eu não sei fazer outra coisa.

Não sei nem se existe outra coisa.