37x18 Pequenas falhas no espaço-tempo

Imagem: TingTing Huang

Caro Hans,

eu ia escrever teu nome aqui. Quase cheguei a escrevê-lo de verdade.
Queria que você lesse.
Queria que você soubesse o que tenho a dizer.

Meu Deus, eu estava sentada no sofá, mil coisas na cabeça, pensando em cozinhar camarões
E, de repente, eu não estava mais aqui.

Era maio.
E você estava lá, segurando suas coisas, e me dizendo o que fazer.
Eu queria escrever aqui o que você disse, palavra por palavra
mas essas palavras são minhas
e eu não quero que ninguém saiba sobre elas.

É tudo o que eu tenho.
Então eu tô sentada feito um fantasma, olhando meu eu passado,
deslumbrado
o coração batendo tão forte que tô ouvindo o barulho
e não posso fazer nada

Ela hesita, por um segundo
E eu prendo a respiração,
eu quero mudar o final desse filme
eu quero escrever uma história nova, uma fanfic nova

Mas eu só posso olhar.

Eu só posso olhar e perceber que já era tarde demais àquela altura dos acontecimentos
Pela maneira como ela se inclina,
como ela sorri
como ela fala

E eu tô com o coração pesado
Cheia de vontade de dizer a ela
De dizer o que acontece no fim
De dizer o que acontece depois dos créditos

Tô treinando meu discurso,
eu preciso que ela confie em mim, acredite em mim
Ele vai partir seu coração.
Ele vai te cortar em pedacinhos.
E você não vai conseguir recolher sozinha.
E eu ainda nem sei se você vai conseguir recolher.

Ela dá risada
coloca o cabelo atrás da orelha
passa a mão no rosto oleoso
uma quantidade excessiva de rímel
ela usa um vestido.

Tento reunir as informações,
coisas nas quais ela acreditaria,
invocar o nome de Otto,
eu preciso usar todas as armas possíveis, eu preciso
eu preciso me salvar de se tornar isso

Eu preciso economizar as lágrimas
eu preciso me salvar desse exato momento
eu preciso me salvar da dor infinita
e do pavor que eu sinto toda a vez que acordo ao lado de alguém
eu preciso me salvar
dessa sensação
do cheiro de fracasso
eu preciso me salvar

Reúno toda a minha coragem,
todas as minhas palavras
respiro fundo
tão fundo
e levanto a minha voz,
me faço enxergar

- B.?

Ela olha pra mim, assustada.
Tomo fôlego pra começar a explicar,
pra contar toda a história
mas percebo
que isso já aconteceu antes
quando ela
me diz
- Tá tudo bem. Eu consigo. Tudo bem se tudo desandar depois. Tudo bem.

Assim como eu vim,
muitas de mim virão.
Eu queria sim, arrancar o mal pela raiz.
Voltar até lá e dizer não.
E ir pra casa.
Ir pra casa.
Mas eu nunca vou pra casa.
Eu sempre escolho ficar.

E isso vai me perseguir
isso vai me assombrar
pelo resto da vida

Porque não importa quantas vezes eu volte até lá
eu sempre vou escolher ficar e lutar.

Então eu volto pro hoje, pro agora
e enfrento a dor
de acordar todos os dias de manhã
com um pouquinho mais de coragem, um pouco mais de paciência
porque o que aconteceu em maio, em janeiro, agora
foi o que eu quis que acontecesse,

Agora, paciência.
Maldita paciência.

37x17 Sempre que eu pensar em nós

Imagem: TingTing Huang

Não consigo estudar.
Eu tô apaixonada por você, de novo.

Saí de casa bem cedo e te encontrei nos meus pneus gastos.
Numa camiseta que usei na noite em que a gente se encontrou, e olha, eu fui pegar um colar e achei aquele lá, sabe?

Essa menina gritou alguém na rua e ele tinha o teu nome. Meu melhor amigo cheirava à livros novos, e eu me lembrei
do quanto gosto do cheiro de grama da tua camisa.

Eu pensei em dizer à ela que te amava,
mas não consegui.
Não saiu.
Mas ela entendeu, e me disse pra ter paciência.

E eu tenho.

Mas a pessoa que vive dentro de mim não tem.
Sentei no sofá, instável, pipocando
E ela quis te ligar.
Digitei seu número e esperei a vontade passar,
já que a coragem não vinha.

19:19, eu pensei em você
Em te ver
Mas foi um pensamento ligeiro,
porque eu te amo,
mas nem tanto assim.

Tô apaixonada por você, mas te conheço bem demais
pra estar apaixonada de verdade,
pauso as músicas românticas,
você me manda uma mensagem
e eu já nem me lembro mais
o que queria tanto te dizer

Eu amo você.
E me apaixono de novo por você nos momentos mais estranhos,
quando estou calçando meus sapatos
ou quando descasco minhas frutas,
quando como comida estragada
e quando jogo fora o lixo.
No meio de conversas e quando estou comendo pipoca

Mas eu te conheço bem demais
pra estar apaixonada de verdade,
então sacudo os ombros e te deixo ficar
feito um incômodo a me apertar o estômago
a me sufocar um pouquinho
até que você some
e eu fico só

como eu estava, antes de você chegar.

Não tenho mais medo,
eu estava sozinha,
antes de você chegar.
Eu estava sozinha, antes de você ir embora.

Então, eu te amo.
Mas não o bastante.
E, sempre que eu pensar em nós,
eu vou me lembrar de tudo

e é por isso
que você volta a existir.
Porque eu penso em nós.
Então, eu te trago de volta
e te deixo ficar.

Mas uma hora passa,
eu não penso,
você não volta
e eu fico sozinha
como eu estava antes de você chegar,
como tem que ser

como eu quero que seja.

37x16 Capitolina

Imagem: TingTing Huang

Acordo, no meio da noite.
Sonhei com você.
De novo.

Olhos de ressaca.
Olhos de ressaca.

Coloco a água pra ferver, com um saquinho de chá lá dentro.
Engulo um, dois, três comprimidos, com água da torneira, que me seca a boca, ao invés de umedecer.

Os remédios não fazem efeito rápido o bastante, porque eu começo a me lembrar
E eu não quero mais me lembrar.
Porque eu não sei o que houve.
E minha imaginação fértil teima em preencher as lacunas.

Ouço coisas,
vejo coisas,
mãos tocando corpos
esse intervalo gigantesco de tempo
eternidade

Começo a chorar, a soluçar
e a implorar
pra que ela tire as mãos de você
mesmo sabendo que isso é só uma memória
e que eu não posso mudar o final da história.
Mas eu tô tentando argumentar, com meu passado
eu tô tentando entender,
tentando descobrir
juntas as peças que eu não tenho mais
mas eu só consigo ouvir seu coração bater forte
e choro
porque não é por minha causa

Fico tonta com as possibilidades,
e odeio
odeio
rasgo meus braços com as unhas,
meu rosto,
minha dignidade,
minha sanidade.
A água ferve, borbulha, derrama, mas eu não desligo o fogão.
Perdi as forças
Mas você não se importa.
Não é do seu feitio se importar.

Procuro algo teu pra queimar, mas não tenho nada.
Eu não tenho nada.
E preciso queimar algo
pra me sentir melhor, pra me sentir inteira
Não consigo respirar, não vou conseguir respirar
se não queimar algo que tenha significado algo pra você.

Então,
Olhos de ressaca,
eu pego a panela cheia de água fervendo, com toda a delicadeza do mundo, desligo o fogo, caminho até à pia
e despejo toda a água sobre o meu braço.
A pele fica vermelha, murcha sob meus olhos.
E eu digo a mim mesma que nunca senti tanta dor, que nada poderia me causar mais dor
mas não é verdade, é?

Não é verdade,
é?

37x15 Garotas bonitas e babacas

Imagem: TingTing Huang

Eu amo meu cabelo.

Eu sei, todo mundo sabe disso. Mas eu o amo.
Amo minhas roupas, amo o jeito maluco como me visto.

Eu beijo bem, ouvi dizer.
Não tem nada de muito errado comigo.
Quero dizer, fora o que há de errado comigo, mas isso você não sabe o que é. Ninguém sabe ainda.

Gosto do meu corpo.
Ele é ok.

Eu consigo falar sobre coisas.
Um pouco de história, literatura, música, cinema,
eu sei até mesmo enrolar quando não conheço o assunto.
Também sei onde tem café gostoso,
um lugar legal pra sentar,
música agradável.

Eu sei sorrir.
E posso usar maquiagem o suficiente pra parecer bonita.
Me vestir de maneira mais sexy ou mais feminina.
Alguns caras já até me disseram que eu era bonita.
Alguns caras já até gostaram de mim.

Hoje, eu dancei.
E acredito que posso ser quem eu quiser ser.
Ou poderia ser,
não fossem garotas bonitas
e babacas
me dizendo
que eu não sou bonita o bastante pra gostar de alguém
que eu não sou feminina o suficiente
que eu não sou sociável o bastante
ou que eu não sou atraente.

E eu acredito.
O pior é,
eu acredito.
Eu me olho no espelho e me sinto horrível.
Cansada, abatida,
eu só consigo ver minhas olheiras, meu cabelo bagunçado, meu corpo desproporcional,
a maneira como sou desajeitada.

Eu acredito,
eu concordo
que não sou bonita o bastante.

E a parte de mim que é forte grita,
e se irrita
porque eu acredito.
Eu sei que não é verdade, que eu sou tão bonita quanto eu quiser ser, porque as pessoas têm olhos diferentes.
Eu sei que vocês são tão inseguras quanto eu e disfarçam essa insegurança sendo maldosas, mesmo sem intenção.

Mas eu acredito.
E quantas outras garotas não acreditam também?
Quantas pessoas vocês fizeram com que se sentissem uma bosta porque vocês se sentem uma bosta?
Quantas, só hoje?

Bom, deixe-me dizer,
pelo menos uma.

Porque eu acredito em você
é impressionante,
é muito fácil
acreditar em você.

37x14 O Astronauta de Mármore

Imagem: TingTing Huang

- oi
Ele beija a minha boca, com essa doçura, essa vontade, essa espera.
Porra
Eu nunca tinha percebido que os olhos dele eram tão claros e marrons.

Gosto desse corte de cabelo, da familiaridade da sua boca e do seu cheiro na minha pele.
Gosto de você.
Só não te amo.

Eu preciso amar?

Tô confusa.
Eu não sei mais.
O que eu sei é que gosto de companhia.
De beijar na boca de quem quer a minha boca, A MINHA BOCA.
Gosto de andar de mãos dadas.
E aprender coisas.
De livros.
E de poesia.

Eu gosto,
muito.
Mas não amo.

Tô olhando minha estante de livros, como se ela fosse me dar a resposta, me dizer quem eu sou
o que eu quero
quem eu quero

E, filha da puta,
percebo
que os primeiros livros da fila,
todos os 12
são sobre amor.
Sobre ir atrás do que você quer.

Essa garota de olhos cor de violeta, que me ensinou que não dá pra confiar sempre nas pessoas. Elas nem sempre cumprem suas promessas.
E a vontade de alguém que fez com que esse cara arriscasse a vida,
esses dois que se encontraram por acaso e decidiram que ficar juntos era o certo,
o cara que brigou com a mãe pra ficar com essa garota meio velha demais,
tanto amor perdido nos contos curtos,
um menino tentando salvar a vida de outro,
amor verdadeiro na noite escura,
e nas ruas de londres,
nas ruazinhas de uma cidade, pobre Miranda,
tanto, tanto amor.

E eu só quero amor.

Gosto de companhia,
mãos dadas,
me sentir bonita,
das risadas,
aprender coisas,
beijar na boca,
livros
e poesia.

Eu gosto,
mas eu não amo.

E eu não posso simplesmente aceitar menos
eu não posso aceitar menos
eu não quero menos

mas também não sei se quero ficar só.

37x13 Você podia vir

Imagem: TingTing Huang

A gente se senta na mesa de um café chamado Serendipity. Eu tenho uma luva e você outra.
Você ri.
E, alguns segundos depois, eu me esqueci de como era o seu sorriso.
Não sei nem se você realmente sorriu.
Ou se eu sonhei.

Você toma seu café e fica constrangido com o meu silêncio repentino, começa um assunto ameno, que eu respondo da melhor maneira, sem conseguir parar de pensar em te beijar.

Oh, fuck.

Puta complicação, você tá me contando uma história sobre futebol, sobre essa garota de quem gosta, e eu não tô entendendo nada, não tô me entendendo.
A garçonete me traz um suco de laranja, te olha por tempo demais e eu sinto um puta ciúme, quero tirar satisfação, mas você nem percebe e volta a me dizer essas coisas que não entendo.

Você abre a boca, diz algo que rima com
eu te amo
mas era só uma coisa qualquer,
fico toda arrepiada à toa
porque você só tá tentando me explicar essa história que aconteceu em um filme,
sem nem saber que eu tô aqui pensando
se eu te amo,

se sou capaz de amar alguém,
no meio dessa dor do caralho,
nessa confusão de letras, rimas e com essa minha falta de foco.

Dou risada de algo que você diz,
mesmo sem ter entendido,
e você parece satisfeito
e isso me deixa feliz.

Mas não quer dizer nada.

Alguém me pergunta o que tô esperando que aconteça, de que provas preciso
da conformação perfeita das estrelas
a previsão exata no zodíaco me dizendo "VOCÊ ESTÁ APAIXONADA PELO CARA DE CAMISETA BRANCA"
a cura pra essa doença que é viver numa fantasia antiga
uma carta do tarô que signifique "ANDA, CARALHO"
um sonho que signifique que é você quem eu quero, sem dúvidas
uma mensagem, uma ligação no meio da noite
você, dizendo com todas as letras, sem hesitar,
que sou eu.

Você podia vir,
arrancar o chão sob os meus pés,
me beijar,
tirar meus livros da ordem,
deitar comigo pra ver as estrelas,

e, mesmo assim,
eu não acreditaria.

Então, termino meu suco de laranja, peço a conta, você me abraça, me deseja sorte, e vai embora, de volta pro seu mundo organizado e silencioso, meio mágico demais
e eu fico te olhando ir embora, sem saber se tô triste
sem saber se tô feliz

sem saber se te amo.

37x12 24 horas ou a assistente de mágico

Imagem: TingTing Huang

Começo meu aniversário estudando, tiro um cochilo, não consigo me concentrar nos meus pedidos, acordo, leio sobre Volvos Intestinais e agora tô escrevendo, cagando as tradições anuais.

Por que?
Annabel disse, no começo do mês "Não faça planos". E é por isso que aceito o que a vida deu, vou ao cinema acompanhada, almoço acompanhada, durmo, faço tudo errado, o livro que eu queria é caro demais, tô pensando em abandonar um pouco as tradições e só fazer o que tiver que fazer, quando tiver que fazer.

Acendi uma vela na janela,
mas não soube o que pedir.

Coragem, sempre, essencial, maravilhosa. Mas tem mais alguma coisa. Tem outra coisa de que preciso.
Porra, que ano longo.

E eu tô viva, minha boca tem o gosto horrível de sono, eu tô estranhamente descansada (pra quem só dormiu uma hora e tem que acordar daqui a pouco), estranhamente calma. Daqui a pouco, começam a chegar as mensagens, os abraços.
E eu estou viva.

Às vezes, eu não tenho certeza de quanto consigo aguentar, de qual é o meu limiar de dor e incerteza. Se eu vou estar aqui pra ler todos esses livros na minha estante. Então, eu me sento aqui, na frente da estante, e eu desejo, com todo o meu coração, estar aqui pra ler "O teorema Katherine".
Ler "The solitude of prime numbers", que eu comprei pra um homem que já não amo mais, e que não me ama mais.
Quero chegar o fim do semestre lendo "Nick & Norah", pra me lembrar de quando eu era uma romântica incurável, pra ler com esses meus olhos mais velhos, mais cínicos.

Eu tô viva e eu gosto disso.
Gosto das possibilidades.
Gosto do meu corpo, sou apaixonada pela textura dos meus cabelos, eu tenho que tomar decisões diariamente e lembrar a mim mesma que eu consigo fazer isso.

Eu não tenho a menor ideia do que acontece daqui pra frente.
Mas eu quero descobrir.
E isso me surpreende.

Eu quero sair de casa.
Conhecer pessoas.
Eu quero sentar em algum lugar dessa cidade com vento soprando, e quero sentir que dá pra respirar. Que tem ar suficiente pra mim aqui.

Eu quero usar um vestido azul.
E transformar meu corpo em uma onda.
Eu quero esperar. Pelo cara certo, no momento certo. Tô mesmo cansada de magoar as pessoas, de acordos e de sentir que tô perdendo tempo. Eu não consigo mais fingir gostar, eu quero sentir muito.
Eu quero te deixar pra trás, assim como as coisas que eu nunca disse a ninguém.
Eu quero o que a vida tiver pra oferecer, o que eu quiser aceitar.
Não sou madura o suficiente pra pedir essa coisa, essa pessoa. Arregalei os olhos só de pensar que, talvez, seja isso o que eu queira pra vida. Não. Definitivamente, não.
Bom, eu quero acordar de manhã.
E eu quero voltar pra casa sã e salva.
Eu quero retribuir o amor das pessoas, preciso aprender a fazer isso porque me mata um pouquinho cada vez que tenho que ouvir alguém que amo me dizer que acha que não sinto o mesmo que esse alguém sente por mim.
Eu quero me apaixonar. Bilateral, por favor, gênios dos aniversários.

Ano passado, eu quis bravura.
Coragem pra fazer tudo e mais um pouco.
E eu consegui.
Eu fiz tudo,
eu me declarei
eu falei em público
eu tirei minhas roupas
beijei todo o mundo
viajei
briguei
decidi
aceitei
pedi desculpas
e não pedi desculpas
falei o que me veio à cabeça

Esse ano, eu preciso de esforço, de força.
Preciso me aprumar,
forçar minha entrada no caminho certo,
no caminho errado.
Preciso de força, preciso de foco
preciso de esforço.
Preciso de esforço pra levantar da cama pela manhã e pra dormir à noite,
pra respirar
pra ser o melhor que eu puder ser.

Vela na janela, podemos começar de novo?

Eu desejo, eu desejo, eu desejo
Força
de vontade
de atrito
de aceleração
empuxo
de expressão
daquele tipo que mantém a galáxia coesa.

Sopro a vela,
escovo meus dentes,
nem sei se vou acordar daqui a pouco,
mas tenho que acreditar que vou.
E partir daí.

O que vier, eu aceito.

Feliz aniversário.
Pra mim,
de mim.

37x11 Wild Things

Imagem: TingTing Huang

Penteio os cabelos, eu jogo estrelas no chão onde piso, estrelas pra cima, estrelas no rosto, no corpo todo:
eu tô feliz.
Tô feliz, sem remédio, sem droga, sem horóscopo.
Um amor me traz um bolo,
salgadinhos pra comer,
e todo esse amor contido, todo esse sentimento escondido, tanto, que eu nem sei direito o que fazer com ele.
Daí elas entram feito musas, feito ninfas, me tiram do prumo, me colocam no rumo, me deixam doida.
Eu sinto dor,
mas ela não é maior do que eu.
Então, eu tomo um remédio
E saímos pela cidade atrás de bolas de gude, um cinema e uma estátua.
Rapazes de chapéu me cumprimentam quando chego,
e meu melhor amigo de arco íris me dá morte, sentimentos ocultos e uma foto pra guardar com carinho.
Eu tô a 1000 por hora, tô enlouquecendo com a alegria que me dá cada toque,
abraço tanta gente que meus braços doem, abraço até quem já me magoou,
abraço esse cara e digo a ele que ele tem uma puta coragem,
conheço essa garota que já povoou essas histórias das quais nunca fiz parte, das quais nunca mais farei parte,
e eu gosto da ideia
de sentar no colo do meu melhor amigo
e de secar as lágrimas do amor da minha vida
de tocar as pessoas e de nunca me sentar, não comer nada a noite inteira,
de dar risada disso e daquilo, de reencontrar amores antigos
e ouvir as pessoas disputando a minha atenção, insanas,
uma mulher me liga e eu percebo que a amo, e que ela me ama.
Assim como a minha mãe, que demonstra seu amor por mim limpando meu fogão, sem me conhecer nem um pouco, mas me conhecendo muito mais do que eu me conheço.
Eu tô bebendo cerveja e vodka, só porque quero passar um tempo com essas pessoas que estão aqui me dando seu tempo, cada uma delas, cada vez que eu jogo um dado, que eu toco um braço, que eu digo um adeus,
eu quero dizer
eu te amo
e David tinha razão, eu não posso amar ninguém enquanto não deixar de amar todo mundo
e eu não quero deixar de amar todo mundo.
Porque, no final da noite,
eu cheguei em casa
cobri os pés do meu melhor amigo,
li essa carta incrível,
e percebi
que eu passei uma noite inteira
sem ter medo.

Nem um pouco.
Que eu não tive que parar pra respirar nem um segundo, nem tive que fugir de tudo em busca de um ar que não dava pra puxar, simplesmente.

Obrigada, obrigada
Porque eu sei que terei medo de novo quando a manhã chegar, quando algo acontecer.
Mas foi quase como se tudo estivesse normal, como se nada tivesse acontecido
E foi incrível,
selvagem.

Existe um lugar onde não somos julgados, onde podemos ser livres. Um lugar nas nossas cabeças, disse Alessia.
Mas o meu é aqui.
É onde vocês estão.
Onde eu posso ser eu mesma, me vestir como quiser, dizer o que quiser, ouvir segredos e amar todas as pessoas, sem precisar me esconder ou dosar, sem precisar me curar, sem precisar chorar ou gritar.
Ou parar pra respirar.

Se eu pudesse, colocaria essa noite em um frasco e levaria comigo por aí, pra tomar sempre que eu tivesse medo, muito medo
de ser quem eu sou.

37x10 Heartbreak Hotel

Imagem: TingTing Huang

Chuva torrencial lá fora, abro a porta, fazendo tocar o sininho
Que dia horrível

Eu me arrasto até o fundo do restaurante, pra tomar um café amargo feito a vida, enquanto leio notícias horríveis no jornal.

Sento no balcão e sujo minha roupa de café velho, derramado mais cedo por alguma outra pobre alma.
A garçonete se aproxima, obviamente num dia terrível, e é extremamente rude comigo porque demoro a decidir entre o de sempre e qualquer outra coisa.
Suspira, nervosa, quando escolho o de sempre, após ler o cardápio inteiro 8 vezes.

- Nos encontramos de novo. - diz um homem, cabeça raspada, todo molhado. Agasalho preto, jeans e all stars marrons. Ele sorri pra mim e se senta no balcão, ao meu lado, pede um café sem açúcar e segura o copo com as mãos brancas e molhadas de chuva.
- Café sem açúcar. Nojento. Prefiro a morte. - resmunga um outro cara, que se senta numa das mesas pra ler um livro enorme. Ele pede panquecas, ovos e bacon e eu até avisaria a ele que são mais nojentas ainda, que o bacon é gorduroso e estranho, as panquecas tem gosto de farinha e os ovos sempre vêm meio crus, mas
não digo nada.

Um conhecido me cumprimenta, mas não para pra conversar sobre a morte, ele simplesmente compra cigarros e fuma lá dentro mesmo, me deixando com dor de cabeça.
Um homem irritado se levanta pra ir embora, mas ele não vai. Apenas fica e resmunga, sozinho.

Eu bebo meu café até o final, enojada, enquanto observo um cara do outro lado do balcão, olhando pro nada, ignorando o fato de que estamos aqui, que está chovendo, que o café é terrível, que essa fumaça vai nos deixar doentes, que a vida é horrível.
Uma garota bebe chá amargo, enquanto lê "Lolita".
Algum cara grita do banheiro se alguém viu sua camiseta por aí e todos o ignoram.
Tamborilo os dedos pela mesa, tentando me lembrar
como vim parar aqui. De novo.

Aponto para Otto, que cantarola, baixinho, "Piledriver Waltz"
- Foi você? Eu estou aqui por sua causa?
- Não. Não estamos nos falando, lembra?
- Aaah, sim. Bom, então... ele?
Aponto pro cara sentado na mesa, que resmunga pra caralho quando descobre que as panquecas são horríveis, mas não reclama. Ninguém aqui reclama de nada.
- Não. E, cá entre nós, sério? Quero dizer, sério???
Eu daria risada, se não fosse tão trágico. Ao invés disso, esquadrinho o salão atrás de alguém que possa me explicar exatamente como vim parar aqui.

Olho pra fora, o dia cinza perde as formas e a chuva transforma todas as pessoas que passam pelas ruas em borrões de tinta.
Lá fora, um homem bate no vidro, sem saber como entrar.
Eu me levanto pra ajudar, mas Otto segura meu cotovelo
- Não. Não deixe que ele entre.
- Está chovendo lá fora!
- Está melhor do que aqui dentro, acredite em mim. Não abra a porta.
E eu me sento de volta e fico olhando, olhando, olhando
esperando que ele se dissolva de alguma forma, vá pra casa
"vá pra casa", eu sussurro, como um feitiço,
mas ele não vai.

- Vai ficar aí o dia inteiro ou vai pedir mais alguma coisa? - pergunta a garçonete
- Estou satisfeita, obrigada. Só esperando a chuva passar.
Ela pisca, lentamente, e volta a limpar as mesas e ouvir os resmungos.
E eu fico, sentada, ouvindo o ruído das pessoas, das páginas, da caneta no papel desse cara que está tentando escrever algo legal, e esperando que você pare de bater e vá embora.
Mas você não vai embora.
"vá pra casa"

- Ele pode até ir, sabe? Mas ele vai voltar. - diz Otto, atrás de mim.
- Por que? Por que ele faria isso? Esse lugar é horrível
E então ele sorri, do jeito dele de quem quase nunca sorri, e meu estômago dá uns pulinhos.
- Bom, você sempre volta, certo?

É, eu sempre volto.

37x09 Céu cinzento

Imagem: TingTing Huang

Ela me conta um segredo no meio da noite. Sobre meu futuro, me diz o que eu quero saber, o que eu quero ouvir.

E eu a sinto, de novo, debaixo das unhas: esperança.

B., você não pode ficar pensando nisso, esqueça isso.

Leio sobre insulinoterapia, assisto Desperate Housewives, lavo meus cabelos: eu não tenho tempo para o futuro.

Começo a ficar sem ar,
respire,
respire,
respire
tem ar suficiente aqui pra você.

Começo a surtar.

Boca seca, não consigo respirar,
a voz dela não sai da minha cabeça
estou livre.

Jack me manda mensagem, sente o cheiro de longe,
eu tenho esse sonho,
e esbarro em Connor pela manhã,
Martín me dá oi. Duas vezes na mesma manhã.

Começou, eu acho.

A excitação, essa coisa expandindo dentro do meu estômago, minha cabeça pesa, boca seca,
esse cheiro,
esse cheiro
esse cheiro

Entro em casa, tranco a porta
Preciso ter certeza.

Não quero mais magoar ninguém,
não quero mais me magoar.

37x08 Filhas de Ananse

Imagem: TingTing Huang

Sinto um palpitar diferente no peito, cheiro de mato e animais molhados.
- Papai está vindo, digo a ela.
Ela me olha, inexpressiva, pega seu pão e seu café e vai se trancar no quarto.

Uma aranha entra pela janela, sobre na pia, cria uma teia bonita, bem rápido, e fica se balançando nela, me hipnotizando.
Alguém bate à porta.
Não me levanto da mesa para abrir. Batem novamente.
Eu continuo sentada, comendo.
- Não vai abrir? - diz a voz de meu pai, atrás de mim.
Levanto da cadeira e o abraço. Ele cheira a sol, terra seca, resina, mato, talco.
- Senti sua falta.
Ele sorri e me dá a mão, que eu beijo "bença, pai", e ele sorri mais, satisfeito, e me abençoa. E eu me sinto abençoada, sinto o cheiro da terra molhada do lugar onde nasci, e o gosto das palavras do povo.

Pego um prato no armário, uma xícara lascada, mas bonita, e me viro pra entregar pra ele. Mas ele já está comendo, croissants e suco de laranja.
- Trouxe da viagem, explica.
Comemos.
Ele seu croissant, eu meu pão.
Meu pai é a única pessoa que gosto de olhar enquanto come. Tudo nele conta ou remonta a uma história.
Laranjas, seu cabelo rareando, suas camisas, os fios brancos de sua barba, seus jeans antiquados, seu chapéu - porque, sim, é claro que ele tem um chapéu -, seus olhos castanhos que já viram o mundo inteiro, ele já foi todas as coisas do mundo.
Ele já foi até meu pai, e ainda é, em dias como esse.

- Pai?
- Hmm?
- Tá tudo bem?
- Sim.
E ele sorri e me deixa entrever por baixo da pele, das histórias, seus muitos olhos, me olhando, brilhando, feito um céu estrelado. Meu pai.
Ele termina de comer, limpa a boca e o bigode sujos, pega a minha mão e a beija.
Levanta-se, pega o chapéu, aponta na direção da porta do quarto da minha irmã e eu sacudo a cabeça
"Ainda não"
Ele dá de ombros, sorri, pisca pra mim e, sem dizer adeus, desaparece, mais uma vez.

Eu o amo, meu pai.
Mas eu não posso deixar de me perguntar, às vezes, em dias como esse,
como seria ter um pai normal, sem tantas histórias guardadas num baú, como seria um pai sem tantos inimigos, sem tantas confusões, que voltasse pra casa todos os dias sem falta
Um pai mais humano, menos Ananse.

Penso nisso, retiro a louça da mesa e, por impulso, bebo o resto de suco no copo dele.
E o gosto me atinge feito uma carícia de um amante, faz com que meu coração dispare e me acalma, ao mesmo tempo.
Divino.
Sento na cadeira, saboreando o gosto na boca e, percebo
ter um pai normal,
bom,

talvez não fosse tão bom.

37x07 Crush

Imagem: TingTing Huang

- Você já parou pra pensar que, talvez, alguém goste da gente assim também? Em segredo, eu quero dizer. E que a gente nunca vai saber?

Não.
Não, nunca pensei nisso.

Começo a sentir a dor familiar no peito, a respiração acelera.
Acalme-se.

Tô pensando.
Pensando nessa pessoa me observando passar, falando comigo ou não falando comigo.
Tô pensando em como é terrível essa realização de que tudo o que tá acontecendo só vai acontecer na sua cabeça.
Tô pensando em como é nunca conhecer a textura da boca de quem você ama em silêncio.
Tô pensando no quão sufocante é nunca conseguir dizer o que se sente.
E tô sufocando.
Tô pensando, tô pensando.

Em todas as vezes que eu quis dizer qualquer coisa
Todas as cartas não escritas, ou escritas e rasgadas
Tô pensando no que é gostar de alguém desse jeitinho bom, e essa pessoa nunca te notar.
Pensando nas pessoas por quem passo todos os dias e digo "oi", dou um sorriso, mas que não significam nada pra mim.
Tô pensando se eu significo algo pra elas.
Tô pensando em possibilidades tétricas, na mágoa que causei pra alguém que nem conheço, na bravura, no alívio que é dizer o que se sente, na crueldade que é ter que esconder o que a gente sente e pensa.
Tô pensando nas oportunidades perdidas,
pensando na poesia que uma dessas pessoas contém.
Tô pensando em como deve ser esquisito gostar de mim, porque eu não presto muita atenção à maior parte das pessoas, mas também acho que ninguém presta.
Tô pensando na distância entre as pessoas, pensando que ninguém sabe muito sobre mim, em poesia e tô assustada com a possibilidade de uma pessoa que possivelmente nem existe.

Que eu espero que não exista,
que droga.
Eu não desejo isso pra ninguém.
É, é legal ter quem goste de você. Mas não é legal gostar sozinho.  Definitivamente, não é.
Então, não faça isso.

Eu nunca pensei em você antes.
Mas tô pensando agora, tô desejando que você não exista.
Mas, caso você exista,
fale comigo.
Me chame pra um café, que eu provavelmente não vou tomar.
Gosto de sorvete.
Seja corajoso.

Sim, não.
Qualquer coisa é melhor do que
"E se?"

37x06 I love your new glasses

Imagem: TingTing Huang

Eu nasci feia.
Mas também nasci muitas coisas, percebo agora.

Nasci bonita, aos olhos de mamãe.
Mas era feia, eu vi as fotos.

Cresci, e ainda era feia.
Mas tinha algo, sempre teve algo, um instinto animal, a capacidade de algo, e eu consegui não afugentar as pessoas com a feiura do meu rosto e a feiura do meu coração.

Eu sou feia.
Era feia quando eu o conheci.
E ele olhou pra mim, e eu me amei porque ele me amou.
Continuava feia, horrenda.
Mas tudo bem,
tudo bem, quando é assim.

Eu sou feia.
Espinhas no rosto, pele oleosa, um nariz que não me cabe direito no centro, boca fina sem nada pra oferecer, meu corpo é magro e ossudo, desajeitado.
Feio.
Eu sou feia.

Eu sou feia aos olhos das pessoas,
dos meus amigos,
dos homens
das mulheres

E, por muito tempo, eu me escondi sob uma capa de sarcasmo, comédia e mistério, sangue e desinteresse, cansada de olhar nos olhos das pessoas erradas e acreditar que o que eles veem é o que é real.

Aí eu fiz alguns testes.
Deus sabe que eu adoro brincar com a cabeça das pessoas, com a minha cabeça
e eu percebi
que elas só podem ver o que eu vejo.

Eu não preciso olhar pra alguém pra me enxergar.
Eu não preciso nem ver.

Porque eu passei muito tempo de cabeça baixa,
esperando que alguém viesse me dar significado, que alguém me dissesse o que ser, onde ficar, Calibã
Ouvindo vozes
e comentários estúpidos de gente estúpida que não quer ser magoada mas só sabe fazer isso com as pessoas
até perceber, talvez meio tarde,
que as pessoas só verão o que eu deixar.

Sou feia.
Em muitos sentidos, a feiura é parte integrante da minha vida.
Mas, se eu acordo pela manhã
lavo meus cabelos e os penteio até o braço doer,
se eu escolho minhas roupas com todo o cuidado do mundo,
se eu bagunço meus cabelos, dou risada de mim mesma,
se eu digo, afirmo "continuo linda", "sou maravilhosa, rainha do mundo"
as pessoas compram.
Até eu compro, às vezes, chego em casa, me olho no espelho, passo o famigerado batom e dou uma piscadela para a mentira que eu tenho que contar todos os dias.

Eu não me tornei bonita.
Eu sou feia.
"Você se acha muito, colocou uma foto mostrando parte dos peitos no facebook, teu ego é enorme, gostei do que você fez no cabelo"
O obrigada sai, automaticamente, mudo de assunto, desvio a atenção
E passo.

Assim, só.
Eu passo.

Se eu tentasse explicar o que tô tentando provar,
o que tô tentando entender,
nem conseguiria.

Pode ser o choque de ver o teu rosto inchado de chorar pela ameaça à tua beleza,
pode ser só uma coisa que uma garota me disse no semestre passado e não sai da minha cabeça,

ou tô tentando me distrair da aflição constante que é estar viva,
criando uma nova identidade
pra nunca mais precisar passar, de novo, pelo que aconteceu naquela noite.

37x05 As razões do corpo

Imagem: TingTing Huang

- Ei. - eu digo, por não saber o que dizer.
Ela me olha, olhos vazios
- Por que?

Eu não sei.

O corpo tem suas razões desconhecidas. Ele fala.
Fala comigo, fala por mim.

Esquece.
Esquece números, datas, meu nome, grampeadores, coisas ruins.
Ela me diz que não quer esquecer.
Mas o corpo tem suas razões.
O corpo sabe que lembrar demais também não faz bem.

Paro de dormir.
Sinto dores inexplicáveis, uma falta de ar que não passa.
Tá tudo bem, finjo.
Mas o corpo sabe, chama minha atenção em pesadelos diurnos, distração excessiva
"Eu sei o que houve. Você sabe o que houve, e você não vai esquecer, não agora"
Então eu oscilo
Alerta
Desligada do mundo, de mim.

Ela senta no carro e chora
Chora, chora,
essas coisas não têm explicação
São as razões do corpo.
Ele me diz o que você não pode dizer,
não sabe dizer
não quer dizer

Vomita no chão,
uma coceira que não passa
coça tanto que até eu me coço
O corpo tem suas razões

Paro o carro no meio do nada,
chuva fraca caindo do céu
e eu percebo que tô tentando explicar Deus
Quero aceitar que o corpo tem suas razões
enquanto minha amiga pensa em nunca ter filhos
olha-se no espelho e começa a chorar
passa a maior parte do tempo dopada demais pra saber quem eu sou
tem essa raiva contida do mundo todo
pesadelos ridículos e absurdos
o corpo caindo as pedaços, enquanto a gente tenta tapar os buracos, colar o que cai
emagrece, alimentando-se de si mesma,
me acorda no meio da noite, com essa dor que não sabe de onde vem
essa coceira que não sabe o que é
um tumor crescendo na cabeça de uma criança
e as veias explodindo na cabeça de uma mulher que nunca conheci

O corpo tem suas razões,
mas eu não sei quais são.

37x04 Lacuna Inc.

Imagem: TingTing Huang

"Dear Mr. & Mrs. ____________

B. has had _________________ erased from her memory. Please, never mention their relationship to B. again.

Thank you"

Estou sentada.

Dragon Maker me disse pra queimar tudo, "queime tudo, eu te ajudo".

E eu cheguei em casa e queimei.
Por dentro e por fora.

"Quem sou eu?"

Eu me sento na frente do espelho e desembaraço meus cabelos, e algo faz falta. Algo de que não me lembro. Espaços vazios na estante de livros, algo, algo sobre
cores.
Estou sentada olhando a minha parede, cheia, cheia de figuras de mulheres, nomes de lugares pra onde talvez eu nunca vá, o armário cheio e vazio, ao mesmo tempo.

"Quem sou eu?"

Subo as escadas, paro no primeiro lance, olho pra baixo.
Mas ninguém bateu à porta.
Me enganei.

Paro à porta, quando a luz acende, como se uma lembrança estivesse sumindo aos poucos, fugindo, enquanto eu tento agarrá-la, sinto vontade de tapar meus olhos, mas algo está errado.
Sacudo a cabeça, entro em casa.

E está tudo aqui.
Não está?
Eu não sei.
Pego vasilhas e panelas pra cozinhar, como tenho espaço, tanto espaço, tanto espaço em todos os lugares.
Abro as janelas, olho pra lua, olha essa lua, "olhe essa lua", eu digo.
Mas não tem ninguém pra ouvir.
Viro de costas e dou de cara com a porta fechada.

E tem algo, tem algo de que eu deveria me lembrar.
Algo que preciso fazer, talvez, algo pra comprar
Abro a porta do quarto, acendo a luz.
Eu não me lembro.
Mas
A sensação é incômoda demais.
É quase como se

Se o quê?
Já não me lembro mais.

Entro no banheiro, lavo os cabelos com água quente, lavo o rosto, escovo os dentes, me olho no espelho
"Quem sou eu?"

E isso me incomoda por alguns minutos, minutos intensos, em que eu me olho nos olhos, como se fosse encontrar neles a resposta pra todas essas sensações.
Aí eu me lembro que eu sei quem sou

Sou quem eu quiser ser.

E tudo fica bem no mundo.

37x03 Vagabunda

Imagem: TingTing Huang

Eu beijo a sua boca pensando na boca dele.
Eu durmo na tua cama, e em outras tantas.
O meu corpo é meu.
E é por isso que te digo não.

Porque não quero. Hoje não.
E também não quero te amar. Não, não quero.

Beijo e não nego, não minto, eu não tenho amor pra dar, eu sou sincera.
Nada pra oferecer.

O meu corpo é meu, e eu não posso oferecer isso, eu não vou me dar pra ninguém.
Eu vou te magoar com a verdade, com a minha força de vontade, com a tristeza que não me larga.

Vou querer você,
vez sim,
vez não.

E beijar quem quiser, quando quiser
sem querer demais,
sem querer que me queiram demais.

Vou morder a tua boca e te puxar pro meu mundo, mas não muito, não tanto quanto você pensa porque eu não te quero pra mim.
E não quero ser sua.

Ninguém mais vai me machucar,

E você pode até dizer por aí que eu sou uma vagabunda,
piranha,
que não ligo pro que as pessoas sentem.

Bem, a depender da sua definição pra essas coisas,
você não vai estar errado.

Eu sou muitas coisas, muitas, muitas coisas, tantas que às vezes nem me lembro.
Se vagabunda e piranha estiverem entre elas,
eu não vou me surpreender.

37x02 Brisa

Imagem: TingTing Huang

Tô meio drogada, bêbada, 222 mensagens no celular por abrir e o meu melhor amigo de qualquer coisa a quilômetros de distância, incapaz de me proteger de mim mesma.

Qualquer pessoa a quilômetros de distância, em outro universo.

Tenho sim, teu endereço, tenho o teu número, tenho com quem falar, a quem beijar, com quem dormir.

- Me beija, então.
Me abraça, dorme comigo.
Tiro a blusa, fico nua e você olha através de mim.
Meu Deus, tem tanta gente no mundo, não pode ser você.

A voz na minha cabeça, sábia, concorda.

Se fosse ele, B., ele estaria aqui.
A gente não dá as costas pra quem ama.

Então tá bem.
Se você diz,
deve ser verdade.

37x01 The Killing Stroke

Imagem: TingTing Huang

(Bom, esse texto é baseado em um conto de Donaldson "The Killing Stroke". Confuso. Mas eu partilho da mesma sensação dos três prisioneiros. Às vezes, é como se eu estivesse constantemente perdendo a batalha, perdendo a memória, presa, sem entender o porquê ou quem me prendeu. Eu só queria vencer. Eu só queria vencer pra não ter mais que voltar)

Acordei desorientada, no quarto sem janelas, iluminado por luzes vindas de lugar nenhum: magia.

Sentados a um canto, um homem e uma mulher me observavam, em silêncio.

- Quem...- comecei.
- Não sabemos - respondeu a mulher - não sabemos. Eu sou Isla. Esse é Asper.

Abro a boca pra perguntar onde estamos, mas ela já parece saber tudo o que vou dizer. Todas as respostas são vagas, me conta coisas que mal compreendo, enquanto ouço, em silêncio.

A dor no meu corpo, meus ferimentos, foram provocados na batalha diária que tenho travado fora do quarto com um oponente misterioso, ela me diz. Ao final da batalha, quando eu perco, retorno a essa prisão, onde nos encontramos, ela supõe.
- Você precisa matá-lo. Precisa do golpe fatal, the killing stroke.
- Isso não existe, digo.
- Já discutimos isso antes, ela diz, impaciente. Tem que existir. Tem que ser a razão pra que você tenha sido escolhida pra lutar. É a única coisa que desconhecemos. Você é especial, você tem que ser especial.
- Não existe.

Meu nariz sangra e tento estancar com a mão. Ela me bate, impaciente.
- Você vai se curar logo, não se preocupe. Por fora, pelo menos.

À noite, durmo no chão e sonho com um homem sem rosto que me surra sem parar, enquanto imploro pela minha vida. Com a voz de Isla, ele me diz que sou especial e me soca o rosto com força.
Acordo tremendo, balbuciando, e meu olhar encontra o de Asper, que continua vigilante, silencioso.
Ele se levanta e senta perto de mim. Sinto uma coisa boa, como se fôssemos velhos amigos, embora não me lembre dele.
- Você precisa matá-lo. Se você não fizer isso, vamos ficar presos aqui. Vamos ficar aqui pra sempre.
- Eu não posso. Não existe tal coisa, não existe um "killing stroke", Asper.

Ele fecha os olhos e fica em silêncio, tão imóvel, que parece dormir.
Eu me deito de novo no chão, com medo de fechar os olhos, e com medo de admitir que estou com medo.
- Não existe, Asper, eu sinto muito.
Ele abre os olhos e me encara por um longo período de tempo.

- Espero que alguém tenha dito isso a ele.

36x21 Ar (Season Finale)

Imagem: TingTing Huang

Eu preciso de ar.
Tento respirar, mas essas paredes me apertam, você aperta.

Então eu saio, descalça, na chuva e respiro. Meu Deus, eu respiro.

Milhares de pessoas dentro de mim colocam as cabeças pra foda d'água e respiram, levantam e saem da água.

Uma sereia tenta desembaraçar o meu cabelo duro e sujo de glitter,eu ouço ruídos de trovão, mas é só o barulho do colchão quando me movimento durante a noite.
Chuck rosna pras tuas mãos e pras mãos dela e eu sinto que vou vomitar, então uma garota asiática segura meu rosto no escuro, beija meus dedos,
mas Alex me diz que não tem nada a oferecer.

Dimitri me olha nos olhos, toca a minha pele, alguém me abraça e eu sinto uma vontade incontrolável de cantar, mas eu não consigo respirar, eu não consigo respirar porque os cabelos de Sofia estão presos em um coque, porque ela está sentada e eu não estou.

Eu preciso de ar, e tremo de frio, e quero morrer de frio, no meio da calçada suja, com os pés sujos, então Annabelle me dá um abraço gelado, e me toca como se me amasse, como se eu fosse especial, ela me diz coisas, me dá as costas e um menino chamado Vincent não beija a minha boca, por que ele não beija a minha boca?, eu preciso de ar, mas você não sopra, você não sopra
Um dos irmãos Edson chora na minha frente e
Por que?
Pippa me segura forte pra que eu não caia de joelhos no meio da rua, eu não consigo entender porque é que ele chora, então ela tapa meus ouvidos
mas eu posso ouvir, Pippa
eu posso ouvir, e meus ouvidos sangram mesmo que eu não entenda o que Augustus está dizendo para Annaliese. Ele a beija, e ela muda de cor e forma, é Annaliese, Henrietta, Helen, Maurício, Maria, Otto.
É mágica.
Sinto vontade de vomitar e procuro uma lixeira, meu telefone toca e eu percebo que não o trouxe.
Não é pra mim,
Marcella atende e
Ulrika fala comigo, ela fala comigo, ela fala comigo sem mover os lábios
Mas eu só quero beijá-la, eu só quero beijá-la.
Ela abre a boca e sopra fumaça no meu rosto, tanta fumaça que ela precisa de coragem,
e eu me lembro que tô sozinha no frio, na chuva, que tô enlouquecendo, de novo.
Então, misericordiosa, L. arranca meu coração todo fodido, sangue coagulado aos montes, e eu vomito, sem saber onde estou.

Eu preciso de ar, e o trem do metrô traz uma lufada de vento, e eu quero, eu quero ir com ele, eu preciso de ar, seguro a tua blusa, sem saber quem você é, e puxo, e peço
sopre ar em mim, sopre ar em mim.

Mas você se desvencilha, dizendo que só quem sopra vida é Deus,
e Deus não existe.

36x20 Women

Imagem: TingTing Huang

Ela me deu a mão,
eu dei a minha mão,
e a fila foi crescendo, demos as mãos umas às outras e éramos muitas, estávamos juntas, em uma dessas conexões difíceis de se encontrar por aí.

Eu estava em casa, amazona perdida num mundo que não era meu, com pessoas que não eram minhas, e prédios e homens partindo meu coração que era meu, que não podia ser partido.

Não, eu sou meu próprio conquistador.
Elas gritaram e minha pele ficou arrepiada, pensei em você, tão distante, do outro lado do seu mundo, e me senti um pouco mal por não ter sido o bastante pra mim.
Alguém me ouviu pensar e gritou mais alto,
por mim, por ela e por todas as garotas do mundo que acham que estão sozinhas.

Por todas as garotas no mundo que acreditam que a vida é só isso, só esse constante apanhar de tudo e de todos, eu abri minha boca e gritei de verdade, mesmo sem conhecer as palavras, só pra que elas ouvissem o som da minha voz.
De cada cama, de cada cativeiro, em cada sonho, em cada pesadelo,
eu gritei,
tão alto quando pude,
pras garotas sem rosto das histórias que escutei.

Somos muitas aqui, somos muitas mais.

Não é sobre poder, é sobre poder fazer coisas.
Coisas que pessoas fazem.

Gritei bem alto, com toda a força dos meus pulmões, pra
você
pra você entender, pra você saber
que pode discordar dessa luta, pode cuspir na minha cara, pode dizer o que quiser
e eu ainda vou gritar por você.
E eu vou gritar dobrado pra cobrir o teu silêncio com mais luta.

Porque eu tô lutando pra que você possa me criticar
pra que você possa falar
e fazer sexo com quem quiser, quando quiser
ganhar dinheiro pra satisfazer as vaidades que você diz que não tenho
viajar sozinha
e se casar e ter filhos quando e com quem quiser, mesmo que você diga que eu nunca serei capaz disso.

Eu vou gritar
e tirar minha blusa
e brigar com quem tiver que brigar
eu vou apanhar por cada uma delas, se tiver que fazer isso
porque somos muitas
porque eu sou muitas

e estamos juntas.

36x19 Take Responsibility

Imagem: TingTing Huang

Eu me recuso a enlouquecer.
Eu me recuso a chorar mais uma lágrima sequer, pela penumbra, teu riso ou o ruído tardio dos teus passos.

Eu tomo a responsabilidade pela minha dor.
A minha dor é causada por mim, não por você, pela sua boca ou sua rudeza.

Magoar as pessoas é impessoal,
não tem rosto, não tem meu corpo o alvo dos teus golpes.

Mas o meu alvo tem meu rosto, minha boca e minha voz e eu teimo em me deixar magoar e ruir e sussurrar fatos e mentiras, canções e sonhos em meus ouvidos sujos e doloridos.

Eu me responsabilizo pela dor que cativei pra mim, que me corta e me assusta, queima e embaraça.
Eu tenho deixado a dor me consumir, vermelha e azul, queimar minhas asas grandes.

Eu assumo a minha dor, eu grito, eu grito "MAGOAR AS PESSOAS É IMPESSOAL.

Mas será que é?

36x18 Hollaback Girl

Imagem: TingTing Huang

Stephanie.

E foi assim eu beijei uma garota pela primeira vez.
Hollaback girl, minha juba esvoaçando, eu suava com o esforço e ansiava pelo fim da festa, por beijos há muito esperados.

Ela surgiu do meio das luzes, etérea, magra, pequena, cabelo escuro, roupas pretas, me perguntou sobre beijos e eu tinha um beijo pra dar. Dois. Estava guardando.
Eu tinha amor, o toque das minhas mãos, eu tinha dois mundos e muita dor pra oferecer.

Beijei-a.

Não era a garota certa, a que esperei durante anos, Berenice, Ulrika, mas era o certo naquela hora, sua boca macia, ascendente em Peixes, vida em Macaé, beijei sua boca porque sim, não porque a amava.

Eu guardei esse beijo, esse dedal, por muitos e muitos anos. E ela nem sabe. Nunca vai saber. Guardei pra uma garota que eu amei, que eu viesse a amar. Que me desse vontade de fazer cafuné, cujo corpo eu admirasse todos os dias, sem falta.
Eu guardei pra essa garota que eu quisesse ouvir falar da vida, do mundo, da morte, da mãe.
Pra alguém pra quem eu não quisesse mais mentir.
Que me fizesse querer voltar pra casa, uma pessoa a quem eu fizesse sentir bem, que me chamasse de lar.
Uma garota pra quem eu escreveria poesias, quebraria pratos, bateria portas, levaria flores e abriria as janelas pra arejar a casa.

Mas essa garota não existe, existe?
Não, eu a inventei.
Assim como invento as pessoas que quero amar e tento enfiar pessoas reais nesses moldes, causando dor e sofrimento pra gente que não tem nada a ver com as minhas loucuras.

Eu a beijei. Seu beijo era bom, sua boca macia, seu corpo tão frágil que eu tive medo de quebrá-la, que eu não sabia onde pegar, o que fazer.
Foi bom.

Não era a garota certa,
mas era o momento certo,
ou talvez isso nem exista e eu só esteja tentando enfiar significado em coisas que não o possuem.

Beijos,
Rejeições,
Amor.

Bom, garota certa, onde quer que você esteja, caso você exista:
não venha.
Fique onde está. A salvo.
Fique onde está,
e vai ficar tudo bem.

O mundo é grande,
você não tem que passar por isso.
Ninguém tem.

36x17 Whispers

Imagem: TingTing Huang

Dor de barriga, ando sozinha pelo piso frio desse lugar incrível, em busca de banheiros.
Subo escadas, desço escadas, e o único som de passos além dos meus é o som dos passos de um eventual transeunte.

Um homem me olha e eu digo boa noite. Estamos sozinhos num longo corredor e, subitamente, me lembro de que estou no cenário de vários filmes de horror.

Essas paredes me sussurram pedidos de socorro, me tocam os cabelos. Fico arrepiada ao ouvir o som dos encanamentos antigos e me tranco no banheiro, olho por debaixo da porta, torcendo pra não ver sapatos.

O silêncio nos corredores quase machuca meus ouvidos, antes que os sussurros recomecem, vozes de homens e mulheres contando histórias, justificando atos, gritando em meus ouvidos, me tocando e puxando, fantasmas e vultos escondidos entre os livros, nos banheiros, debaixo das escadas, me mordendo, rasgando minhas roupas, jogando meus livros no chão.

Começo a correr, e alguém me empurra, me chuta, soca meu rosto, enquanto eu imploro que pare, que parem, parem, parem, parem, acabem logo com isso, todos os pesadelos juntos, o medo, a raiva e a dor me consumindo e machucando, sem direção, sem sentido, até que ouço passos vindo na minha direção.

Levanto-me do chão, me recomponho e continuo a andar, deixando pra trás todos aqueles sussurros que nunca serão escutados por ninguém.

"Mas você ouviu", sussurra uma voz feminina, que eu reconheço de um pesadelo recorrente.

É, eu ouvi.

36x16 Sexual Healing

Imagem: TingTing Huang

Respire fundo, pense.

Às vezes, coisas boas vêm disfarçadas de coisas ruins. Às vezes só.

Penso, engulo o orgulho e penso na dor que a coisa toda há de me poupar.

Sim.
Sim!

E, de repente, estou salva, ilesa, intacta. Salva, por uma noite só, e isso é quase inebriante demais pra conter dentro de mim, quer dar amor a todo mundo, mordidas e sinais trocados, abrigo da chuva, do frio, de corações partidos.

Homem, eu estou segura hoje, e nem a sua sinceridade pode me magoar, nem a certeza da minha tolice, nem os ruídos do mundo, o medo ou as regras universais impostas há milênios.

Deito, olhando pra lona úmida enquanto você fala, Dragon Maker, sobre essa garota de olhos verdes que representa todas as coisas que acredito desconhecer e fico feliz por você, por nós, extasiada, e viajo, como quando era criança, nas costas de um dragão, pra um lugar possivelmente melhor.

36x15 Dead Hearts

Imagem: TingTing Huang

N.A.: Escrito em uma noite de chuva, depois de uma puta bebedeira, a leitura de certas mensagens sem sentido e mais do mesmo.

Pra que serve um coração?
Quem diz que é bom?

Ela parte meu coração todos os dias, dezenas de vezes. O meu, e também o dela.

Fala com ele a se inclinar, a voz muda, as mãos suam: ela derrete.
Mas ele não.

Já dizia Pégaso, "ninguém é obrigado a gostar", frase dura, levei pra vida, percebo.
Ninguém é obrigado a ser.
Acho bonito o meu pensar e repito para o coração partido ao lado, ela derrete, a quilômetros de distância.
Ele não.

Todo mundo morto, todo mundo perdido.

De que me serve isso?
Isso não é o que eu quero
(é o que eu quero)
mas não é o que eu preciso,
coração partido e bordô,
que me dá vontade de comê-lo.

É o que eu quero,
não o que preciso.
Eu não preciso ser dilacerada diariamente, das formas mais vis (porque não intencionais, eu acho),
eu não preciso,
mas eu quero.

E, mesmo sendo capaz de compreender,
de aceitar,
cada sombra me traz sobressalto,
cada passo me traz esperança.

Fui Alice,
e não no bom sentido.

36x14 Bird Song

Imagem: TingTing Huang

Pássaro descontrolado, pia sem parar, bate as asas, revolta-se, enlouquece.
Eu peço calma, o mundo é tão grande.
Olho pela janela e vejo o mundo inteiro quieto, ágil.

Meu coração quer sair do peito, explodir as costelas, despedaçar-se, manchar o chão com sangue escuro.

Calma.

Respiro fundo, fundo, minha expiração parece movimentar as árvores lá fora.
Mas meu coração não se acalma, bate mais rápido e as veias parecem doer quando o sangue chega até elas.
"B, você precisa de terapia"

Como é que eu posso explicar isso pra alguém?

Todos os dias, todos os dias, mesmo depois que cheguei, eu preciso, em algum momento do dia, sentar no sofá e respirar fundo, respirar fundo.
Porque meu coração quer sair do peito.
Explodir costelas.
Despedaçar-se.
Manchar o chão com sangue escuro.

Quando meu telefone toca
quando alguém me chama pra sair
quando penso em voltar
quando tô feliz
quando tô triste
antes de dormir
e depois de acordar
quando leio meu caderno
e quando leio um livro

Como é que eu posso explicar isso pra alguém?
Como é que eu conto essa história?
Como é que eu explico essa sensação de estar permanentemente sufocando?
Como é que eu começo a falar nisso, se toda a vez em que penso no assunto, toda a vez que escrevo um texto, que pego uma caneta pra escrever, que digito algo que escrevi há séculos (é o que parece, às vezes), eu ainda tenho que parar na metade pra respirar fundo?

Tô oficialmente fodida, é.
Quebrada.

Parafraseando Byron (ou não):
Vida que segue.

36x13 The view from the cheap seats

Imagem: TingTing Huang

Compro pipoca, tô sentada esperando o momento certo pra abrir meus mentos, mas o filme não começa, as cortinas não se abrem.

Pandemônio, o filme sumiu, o projetor quebrou, ou a atriz coadjuvante simplesmente decidiu que queria o papel principal e, birrenta, trancou todos os atores no camarim.

Tem uma garota na minha frente, olhando pro encosto da cadeira à frente dela, sentindo-se como lixo, só e suja.
Não sei como é seu rosto, mas conheço seus cabelos e seus pensamentos.

Mais alguém grita, revoltado, que o filme já começou para as cadeiras lá de cima, que lá a pipoca é amanteigada e as pessoas não precisam se sentar no chão pra assistir ao espetáculo.
Percebo, então, que muita gente se espreme no chão, entre os espaços de passagem, entre as poltronas. Mulheres e homens negros, gente faminta, alguém me acena, mas eu desvio os olhos, encolho os pés, abro espaço, ou acho que abro, mas me agarro à poltrona, com força. Não quero descer daqui.

Olho pro lado e alguém checa o celular, esperando uma mensagem que nunca chega.
Uma mulher dialoga com a pessoa sentada a seus pés, e outra coloca os pés sobre ela, que não reclama.
Do meu outro lado, um rapaz decide pegar na mão de uma moça bonita, e eu desvio o olhar e mastigo.
Mais gente chega, pisando nas pessoas nos corredores, e aquilo me machuca. Fecho os olhos, mas não consigo, não consigo não olhar.

Atrás de mim, as pessoas se levantam aos poucos, brigam e xingam, até conseguirem sentar, dividindo a cadeira com outra pessoa, que xinga, empurra e bate, enquanto a pessoa que conseguiu forçá-las a dividir o espaço aguenta firme, e espera que as coisas comecem.
Agarro-me aos braços da poltrona com força, ocupando meu espaço inteiro, sem aperto, meu espaço, MEU espaço,
aí a vejo, sentada no chão, aos meus pés, olhar firme, desafiadora como quem diz "eu não preciso das tuas migalhas".
Tô aqui em cima e tenho medo, mas não quero mais ter, quero ser forte assim, uma vez na vida.

Chego pro lado, dou espaço.
"Vem", eu chamo.
Ela olha pra mim, olho pra ela, a gente se entende.
De forma surpreendente, a poltrona é grande o suficiente pra nós duas.
Faço as contas, olho pros lados.
Como é que ninguém percebeu que, se todo mundo dividir o lugar, ceder o espaço, vai ter pra todo mundo?

E foi assim, pensando assim, que comecei a ver o espetáculo que já acontecia há muito tempo.
Sem spoilers, caro leitor,
mas não é preciso muito.
Você pode vê-lo também.

Abra os olhos.

36x12 Out Loud

Imagem: TingTing Huang

Medo.
Eu me lembro do medo, do gosto, do cheiro, do toque.
Fiquei lá no meio de um mundo de pessoas, carros e prédios, um céu enorme. Meu Deus, como sou pequena.

Senti medo da dor, da morte (um medo contínuo e familiar), dos passos, da perda.
Senti medo dos movimentos da tua mão e meu coração parou cada vez que a perdi de vista, a cada movimento a favor do vento.
Camisetas vermelhas, pretas, brancas, azuis gritavam em meus ouvidos e eu tinha medo.
De onde vem, onde fica guardado tanto medo?
Freud explica, ele sabe de tudo, afinal.
Sabia até que eu tinha medo de estar com medo, abri a boca pra pedir casa e trégua, mas gritei palavras rimadas, manifestei meu descontentamento. E isso me deu força, ombros novos: eu estava ali pra lutar.
Pra apanhar, pra morrer, pra sentir dor.
Aquilo era maior do que eu, infinitamente maior do que afetos mesquinhos, centavos e brigas.
Meu coração gritava e se desfazia em pedaços murchos de carne, mas minhas pernas continuavam, também meus pés, e a boca gritava.
Eu quero passe livre, eu quero. Eu quero. Eu não quero pra mim, eu sou só um pontinho, eu quero pra eles, quero, quero agora, e não paro de gritar.
Mas parei.
Senti medo, um medo súbito de que alguém se machucasse.
Olhei pra eles, sentados nos seus carros grandes com gás e balas de borracha pra acertar em crianças, em gente que só queria ganhar pra todo mundo, prontos pra machucar, carregar, reprimir.
E me deu medo.
Não por mim, eu já não era eu, tirei a blusa da cintura e esperei o momento de usá-la pra tapar meu rosto.
Deu medo por uma menina pequena, toda feliz, olhos castanhos clarinhos com dois pontinhos na íris esquerda, quatro pintinhas estrategicamente plantadas em lados opostos do olho esquerdo e que tem covinhas no queixo quando sorri.
Não era pra ninguém se machucar, vambora.
E eu até fui,
mas não podia ir.

Porra, B., minha cabeça gritou
Seja Alice.
Uma vez na vida, seja Alice.

355, dê as costas pra tua mania de segurança e volte.
Eu não podia nem hesitar ou parar pra raciocinar.
Tinha que voltar, pra apanhar, pra bater, chorar.
E isso não faz de mim uma pessoa melhor, não faz de mim uma heroína, a super B.
Eu só estava cansada, eu tô cansada de ir e vir nas escolhas que faço.

Seja Alice, porra.

36x11 Time has come

Imagem: TingTing Huang

Querida B.,
respire fundo, porque isso vai doer feito o soco mais doído.

A burrice da coisa toda, a simplicidade da coisa. Vai doer junto.
Tô avisando porque quero que saiba: vai doer.

A Alice tá ali na mesa, dando tudo de si pra fazer o certo, sendo honesta, sendo forte, alterando pra sempre o significado de "ser Alice".
Seja Alice, B.
É hora de ser Alice.

A vida é pra doer, a dor é pra sentir. Sentir é ser Alice.

Seja Alice e tome a bordoada quando ela vier. E ela vai vir, amor.

Seja Alice hoje, B.
Sem medo, a hora chegou.

A cura, amor, é tomar veneno.

Abra a boca, respire fundo:
vai doer.
Eu prometo.

36x10 Repetições

Imagem: TingTing Huang

VÁ TOMAR NO CU
(é um mantra, minha maneira de extravasar, me olho no espelho ao acordar de manhã, penteio meus cabelos para mais um dia horrível, torcendo, ansiosa, pra que seja um pouco menos horrível)

Começo.
Repetições.
Galeano disse que a vida acontecia em círculos.
Somos padrões, vivemos padrões.

Isso não é novo, não me surpreende, mas me enoja, me machuca, me humilha, me fere fundo.

Círculos, padrões, repetições.
Aperto replay na eterna cena da minha vida, essa.
Aqui, agora.

Círculo, padrão, repetição.
Minha cabeça lateja, eu anoto no braço que posso ir embora.
Eu anoto "B, vá pra casa".
Eu anoto milhões de vezes, nos braços, nas pernas
355
355
355
355
355
355

É quebrar um padrão, um círculo, uma repetição.

Vá pra casa, B.
Vá pra casa, B.

Vá pra casa.


(não deu)

36x09 Where does the good go?

Imagem: TingTing Huang

Cadê o povo pra defender a menina sem coragem de pegar a faca e matar o pai?
Cadê o povo que grita acusações, que chama esse (meu) Deus, quando essa menina é violentada todos os dias, quando é obrigada a sentar ao lado do seu estuprador?
Cadê sua lógica quando uma criança me diz, quando um amigo me diz que não se sente feliz no seu próprio corpo e você diz que isso não é normal? Fala sobre Deus, um Deus que você nem conhece, e que, se conhece, não é o meu. Não é o que eu quero.
Dor não é comparável, não é mensurável, não é engraçada.
Vê se me escuta, vê se olha as pessoas nos olhos e entende que o mundo muda, que homens beijam homens na boca e não é errado amar, e você não precisa beijar uma mulher na boca pra respeitar uma mulher que faz isso. Você só precisa ser humano.
Errado é reprimir, violar, aprisionar, ferir, entristecer.
Por que você não vê?
Quero te arrancar os olhos, te mostrar meu mundo, não tô tentando impor minha opinião, tô tentando te mostrar que existe outra opção, que o mundo não é só esse quarto fechado em que você se encontra, quero mostrar o mundo e a crueldade dele, a tua crueldade, a minha.
Cadê as pessoas boas, cadê o povo que alimenta os famintos, agasalha os pobres e dá as costas aos homossexuais pecadores?

Por que vocês não conseguem ver?
Isso não é guerra, frescura, fase,
isso é amor.
De um jeito que você não pode não sentir, mesmo sendo como eu.
É maior, mais bonito, incrível.

E é óbvio.
Mas você não consegue ver.
É óbvio.
Mas eu não consigo te mostrar.

Porque você não quer ver.