47x05 Beige

 

Imagem: TingTing Huang

Sou um projeto inacabado, geneticamento falando. 

Em termos de receptores, neurofisiologia, densidades e quantidades, pequenas moléculas flutuantes. 

Cor de burro quando foge, perpetuamente buscando um banco no não-lugar entre lugares, e ficando de pé. 

Às vezes, no centro do mundo, às vezes no fundo do poço. Raramente (ou nunca) no topo. 

Tô achando que tem algo de errado que não está certo. 
E só pode ser em mim. 

Projeto inacabado, faltou pouco, uma pitada quase, ou 2 ou

Bom, não deu. 
Mesmo assim, agradeço. 

Obrigada a todos, a tudo, por tudo. ~

Punição ainda maior do que não pertencer é ter que ser grata por isso e, portanto, agradeço. 
sou muito grata. 
gratidão. 

Tenho que estar perpetuamente, persistentemente, no espírito de quem é grato. 

E eu não quero mais ser grata. 

47x04 A match made in hell (or Moonrise Kingdom)

 

Imagem: TingTing Huang

Tudo o que te atravessa importa. 
Tudo o que eu ponho sob os holofotes, no centro da dor do mundo, importa. 

Um céu cor de rosa enjoativo, cabana de madeira, binóculos. 

Fujo de casa, pro meio do nada, cidade sem praia, em busca de feras e aventuras, bestas e rãs. 
E te encontro, no meio do caminho pra não-sei-aonde. 

Apertamos as mãos, pactos com cuspe, e até andamos de mãos dadas. 
Pegamos girinos em potes e até lutamos contra inimigos (imaginários ou não), demos nomes às estrelas, capturamos insetos e conchas,  pregamos peças e fizemos pactos de silêncio e de riso e de sei lá o quê. 

Mas sei lá o que houve, puberdade, ou talvez sua medicação tenha feito efeito. Outro dia, dia desses, a gente fazia pactos cuspindo nas mãos, no outro dia você tinha nojo de saliva, no outro me dizia pra não ser como sempre fui. 

Jogou de volta na água os girinos, passou a se interessar por borboletas e outras narrativas menos fantasiosas, e a se irritar com o som da minha voz infantil.
Eu ainda te contava os meus sonhos, mas você dormia antes que eu terminasse as histórias. 

Um dia, eu acordei no meio da noite pra revezar quem ficaria de guarda no nosso forte de madeira. 
Chamei o seu nome no escuro, mas você nunca veio. 

Não chorei. 
Não foi a primeira vez que aconteceu. 

No dia seguinte, o céu ainda tinha aquele tom cor de rosa-enjoativo, os girinos estavam na água, o forte ainda precisava de vigia. 
Havia muito o que fazer, pouco tempo para lamentar. 

Em retrospecto, agora já adulta, penso que deveria ter lamentado. 
Que, talvez, deva lamentar agora. 

Mas hoje não. 
Não tenho tempo. 

Early Cuts: The killing of a sacred deer

 

Imagem: TingTing Huang

Nos confins do labirinto do inconsciente, você se senta - nunca nu, mas nunca vestido -, num tapete sem cor, sala sem cheiro, sua boca sem gosto, 

vulto, sombra, emoção malfeita do deus do inconsciente, você se senta no trono do Id, soturno, divino, sagrado, silencioso, banal. 

Hoje, como em todos os dias, vim te matar, vim te sacrificar nos altares do ego, me banhar no seu sangue, comer a sua carne e me livrar da sua memória rarefeita, dessa sombra imaculada - ou maculada pela falta da ignorância infantil, não sei. 

Você, blasé, deita-se sobre a pira e espera, espera, espera. 

Eu, sem forças, nem consigo erguer o punhal, que pesa toneladas. 
Cada vez mais pesado, feito as minhas pernas após a batalha, 

47x03 Lugar

 

Imagem: TingTing Huang

Eu sou uma mulher negra. 

Negra, de pele clara. 
Calma lá, não se exalte. 

Negra. 

Como eu sei? 
Existo, às vezes, em um não-lugar, não posso me sentar no banco do branco e, às vezes, nem no banco do preto (isso quando o preto pode sentar). 

Acesso lugares que ninguém acessa, não lugares. 

Nunca sou branca, mas, às vezes, dizem que não sou preta. 
Eu sou o quê? 

Minha vivência é só minha.
Eu sei quem eu sou, porque a minha história é. 
Existe. 

Meus pais, minha família, as tentativas infinitas e doloridas de embranquecimento de peles e cabelos e narizes e genes e descendentes, o dito pelo não dito. 

Como eu posso explicar e comprovar quem eu vejo no espelho, quem fala pela minha boca e dorme e acorda no meu colchão? 

Invado lugares e piso em cacos e sento em bancos e sou continuamente relegada a um não lugar. 
Que é um lugar.
Solitário e doído, à sua maneira.

Entre os bancos, puxo uma banqueta e sento. 
Tem mais gente que se sente assim. 
Tem que ter. 
Tem que ter. 

Espero. 

47x02 Afraid to be the greatest

 

Imagem: TingTing Huang

Não consigo.
Duas palavras que pesam uma tonelada. 

Não consigo ser quem eu sou. 
Não sei ser quem eu sou. 

Começa insidioso, um sussurro, uma ideia pequena e infeliz. 

Cresce, morde meus sonhos, faz com que eu me esconda em você. 

Sensação terrível, que se alimenta das horas do dia e da minha imagem no espelho. 
Desconstroi e não me deixa juntar as peças. 

Pequena e infeliz, tudo me assusta. 
Finjo. 
Começo a fingir, pra ver se acredito. 

A cabeça explode com a pressão do grito e do choro contidos que eu não sei de onde vem, eu não sei nomear. 
Eu tenho medo de reconhecer. 

Sinto como se fosse o desenho de uma silhueta. Oca. Despropositada. 
Um desenho cinza de uma pessoa cinza. 

Já houve eras em que senti que tinha mil anos. 
Essa sensação é diferente.
Quase sinto como se nem tivesse nascido ainda. 

Crua e nua, flutuando em líquido, ou gás. 
Ou presa na solidez dos dias, que se apresenta como um calor seco, entra pelas narinas e circula, por dentro e por fora, como se eu fosse nada. 
Como se eu fosse tudo. 

Sinto até um certo conforto, por breves segundos. Depois, só pavor.
Nem medo, pavor. 
Como uma criança olhando debaixo da cama e descobrindo o bicho-papão, o Coríntio. 
Como se eu não estivesse segura nunca. 
Como se eu não pudesse dormir. 


Como se ele estivesse não apenas debaixo da cama, mas em todos os lugares. Debaixo da mesa, armários. 
Nos rostos. 
Como se todos os dias eu acordasse envolvida no abraço apertado do meu próprio pesadelo psíquico, uma criatura mágica, que só desaparece se eu lhe der nome. 

E que, 
se eu errar,