48x14 (Un)desirable bonds

 

Imagem: TingTingHuang

Onde você 

MORA

VIVE

SE ESCONDE

Tenho essa coisa, digo a Vermund. 
Essa coisa que não sei o que é. 
Arranho a superfície da coisa, mostro a ele:

- Esta é a coisa

- Eis a coisa

Ele assente com a cabeça e franze a testa, analisa; não conclui nada. 

A coisa atrai olhares, chama a atenção. 
A coisa. 

Um a um, eles se aproximam, analíticos, simpáticos, amorosos, silenciosos ou não. 
A coisa é pesada, medida, avaliada. 

Depois, eles se enfileiram, os grandes especialistas do nosso tempo, especialistas em coisas que não são exatamente A coisa, e me explicam, um a um, suas teorias sobre 

A COISA. 

Ouço alguns, os primeiros, com atenção, depois me desligo. 

Depois de dezenas, talvez centenas de opiniões, não consigo mais ouvir. 
Não consigo, estou cansada de conclusões, preciso ouvir inconclusões. 

Exijo, demando que me digam
"Eu não sei". 

Mas todos eles sabem demais, sabem tanto que eu não posso, não consigo, não quero mais saber sobre

A COISA.

48x13 Omni-man or how God created His favorite son

 

Imagem: TingTing Huang

12, como os apóstolos, é seu número da sorte. 

Deus, o todo-poderoso, é um homem baixinho, bigode cheio. Pela manhã, ele nos inspeciona, um por um. 

Ao primeiro som da Sua voz, me ponho alerta, mesmo antes que ele me chame pelo nome: Lilith. 

12 filhos, eu sou a quarta. nem a primeira, nem a última. 

4. O número mais irrelevante da dúzia, às vezes acho. 

Diariamente, ele nos inspeciona, olha os dentes, pesa, mede, critica. 
Pra mim, nada. 
Nunca diz nada. Nem bom, nem ruim. Nada. 
Ele me inspeciona, sem transparecer emoção alguma e, às vezes, sinto que vou ficando cada dia mais invisível. Eu poderia desaparecer e Ele nem notaria. 

Questiona Adão, o primogênito, seu rei ariano, fazedor de todas as coisas, sempre pronto a serví-Lo. À bela Eva ele não diz nada. Ela não diz nada. Eu me pergunto se ela se importa. 

E, então, Lahai-Roi e eu, Lilu, por quem passa direto.  

Molech, que recebe as crianças sacrificadas nos altares com doces e canções. 

Iblis, a rebelde, Mefistófeles, Oni, Vanth, Marid...

E ele se detém e analisa cada detalhe do seu favorito, Morax. O Omni-man. 

Pesa, mede, murmura elogios, e briga e grita. E ele: nada. 

Deus o isola e diz coisas e segredos e palavras mágicas enquanto trabalhamos na Sua construção sem fim. 

(A Construção Sem Fim: não sabemos o que é. Todos os dias, Deus distribui tarefas e nós as realizamos, sem questionar, sem reclamar (muito))

Um dia:

Deus entra, e pesa e mede e olha os dentes.

Na ordem, eu sou a quarta, o número mais desimportante, eu diria. 

Distribui tarefas e a minha é tão desinteressante quanto eu, mas a realizo, em silêncio. 

Ao chegar em seu favorito, o Omni-man, pela primeira vez em 3 eternidades, ele diz: NÃO. 

Prendemos a respiração, ar em suspenso, sinto medo e sinto uma tensão física em antecipação à demonstração da Grande Fúria de Deus, mas

ela não vem. 

Feito criança, ele grita, briga e xinga. 
Omni-man, sem expressão, a tudo responde com essa palavra minúscula cujo significado mal conheço: "não".

Por fim, Deus sai da sala. 

Pra nunca mais voltar. 

Early Cuts: Little giant (ou Estevão e as conversas do dia)

 

Imagem: TingTing Huang

Estevão tem o dobro do meu tamanho, eu penso. Poderia esmagar minha cabeça com as mãos, eu sei, sem muito esforço. 

Mesmo assim, caminhamos, até o sol nascer, perdidos, sem saber onde termina a rua imensa. 
Silêncio e ruído coexistem, eu caminho rápido - porque tenho medo - e ele também - porque está feliz. 

Estevão me conta, em segredo, na língua dos gigantes, que vai ficar bom. 

Não acredito, e retruco, na língua dos robôs, que tal coisa é altamente improvável - estatisticamente falando. 

Esquina a esquina, quadro a quadro, ele me conta os segredos dos homens e mulheres, e dos pigmeus e dos fantasmas ao redor da mesa. 
Conta sobre a grande tenda, os mistérios da penumbra e da Terra de Gigantes, sobre crescer numa família de pigmeus. 

Eu não digo nada, só penso e penso. 

E ele, corajoso, gigantesco, me faz sombra pra que eu possa pensar, planeja aventura e grandes buscas, e eu juro que penso em ser assim também. 

48x12 Mom & Dad II

 

Imagem: TingTing Huang

Tá tudo ao contrário, tudo errado. 

Desmonto e me remonto, peça por peça, buscando o defeito que você não me diz qual é. 

Troco tantas peças que nem me reconheço mais. 

Navio de Teseu, eu cruzei todo esse estreito pra te encontrar. 
E você nem sabe quem eu sou. 
Percebo, também já não sei mais. 

Não consigo mais sentir o gosto das laranjas, de peixe. 

E não consigo chorar. 

Consigo guardar segredos e mágoas como ninguém. Não me lembro mais da história, ou do seu cheiro. Mas me lembro do nome do segurança de Getúlio, mas me lembro dos nomes dos dentes que roubei. 

Só consigo me sentir bem quando estou sendo útil. 

Desmonto e monto, até não sobrar mais nenhum resquício seu, do que é humano, do que dói, quero ser toda Dela, toda ela, e não quero mais ser ninguém, de ninguém. 

Desmonto, e remonto, angustiada, até virar uma coisa - essa coisa - disforme, metálica, inorgânica, 
o monstro de Frankenstein que vocês teimam em recriar. 

Sem nome, sem nada de meu, e eu não quero mais. 
Eu não quero mais.
(o quê?)

Eu não quero mais. 

Early Cuts: 90 dias no deserto

 

Imagem: TingTing Huang

Foi conduzido ao deserto por 3 homens uniformizados. Acordaram-no no meio da noite, sem muitas explicações, para ser posto a prova pelo grande espírito maligno. 

Durante 90 dias, ele jejuou, involuntariamente. 

Depois, o craving. 

O tentador: levou-o ao ponto mais alto do templo. 

48x11 Blip

 

Imagem: TingTing Huang

Se você quiser, desapareço. 

Num piscar de olhos, estalar de dedos.

Sumo. 

Pra sempre, não volto mais, te deixo só pra encarar a tragédia de existir sozinho e não ter a quem culpar. 

Desapareço no meio da noite, levando porta retratos, cabides, minhas calcinhas e as suas memórias de nós dois. 

Esvazio a geladeira, os vestígios de mim, excluo meu perfil no streaming e as nossas fotos na beira do lago. 

É só desejar com vontade que, amanhã de manhã, eu já não lavo a louça do café, nem levo as crianças pra escola. 

Amanhã, bem cedo, quando você desejar, prometo que vai acordar só. 

E eu vou acordar 

livre. 

48x10 To believe in nothing at all

 

Imagem: TingTing Huang

Falo, e não digo nada. 

Tiro um tempo para refletir sobre as coisas passadas e presentes e futuras. 

Arranco crostas de feridas secas, pedaços de cabelo e pelos, belisco e cutuco a pele, e queimo os punhos com cigarros acesos. 

Cubro a boca e jorram coisas, cobras, lagartos e não me assusto, eu sei que não existem. 

Lembro de coisas confusas, o demônio e sua orelha, olhos cor de lilás, lavanda e tulipas recém cortadas, dentes de dragão sepultados na lama, heróis que voam em cavalos alados, a hostilidade de uma besta presa no labirinto, eu penso e penso e não me lembro se isso é meu ou se é do outro. 

Não quero mais o que não me pertence. 

Early Cuts: The Birthday Blues

 

Imagem: TingTing Huang


30. A idade do sucesso. 

3 meses antes, ou depois. 

Olho o espelho e impenso, rechaço a ideia de quem sou eu. 

30 anos e, aos 9, eu quero ser tanto, eu quero ser mais, eu queria não ser eu. 

2 semanas, um dia mais, um ano de vida (a menos). 

Que dia terrível pra se ter nascido, mês agourento e sujo. 

Não quero bolo, mas quero. Quero significado, significar, da meia noite às 23h59, eu quero explodir em fogos e queimar feito uma vela no escuro quente, sufocante. 

Meu Deus, eu quero morrer, e não morro. E, a cada segundo que passa, parece mágica, quero morrer mais e mais e sinto medo de morrer com a mesma intensidade. 

Brutal, duro. 

Guardo um segredo que só posso contar, quero dizer, talvez só eu, 
talvez nem eu saiba. 

Sinto que desejo algo, ou preciso desejar ou quero desejar e isso por si só já configura em desejo. 

Preciso acordar, mas não quero, mas e se

E se 30 for mesmo a idade -

48x09 Sharp Objects

 

Imagem: TingTing Huang

Ele desperta, no meio da noite (sim, ele também) e pensa, com calma e cuidado sobre a possibilidade de -

Feito um jorro de água, inicialmente fria, e depois morna, ele sente que é certo.

Lava o rosto e olha-se no espelho, toca o vidro. Gelado, ingênuo. 

E não se reconhece mais. 

Está cansado, cansou-se, da máscara, da farsa, da inverdade que pesa em casa passo e expressão dita ou não dita. 

Acendem-se as luzes, lá fora, ou amanheceu, e seus punhos continuam em riste, já não dorme, não come. 

Tem coisas, ele se lembra, que não tem mesmo jeito. 

Toma 01, 02 cps e mastiga, com força, até sentir o amargor, sob o olhar atento da esposa. Tão ansiosa, tão querida, tão (tola? crédula?). 

Respira fundo e força um sorriso, só mais um, ou outro, sentindo cada músculo rijo e dolorido, uma máscara aterradora. 

Pergunta-se se é possível mesmo viver dessa forma mais uns 30 ou 40 anos. Só mais um pouco, sem que ninguém saiba. 

A ideia causa taquicardia. Pensa nas noites insones e no medo. 
O medo é o pior. 

Engole comida quente sem sentir o gosto, sem prazer. Mastiga quantas vezes for preciso até engolir os pedacinhos. 

Mastiga. E sente medo. Mastiga. E sente medo. 

Medo que não passa nunca. 

Mastiga comprimidos. 
E sente medo. 

Ele só quer não sentir mais medo. 
As portas se abrem e fecham, e fecham, e fecham, até que não se abrem mais. 

Vira a chave na porta e, quando só, uma voz grita:

"Vai!"
"Coragem!"

Ouve baterem à porta, e sabe que o tempo urge, o corpo urge. 

Olha ao redor e se vê no espelho, aos 20 anos, mal se reconhece. Deixa de ser homem e se torna, de novo, bicho. Pronto para matar. 

"Coragem!"
Tenta lembrar o lema do príncipe do livro de contos de fadas que possuía quando era criança. A divisa do príncipe aventureiro. 
"Coragem!"

E, num rompante, ele finalmente insipira, expira, sangra e deixa cair no chão 
o caco de vidro,
o sangue,
o medo, 

a vida. 

48x08 Terrores Noturnos

 

Imagem: TingTing Huang

Durante a aula, me vejo nua. 

Sempre atrasada, sempre correndo. Fujo de homens e sombras e serpentes, em círculos, presa, num labirinto em Atlântida, me afogo.

E, de novo, ressuscito, a caminho de uma aula para a qual me atraso, ou entro na sala errada, completamente nua. 

Feito Sísifo rolando a pedra, de novo e de novo, eu me afogo sem conseguir sair da água, sem nem ao menos entrar. E não me importo porque qualquer um desses pesadelos é melhor do que

Cassandra. 

Acordo, no meio da madrugada, apavorada. 
Sonhei que você morria. 
Mas sonhei,
ou previ?

Sou capaz de prever o futuro? 
Não era, mas isso era antes. Isso era ontem. 
Agora, talvez, eu seja. E se for? 
3h da manhã, escuridão total fora da janela. 

Mas posso ligar? Devo ligar? 
E dizer o quê?
E fazer o quê se a ligação não for atendida? 
Se não chega resposta?

Sinto um aperto no peito, não consigo dormir, caminho pelo labirinto, desesperada, em busca de respostas, fazendo preces até

Pouco antes do amanhecer, insone, me deparo com uma linha de lã vermelha, cor de sangue viva, cintilhante, que brilha mesmo no escuro. 
Sigo a linha, sem medo e ela me leva por corredores estreitos, claros, e escuros também, chão de grama e pedra. Eu a sigo pra fora da minha mente e saio já de manhã, só pra te encontrar, vivinha da silva, sã e salva. 


Fev/2024