11x16 Feminist Sweepstakes

Imagem: Arkangel

Estava trançando meu cabelo hoje, me orientando pela memória de cabelos maiores e melhores.
Ontem a noite, nos sentamos na frente da loja de espelhos, com cigarros e maçãs, e ficamos nos olhando pelo vidro.
Crescemos juntas, afinal, estava na hora de nos vermos de novo.
Deve ser essa mania de intervention que elas tem. Paola trançou meu cabelo, da raiz às pontas. (tem algo de masculino em tudo o que ela faz, embora seja extremamente feminina. Até o jeito como escolhe os fios é agressivo.)
Eu fico me perguntando se minha feminilidade é meio oculta, embaixo de toda essa coisa indefinida que não é sobre sexualidade, é sobre quem eu sou.
Conto a ela sobre Otto e Ginger e Kyle e Percy.
- São seus cabelos, é o jeito como você prende eles.
É a segunda vez que ouço isso esse mês.
Susana confirma e acrescenta:
- E as calças. Mulheres não usam calças compridas. (Susana às vezes parece que vive no início do século 20)
E Paola:
- Vou te ensinar uma coisa, B. Você pode não entender agora, mas pense sobre. Não existem bissexuais. Você pode gostar de garotos e garotas masculinas ou de garotas e garotos efeminados. Você não pode ser um garoto e uma garota.
- Eu não sou assim.
- Todo mundo é assim.Você nunca vai saber quem é de verdade, não vai se encontrar nas revistas ou gostar das pessoas ou saber o que vestir se não souber responder do que você gosta.
E Susana, sábia:
- Quem não gosta de rótulos não se senta em cadeiras.

11x15 Mestre-vidreiro

Imagem: John Anthony Evans

Aviso: Esse texto não é para ser entendido. Talvez Isabela entendesse na mocidade. A velhice apaga muitas lembranças.

Eu expus minhas teorias, mudei de ideia a cada giro do carrossel vida. Ontem era alimento, já fui doente, já fui tudo, já fui morte. Hoje sou vidro. É o calor da cidade que me escorre, é o tempo.
É esse choque que me molda, esse soprar divino, esse soprar humano.
Ontem a noite ou há 100 anos, estava num trem - ou era metrô? -, eu e mais 6 garotas, falando sem mover os lábios.
Isso aconteceu quando eu não era eu mesma - se xarope, se pílulas, não sei, faz tempo, foi ontem - mas só sabai esperar você.
Veio o príncipe em seu cavalo branco, veio o Temível Pirata Roberts com suas armas, veio o príncipe sapo e seu fraque, veio o poeta e sua língua estrelada, veio o gigante de olhos escuros e veio até um homem que só tinha a oferecer amor.
E de que me servem cavalos, armas, olhos, amor? Diga, de que me servem?
Fico pensando se Deus não se esqueceu de me soprar como soprou Adão, se me deixou disforme sem querer.
Estou esperando que ele se lembre, estou esperando pelo mestre vidreiro que há de soprar em mim a vida que me falta.

11x14 Quando 2 = 5

Imagem: Thomas Powers

Era cedo e tarde, ao mesmo tempo. De certa forma, também estava na hora.
Vi Otto antes que ele me visse - ele me viu?- e tive tempo de me preparar pra não olhar pra ele. Foi o que fiz, até ele virar de costas pra que eu ficaase decorando seus pormenores (de novo).
Queria ir pra aula, queria muito.
E queria ficar, queria muito.

11x13 A gente não quer só comida

Imagem: Elizabeth Thomsen

Estar apaixonado é estar faminto. É querer se alimentar de tudo sobre o outro. É querer toda hora, beliscar quando puder. O coração ronca quando não se alimenta do outro, feito o estômago.
Quando se alimenta em excesso, ele dói, mas raramente pesa. Até a dor é boa.
E quando não se está perto? Sente-se aquele vazio que a gente pensa que pode preencher comendo.
Eu poderia comer as cadeiras e não ficaria satisfeita. Não sinto fome, não tenho comido direito.
Ainda assim, se pudesse, faria pelo menos 3 refeições diárias de amor.

11x12 Paixão e outras vulgaridades

Imagem: Iman

Como é vulgar a paixão!
Todas essas palavras e vontades de conversas sussurradas, essa falta que se sente e não se sabe de quê, essas reviravoltas no estômago.
E as palavras! As expressões! O amor torna a posse vulgar, os vocativos, as metáforas.
Os movimentos, os silêncios.
Aquela espera por alguém que nunca chega e os olhares famintos para as mesmas direções.
A fome e a sede, até mesmo o jejum e as orações noturnas (que começam ou terminam com pedidos pra ele - jamais por ele, sem exageros)
O corpo se torna mais vulgar, as unhas, os ossos e as veias. E os joelhos, céus, os joelhos! (nem me fale deles...)
As risadas, a voz, o pó compacto e os sutiãs.
O jeito como se cozinha e se descasca uma fruta.
Urinar e escovar os dentes e subir as escadas.
E a genética e os logaritmos e a velocidade das reações. E a corrente e a ddp se tornam mensagens subliminares.
O mundo todo percebe, a vida caminha diferente. Então, como ousa, Otto, como ousa não me notar?

11x11 Babel (ou reminiscências da lua sobre a plataforma)

Imagem: skampy

Eu não tenho medo de altura desde sempre.
Nas férias, nós ficávamos de pé sobre o muro do coreto da igreja, observando as ruas e as pessoas. Me lembro de querer escalar a igreja, de querer olhar a cidade pelo ângulo da cruz. A cruz era o olho de Deus.
Quanto mais alto eu subia, mais igual a Deus eu ficava. Agora, isso parece ruim, mas a intenção não era ser Deus: era ver pelos olhos Dele.
Se estávamos livres, íamos prum viaduto e ficávamos sentados por lá durante horas, jogando garrafas, latas e tocos na rua lá embaixo. Raramente conversávamos, as palavras eram desnecessárias.
Quando se está em perfeita harmonia com o paraíso, Deus e tudo o que existe, uma pequena ideia pode levar tudo à ruína.
"Sabe, é fisicamente impossível sair vivo dessa queda".
Uma ideia só, plantada no fundo das nossas cabeças: a ideia de que a nossa paz estava a um passo da morte, de que um movimento em falso poderia matar um de nós.
Não gostei mais de alturas a partir daí. Até o céu me dá vertigem.
Nunca entendi o que ele quis dizer, o que se passava pela cabeça dele. Talvez quisesse nos castigar ou nos expulsar do nosso paraíso. Acredito que queria nos mostrar que não éramos imortais.
Deus e o Diabo se encontram em Gideon e conseguem seus intentos simultaneamente por meio de suas ações ambíguas.
Deus e o Diabo se encontram em sua voz, em proporções desiguais. Quando me disse que tinha vindo pra ficar, não soube a qual dos dois cabia a maior parte.

11x10 Being human

Imagem: neil alejandro

Há um contador regressivo dentro da minha cabeça. "Apocalipse", geme a tríade, gemem as lembranças, os pais, os padres. E Deus? Deus é mudo, que seja mudo, - se não é mudo, é que não tem nada a dizer.
Me sento na ponta da cama, há um abismo sob o tapete "vamos morrer".
Escrevo a Otto, escrevo furiosamente (os pensamentos voando), até que a ouço.
Eu pensei que nunca mais ouviria essa voz. É a voz de Ulrika por baixo do véu dessa mulher, me chamando. A voz é de Ulrika, mas os olhos, essas mãos: Kadife.
Apalpo meus bolsos e encontro as cartas: são as cartas que ela quer. Estendo as cartas e ela me puxa o braço: estamos cara a cara na beira do abismo. Ela abre minha mão, fazendo com que suas cartas de amor caiam no abismo e me faz tocar seu cabelo.
Sinto a cabeça dela pulsar, como se houvesse um coração lá dentro. Vou enfiando os dedos entre os fios, puxando pedaços de ossos e

E acordo, zonza, às 6:05 da manhã. Abro minha caixa de livros e puxo, lá do fundo, as 4 seringas e 4 ampolas que venho guardando desde que comecei a sonhar com Kadife.
O telefone toca, é minha mãe.
- Estou grávida.
Deus me perdoe, mas Seu senso de humor é péssimo. Tenho que me lembrar de comprar mais uma ampola.

11x09 Baby Victor

Imagem:  Inferis

Oi pequenino. Pode me ouvir?
Me conte o que você viu, meu bem. Dê cá esses dedinhos de geléia pra eu ver como você é perfeito. Eu sonhei com você antes de conhecê-lo, você sonhou comigo? Não abra os olhos ainda, é cedo, não fique ansioso. Quero que veja Isabel, toque no rosto dela com seus dedinhos. Ela vai ser sempre sua, eu te dou minha Isabel.
Me perdoe por essa conversa ilógica, Victor: é que eu gosto de amar as pessoas antes mesmo de conhecê-las.
Volte a dormir, sim? Só acorde quando estiver pronto.

11x08 As cartas que eu não mando

Imagem: EverJean

Escrevi com minha pena imaginária de fênix, molhada na tinta do meu sangue verde, escrevi milhares de palavras para ele.
Escrevi cartas de amor, de medo, de euforia, de todos esses sentimentos misturados à outros.
Escrevi por dias-noites a fio, sem descanso, sem jamais colocar um ponto final que cumprisse sua função.
Escrevi com todo o meu sangue, com o sangue de meus eus futuros e passados. Mas nunca, nunca peguei papel e lápis para escrevê-las de verdade.
Se eu o fizesse, teria que deixá-lo ler. Eu não roubaria as palavras de Otto.
Apenas agora me dei conta disso: tudo que escrevi sobre ele é ou será público. Nada em diários ou folhas avulsas: o que pertence a Otto está ao alcance dele. Inclusive eu.

11x07 Human Blanket

Imagem: Pablo Montt

Quero estar com Otto, estar só. Meus desejos são singelos, poucos (mas tolos e perigosos).
Quero ser seu cobertor, que ele puxe meus braços pra cobrir seus ombros, que eu possa roçar meus dedos nos seus cabelos e cobrir seus pés com os meus.
Seria seu sapato, sim, o sapato favorito, que não machuca seus pés e abraça seus tornozelos.
Quero que meus dedos sejam seu pente, abrindo caminho por entre os nós do seu cabelo, sentindo o toque da sua mão na minha.
Quero ser sua mochila, ficar agarrada às suas costas, levar seus pertences comigo e ficar perto de você onde quer que vá.
É pouco o que eu quero. E eu quero tanto isso, com tanta força, que chego a "desquerer".
Não me dê nada nunca, Otto: Agora me contento com pouco; um dia, nem mesmo tudo será suficiente.

11x06 Camel Queen

Imagem: mateoutah

Estou deitada no meu quarto real, de bruços, corcova lá no alto, 03:30. Patas dobradas, respiração normal. Me concentro nos desenhos obscenos, nos recados deixados por estranhos, colados em post-its ao longo da parede.
A porta está fechada, estou segura, todos os meus monstros ficaram lá fora. Assim mesmo, meu pulso acelera, não consigo raciocinar: Estou em pânico. Tranco a porta e me encolho junto ao dossel, as patas escorregando do colchão. A bebida, o ácido e o miojo sobem e descem pelo meu esôfago, me fazem sentir - junto com o pó e o travesseiro sob o meu nariz - sufocada. "São essas malditas hemácias", penso.
Pequenos fragmentos de Otto me passam pela cabeça, sem parar: tonteio. Mal tenho tempo de chutar meus livros, vomito no chão.
O pior nunca foi a ressaca, nunca foi o vexame. Não é a sujeira, não é o risco.
O pior é quando passa o efeito e eu fico sozinha, meus pensamentos como companhia.