48x19 Those dreams

 

Imagem: TingTing Huang

Fico pensando, só. Nas coisas, nessas coisas que borbulham sob a superfície lisa, fria e pouco maleável da consciência. 

As coisas que eu sei, e que você sabe, sem saber. 

(Quais desculpas você usa pra se sabotar quando eu deixo de existir?)

"Que você sabe, sem saber", eu fico dizendo, e detesto isso. 

Sempre te protegendo de uma história que também é sua. 

Tão minha quanto sua, e eu não quero e não preciso do seu peso, da sua parte. Ela existe e você pode não admitir, pode não dizer em voz alta. 

(como se a verdade fosse um feitiço maligno que vai prender perpetuamente sua existência à minha... Talvez prenda)

Talvez eu seja mesmo uma bruxa, ou como uma bruxa, e tenha te amaldiçoado, e te amaldiçoo todos os dias, sem cessar. 

Às vezes, eu sinto que meus sonhos são os seus, assim como minha existência é um sonho seu, ou uma criação absurda, incompleta, uma obra que ganhou vida, Galateia, mas uma que você nunca desejou. 

Você me odeia?

Acho que nunca te fiz essa pergunta. Só assumi que não, mas pode ser que sim. 
Penso nisso com cuidado e quase que saboreio a ideia de que você me detesta, não me suporta, de que te aborrece, irrita, a ideia do meu existir.
E sabemos o porquê. 
Que triste, eu continuo a mesma. 

Mas e você?




13/06/2024

48x18 Iron Ground (Terra Prometida)

 

Imagem: TingTing Huang

Não durmo. 

Abri a caixa, meu amor, deixando tudo escapar, exceto -
Bom, você sabe. 
Disso não consigo me livrar, por mais que tente. 
E eu tento. 

Lembro do dia em que nos vimos pela primeira vez. 
Eu sabia, então, e você também, que eu iria te destruir. 

Que neste solo não cresceria mais nada quando eu tocasse os pés no chão. 
Você faz fogo e afasta a escuridão dos meus pensamentos. Você constrói, e desbrava, e luta e guarda os segredos que me mantém viva. 

Vivemos nesta terra imunda, o chão feito de ferro, onde nada, nada cresce, nada sobrevive se não for produto do sadismo de deuses obsoletos, cujos nomes fingimos não lembrar. 

Você me diz que não crê, mas eu ouço as suas preces. 
Eu sei que você deseja. 
Mas eu te desejo mais, muito mais. 

Eu não entendo, não sei. Talvez essa seja a minha maldição: ser a sua maldição. 
E, quando você morrer, eu morro em seguida. 

E vou te devorar, dia após dia. 

Incansável.
Insaciável. 
Seu amor, seu abutre, seu rochedo.

(queime a caixa, é o único jeito)


29/04/2024

Early Cuts: Tapete

 

Imagem: TingTing Huang

Tô sentada, sozinha, no quarto de hotel mais silencioso de Curitiba. 
Tô pensando. 
Quem foi que te machucou?

E eu tenho essa sensação de que tudo o que sinto talvez se deva ao fato de que passo a maior parte do tempo tentando não sentir. 
Deixando pra daqui a pouco, só que não há tempo. 

Hoje tem compromisso, aula, série, viagem, mensagem. 

Mas não tem como sentir. 

Meu estômago pesa, eu comi tanto, e mesmo assim, continuo.

Se eu pensar, vai doer. 

Hesito (se vocês soubessem quanto tempo existe entre uma palavra e outra)

48x17 Recorrência, parte 2

 

Imagem: TingTing Huang

Dois dias, duas noites, dois sonhos. 

Os de sempre só que, dessa vez, ele a vê, ela está lá, mas ele não consegue chegar até ela sem acordar. 

Pega o celular, abre a conversa com ela. 

"Tô vivo. Fiz ou disse algo estranho na festa?"
E depois: "você tá viva?"

Ela responde: "tô sim!"
Ele: "que bom kk"

"Covarde", diz a voz na sua cabeça. 

Ela: "Vc fez algo estranho sim! Aquela dança..."
E a conversa seguiu, até morrer naturalmente, como se-

Ele encarou o teto. 
Era só fingir. Eventualmente, ele começaria a se questionar se realmente aconteceu. Ela estava dando uma chance a ele. E ele podia, ou melhor, devia pegar. 

Ela estava oferecendo amizade. A oportunidade de pegar sua declaração como se ela fosse um presente de aniversário repetido e trocar por algo melhor. 

Mas ele não conseguia pensar em algo melhor. Ou não queria. 

Talvez estivesse finalmente enlouquecendo, talvez a culpa fosse de alguma constelação. Talvez ainda estivesse bêbado. Tinha tanta coisa acontecendo, tudo certo e, mesmo assim...

Ele: "quer sair pra tomar um café hoje?"
Ela: "Pode ser :)"

---

Encontraram-se no shopping. Ela tinha ido mais cedo para comprar coisas. 

Cumprimentaram-se, falaram amenidades, tomaram café, falaram de trabalho, de música, da TV, do colégio, de uma série, um livro. 
De tudo e de nada. 
Ele não conseguia. Talvez a bebida tivesse sido o componente fundamental. 

Coragem líquida, expressão estúpida. Não era coragem que faltava, era descontrole. Mesmo agora, ele sente seu corpo, sua mente tapando a garrafa que contém a carta e colocando-a dentro de um baú que afunda lentamente no seu inconsciente. Enquanto ela ri. E pensa, e  olha sem olhar e ele começa a se perguntar se realmente aconteceu daquele jeito. Ou se foi só um sonho diferente, ébrio. 

Pagam a conta, levantam-se. 

No caminho para o estacionamento, ele pergunta:
- Quer ir ao cinema?

E ela diz que sim. 

E ele nem sabe o que está em cartaz. E, talvez, nem ela. 
Ele quer ficar. E ela também. 

---

Sala quase vazia, alguns gatos pingados sentados lá no alto. 
Propaganda. 
Trailer.
Trailer. 
Trailer. 
Propaganda. 
Trailer. 
Aviso sobre o celular, saídas de emergência. 
Filme. 

Ele não consegue se concentrar. Não consegue pensar de forma ordenada. 
Tem a tela, as poltronas, pessoas, ele, ela, a sala, o shopping, a cidade, o mundo e as poltronas são separadas por um encosto, por um muro, por noivos e namoradas e pedágios e amizades duradouras e ele está prestes a explodir ou partir-se em pedaços quando ela põe a mão e o antebraço sobre o encosto da poltrona entre eles, 
uma ponte, uma ilha, 
uma corda, 
e ele agarra, com força, com toda a força e toda a delicadeza de quem só consegue sonhar quando acordado. 
E ela, sem tirar os olhos da tela, olhando sem ver, aperta a mão dele com a mesma intensidade. 

Um sinal de rádio vindo do espaço, em resposta a uma transmissão antiga. 
Um farol. 

Ele não espera, não hesita, levanta o encosto e a beija. 
Com os lábios, língua, mãos, costas, ombros, pescoço e ele sente uma euforia intensa e assustadora, como se fosse chorar ou chegar ao clímax no próximo segundo. 

Para, respira e recomeça, e parece que a vontade de beijá-la é infinita e que ele não pode mais parar enquanto viver. 
Não pode dormir ou comer, ou beber, e tanto faz, esse é o único momento que importa, um evento nexus, o nascimento ou o fim de toda uma linha temporal, a destruição de uma galáxia originada no contato entre a sua mão e a coxa dela. 

Ele ama essa mulher de uma forma que ainda não pôde ser descrita. 
E isso muda e assusta e intriga, muda tudo. 
E ele a beija e beija, o afogado e a sereia, ele a beija como se seu tempo fosse contado. 
E ela o beija de volta. 

E, talvez, passem minutos ou uma eternidade devorando um ao outro e sussurrando e experimentando, até que, sem aviso, ela o afasta, gentilmente, prega um beijo nos seus lábios entreabertos, levanta-se e vai embora. 

E ele não consegue mais, está exausto, e triste, e maravilhado, e perturbado. 
Fica sentado, olhando a tela enorme, sem olhar. 
Existindo, sem existir. 
Esperando o momento em que algo acontece de novo, 
em suspenso. 

À espera, e mais nada. 




10/12/2023