48x17 Recorrência, parte 2

 

Imagem: TingTing Huang

Dois dias, duas noites, dois sonhos. 

Os de sempre só que, dessa vez, ele a vê, ela está lá, mas ele não consegue chegar até ela sem acordar. 

Pega o celular, abre a conversa com ela. 

"Tô vivo. Fiz ou disse algo estranho na festa?"
E depois: "você tá viva?"

Ela responde: "tô sim!"
Ele: "que bom kk"

"Covarde", diz a voz na sua cabeça. 

Ela: "Vc fez algo estranho sim! Aquela dança..."
E a conversa seguiu, até morrer naturalmente, como se-

Ele encarou o teto. 
Era só fingir. Eventualmente, ele começaria a se questionar se realmente aconteceu. Ela estava dando uma chance a ele. E ele podia, ou melhor, devia pegar. 

Ela estava oferecendo amizade. A oportunidade de pegar sua declaração como se ela fosse um presente de aniversário repetido e trocar por algo melhor. 

Mas ele não conseguia pensar em algo melhor. Ou não queria. 

Talvez estivesse finalmente enlouquecendo, talvez a culpa fosse de alguma constelação. Talvez ainda estivesse bêbado. Tinha tanta coisa acontecendo, tudo certo e, mesmo assim...

Ele: "quer sair pra tomar um café hoje?"
Ela: "Pode ser :)"

---

Encontraram-se no shopping. Ela tinha ido mais cedo para comprar coisas. 

Cumprimentaram-se, falaram amenidades, tomaram café, falaram de trabalho, de música, da TV, do colégio, de uma série, um livro. 
De tudo e de nada. 
Ele não conseguia. Talvez a bebida tivesse sido o componente fundamental. 

Coragem líquida, expressão estúpida. Não era coragem que faltava, era descontrole. Mesmo agora, ele sente seu corpo, sua mente tapando a garrafa que contém a carta e colocando-a dentro de um baú que afunda lentamente no seu inconsciente. Enquanto ela ri. E pensa, e  olha sem olhar e ele começa a se perguntar se realmente aconteceu daquele jeito. Ou se foi só um sonho diferente, ébrio. 

Pagam a conta, levantam-se. 

No caminho para o estacionamento, ele pergunta:
- Quer ir ao cinema?

E ela diz que sim. 

E ele nem sabe o que está em cartaz. E, talvez, nem ela. 
Ele quer ficar. E ela também. 

---

Sala quase vazia, alguns gatos pingados sentados lá no alto. 
Propaganda. 
Trailer.
Trailer. 
Trailer. 
Propaganda. 
Trailer. 
Aviso sobre o celular, saídas de emergência. 
Filme. 

Ele não consegue se concentrar. Não consegue pensar de forma ordenada. 
Tem a tela, as poltronas, pessoas, ele, ela, a sala, o shopping, a cidade, o mundo e as poltronas são separadas por um encosto, por um muro, por noivos e namoradas e pedágios e amizades duradouras e ele está prestes a explodir ou partir-se em pedaços quando ela põe a mão e o antebraço sobre o encosto da poltrona entre eles, 
uma ponte, uma ilha, 
uma corda, 
e ele agarra, com força, com toda a força e toda a delicadeza de quem só consegue sonhar quando acordado. 
E ela, sem tirar os olhos da tela, olhando sem ver, aperta a mão dele com a mesma intensidade. 

Um sinal de rádio vindo do espaço, em resposta a uma transmissão antiga. 
Um farol. 

Ele não espera, não hesita, levanta o encosto e a beija. 
Com os lábios, língua, mãos, costas, ombros, pescoço e ele sente uma euforia intensa e assustadora, como se fosse chorar ou chegar ao clímax no próximo segundo. 

Para, respira e recomeça, e parece que a vontade de beijá-la é infinita e que ele não pode mais parar enquanto viver. 
Não pode dormir ou comer, ou beber, e tanto faz, esse é o único momento que importa, um evento nexus, o nascimento ou o fim de toda uma linha temporal, a destruição de uma galáxia originada no contato entre a sua mão e a coxa dela. 

Ele ama essa mulher de uma forma que ainda não pôde ser descrita. 
E isso muda e assusta e intriga, muda tudo. 
E ele a beija e beija, o afogado e a sereia, ele a beija como se seu tempo fosse contado. 
E ela o beija de volta. 

E, talvez, passem minutos ou uma eternidade devorando um ao outro e sussurrando e experimentando, até que, sem aviso, ela o afasta, gentilmente, prega um beijo nos seus lábios entreabertos, levanta-se e vai embora. 

E ele não consegue mais, está exausto, e triste, e maravilhado, e perturbado. 
Fica sentado, olhando a tela enorme, sem olhar. 
Existindo, sem existir. 
Esperando o momento em que algo acontece de novo, 
em suspenso. 

À espera, e mais nada. 




10/12/2023

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