29x05 Quando o amor não bater mais na aorta

Imagem: TingTing Huang

(O amor bate na aorta - Carlos Drummond de Andrade)

Mundo de cabeça pra baixo, sem eira nem beira.
Alguém me diz que o amor, seja como for, é o amor.
Não acredito, apago as luzes e fecho os olhos, me faço de cega, tento dormir e não consigo.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme do Carlito.
Mas já não rio, não me emociono.
Porém, assisto.
Uma, duas, três, dez vezes, não durmo, não fecho os olhos, não acordo, não vivo, não como, as olheiras dobrando, triplicando de tamanho e meus pais reclamam, não quero não quero mais, vou pra casa, apago as luzes, fecho os olhos pra não ver a manhã clara chegar.

O amor bate na porta
O amor bate na aorta,
Não me levanto pra abrir.
Bate em vão.
Uma vez abri e me constipei, não quero que aconteça de novo.

Cardíaco e melancólico, ele se põe a roncar na horta, faz barulho, me irrita, não abro, os desejos já maduros a despencar e explodir sobre as cabeças de pessoas que não amo, que não pretendo amar.

Entre uvas meio verdes, meu amor, não te atormentes, ele diz, quando os dentes não mordem, e quando os braços não prendem, o amor faz uma cócega
Mas eu não sorrio, me afasto.
O amor desenha uma curva, propõe uma geometria, mas eu não entendo, nunca fui boa nisso, e peço pra ir embora.

Amor é bicho instruído. Eu não sou.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Não me surpreendo. Fico olhando, de longe, enquanto um monte de gente chega carregando coisas desnecessárias: toalhas, água quente, esparadrapo, band-aids, conselhos, lenços de papel, filmes da Sandra Bullock e da Julia Roberts.
Queria que saíssem de perto, que o deixassem sozinho. Não tem o que fazer.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que conversam
e que viajam sem mapa.
Mas não é amor. É uma mistura de desespero, espera, vontade, dor, fúria, solidão, uma caixa de pandora
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

Então sento, espero que ele se recupere, pule outro muro, bata na porta. Uma, duas, três, dez vezes.
Uma hora dessas eu abro,
uma hora dessas vou abrir
e me constipar,
que a vida não tem a mesma graça quando não se está irremediavelmente
doente.

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