48x16 Recorrência - parte 1

 

Imagem: TingTing Huang

(Caro leito, peço desculpas pela confusão de tempos verbais. É que eu também estou confusa)

Ela está sentada em uma mesa, no canto do salão. Sozinha, descalça, mexendo no celular. 

Ele, com um drink na mão (o sexto, ou sétimo, ou décimo), caminha até ela, atravessando a pista de dança como se atraído por um imã. 

- Tudo bem? - ele grita, por cima da música. 
Ela acena afirmativamente e sorri. Ele se senta ao lado dela. 

- Cadê o Antônio? - pergunta, sobre o noivo dela.
- Ele foi embora. 'Tava cansado. 

A música muda e o grupo na pista de dança grita, entusiasmado. Os noivos iniciam passos estranhos, descoordenados, seguidos por todos os outros convidados. O olhar dele encontra o de Kamila, e ela cai na risada e continua dançando. 

Talvez ele a peça em casamento. Não hoje, não aqui. Talvez no mês que vem, ou no dia dos namorados. Talvez seja a hora. Ela está pronta, ele acha. Ele está pronto, ele acha. Toma um gole de gim, sente a bebida arder. Olha para Maria. 

Ela está olhando para os convidados-dançarinos, sem olhar pra eles. Ela sempre fez isso. Olhar sem realmente olhar. Como se ela existisse em dois lugares, dois tempos, dois universos. 
Seus cabelos estavam diferentes, mais longos e escuros, cobrindo parte do rosto dela. 
Ela usava um vestido de uma cor inominada, algo no espectro dos azuis, longo e justo. 
Poucos adornos, brincos dourados, um colar fino, discreto e o anel de noivado na mão direita, grande, enorme e, ao mesmo tempo, minúsculo e delicado, as pedrinhas reluzindo contra a pele negra. Parecia cansada. 

- Com quem você vai embora?
- Morgana, ela respondeu, sorrindo. 

Morgana era uma amiga em comum, vista pela última vez se atracando com um dos padrinhos no caminho do banheiro masculino. 

- Boa sorte, ele desejou. 
Ela riu. 
- Vou precisar mesmo. 

Considerou voltar para a pista de dança, mas não conseguiu. Não conseguia se levantar. Estava preso, colado naquela posição, pesado feito chumbo. Mais bêbado do que previra, provavelmente. 
Tentou se concentrar em levantar e quase derrubou a própria bebida. 
- Você tá bêbado? - ela perguntou
- Um pouco, mentiu. 
Ela pegou água de uma jarra em cima da mesa e entregou um copo cheio a ele. 
Ele bebeu alguns goles. 

O cabelo dela fazia curvas, ondas, brilhando contra as luzes. 
Ela não gostava de ser tocada sem permissão. Ele sabia. Mas ele realmente queria tocar o cabelo dela. Ou o pedaço de ombro nu que surgia por debaixo dele. 
Talvez isso o ajudasse a parar de pensar. 
Pensou em dizer a ela que só conseguia sonhar quando ela estava por perto. Sonhos ruins, longos, labirintos ou um sonho, recorrente, no qual ele procurava por ela, mas ela já tinha ido embora. 
Quando ela ia embora da cidade, ele não sonhava. Sonos sem sonhos alternavam-se com insônia, e ele acordava no meio da noite com Kamila abraçada ao seu corpo firmemente, como se ele é quem fosse desaparecer, fugir, sumir.
Nessas noites, sentia uma angústia visceral, como se a sua vida estivesse prestes a acabar, ou como se o tempo nunca mais fosse voltar a passar. 

Pensou em contar isso a ela, mas desistiu. Ficou pensando em relógios e remédios, e no meio desses pensamentos, sua mão tomou vida própria e tocou no cabelo dela. 

Ela não se afastou ou encolheu. Olhou pra ele e sorriu.
- Quer mais água?, ela disse, chegando perto para que ele ouvisse. 
Ele fez que não com a cabeça e recolheu a mão. 
- Eu gosto --- do seu cabelo assim. 
- Obrigada. 
- E eu gosto de você, ele disse, como só um bêbado diria. 
- Eu sei! Também te amo - ela sorriu, um sorriso sincero, grandão. 

17 anos de amizade contidos e confusos, imersos em -
submersos em um oceano de possibilidades. 
E ele estava bêbado e, mais do que isso, estava exausto. 
- Eu te amo - ele disse, sério, sentindo o gosto das sílabas, de álcool, açúcar e resignação. Era a primeira vez que ele dizia em voz alta. Sentiu-se, ao mesmo tempo, sufocar e aliviar-se de toda a tensão. Quis gritar e chorar. Olhou pra ela. 
- Sim, eu também! - ela riu. 

Ah. Talvez a coisa certa seja dar um passo pra trás. O passo, bater em retirada, dar risada, deixar que as três palavras ditas caiam no chão e virem fumaça, só palavras de um bêbado. 
Mas não, é tempo, e ele sente o coração explodindo, e ele quer quebrar a maldição e voltar a sonhar, então
- Não, ele diz, eu te amo, ele repete, delineando as palavras com um pouco de desejo e um tanto de dor. 
E espera um milhão de anos até que ela diga, bem perto do seu ouvido. 
- Eu sei. Só não sabia que você também sabia.

Eles se olham nos olhos e se veem e se reconhecem e
Nicholas, o noivo, se aproxima gritando e dançando:
- Vocês estão passando mal? 
E, antes que ele possa responder que ele precisa desaparecer, que todo mundo precisa sumir, que ele precisa entender - 
Ela se levanta. 
- Vou pegar mais água pra ele, diz. 

Ele tenta se levantar e ir junto, ele precisa entender o que ela quis dizer, e se levanta, mas suas pernas pesam 3 toneladas e o mundo todo gira. Ele vomita e, depois, tudo desliga. 

48x15 Hollow Woman

 

Imagem: Ting Ting Huang

I

É assim que o mundo acaba. 
É assim que o mundo acaba. 

Eu sinto

Sentada no campo de batalha silencioso, depois que a guerra termina
a última pessoa a ir embora depois de um funeral
quem apaga as luzes
o chaveiro depois que uma chave se perde. 

Durmo cedo, e tarde, sono longo e sem sonhos, dessa vez. 
Um espírito sussurra nos meus ouvidos surdos, secos, ocos. Espíritos sem formas, com cheiro de especiarias, 
eles contam histórias sem palavras, sons puros que um dia ouvi, e que já não ouço. 
De pé no penhasco, me recordo do seu canto de guerra, e não pulo. 
Eu sei, agora, eu vivo com os pés no presente, passado e futuro, feito um oráculo, e eu sei, agora, que não devo temer e que não devo pular e que não devo. 

Fantasmas sonolentos do passado me tentam, mas eu não pulo, 
estou oca. 
Oca e impermeável, permanecerei oca, por ora. 

II

Você me chama, me convoca das profundezas do reino dos sonhos e da morte e do sono. E seu chamado inaudível me afeta como um apito afeta um cão e eu me ponho em guarda. 

Mulheres cantam, as damas do lago, e eu não ouço, eu não sei, só sei que preciso seguir em frente, não posso parar, até o final. 

Sempre em frente, ecoam as palavras em minha mente. 

III

Caminho só, e não deveria, eu não preciso, mas eu quero. 
Silêncio, e um pouco mais de silêncio. 
Pra além da ausência do verbal, eu preciso me esvaziar do cansaço provocado pelo não dito. 
O franzir da testa, o muxoxo, ombros eretos e caídos, o toque e o abraço. 

IV 

Invisível. 
Evito tantos olhares que, aos poucos, deixam de me ver. 
Ou sou eu quem deixo de vê-los?
São cegos, estou cega?
É nesse ponto de encontro final que abordo a multidão sem pedir socorro, e eles passam reto ou sou eu quem os atravessa sem tocá-los. 
Todos tão vazios e surdos quanto eu, impermeáveis, numa busca igualmente vazia por algo que posso preencher. 

V

E aqui cai o pano. 
Encontro-o no meio do nada, o último segundo, no clarão, com direito a uma única microexpressão, com direito a escolha, milhões de opções pra mostrar o que eu preciso dizer, demonstrar, eu preciso te contar, antes que você não possa mais ver ou ouvir, porque é aqui que o mundo acaba. Penso em gritar, quero gritar, gostaria de gritar, devo gritar, te vejo aqui e agora

nesse ponto exato e único do espaço tempo, um clarão ilumina nossos rostos pela última vez, quero gritar, vou gritar, mas deixo escapar um (único, rápido e baixo)

suspiro.