33x14 Angela

Imagem: TingTing Huang

Angela.
Tarde fria, cinzenta, sol se pondo em algum lugar bem longe da minha janela, dia frio, Rachael Lefevre com os cabelos mais vermelhos que nunca, Angela se deita na minha cama e, de repente, tudo faz sentido.

Angela é nome e verbo,
a sensação de reconhecimento do próprio eu, a satisfação de existir, o fim, o meio e o começo de todos os elementos e cores.
Angela é a umidade do ar e do corpo, a brisa gelada que vem da janela, o calor contido debaixo das cobertas.
Ela dança e gira, foge à casa e retorna, lépida, furiosa, intranquila.
Angela repousa, estica os braços para o céu cinza-chumbo e se oferece inteira, finalmente, sem tempo para migalhas.
Não pensa, autômata,
mas ri,
da situação deveras inusitada, da liberdade nova, da textura dos jeans e da carne, da liquidez do mundo, da inefabilidade do destino, das previsões do horóscopo, etc etc.
A música termina, e alguém começa a tocar piano.
Angela para, respira, os gemidos cessam, e ela se deita, escuta
o mundo em silêncio, ainda ali, estático, firme.
No lugar,
o mesmo.
Mas ela já não era a mesma.
Abriu as janelas, a brisa fria entrou forte feito um soco gelado, mas ela não se encolheu.
Ficou parada, observando as primeiras gotas de chuva caírem, observando o mundo mudar sob seus novos olhos.
E, por um segundo,
um milésimo de segundo,
ela não teve medo.

Tudo ficou bem
até a música, finalmente,
acabar.

33x13 Princess of Hearts

Imagem: TingTing Huang

"The card also appears to indicate a woman falling in love"

 Feito Alice, caí no buraco do coelho branco, cabeça cheia de gummy, tonta, feliz. "siga o coelho branco"
Andamos, Elspeth e eu, e eu o vi, na penumbra, atrasado, sempre atrasado, um timing terrível feito o meu.

Estou preocupada, relógio parado, minha vida está uma zona, corações batendo em descompasso, desordem, caos, sem tempo pra levar o lixo pra fora.
As horas nos relógios dos outros batem, iguais, 10:10, 07:07, 13:13, 19:19, 18:18
Meu celular inunda de mensagens, minha cabeça inunda de romance, ressignificando o universo, os eclipses, a sua existência.
Mal entendidos.
Eu não sei o que quero.
E admitir isso também traz uma certa paz.
Algo relacionado à certeza de que não sei e, portanto, a pressão de não conseguir não pode me afetar. A pressão de conseguir não pode me afetar.
Eu não preciso saber.

Gosto disso.

Já me sinto capaz de amar, andar de mãos dadas. Talvez até conhecer pai e mãe.
Não me sinto mais quebrada, destruída, pela metade,
incapaz de oferecer mais do que migalhas.

Não, estou mais forte.
Gosto de quem sou.
e você também vai gostar, quem quer que você seja.

Venha.
Eu gosto de vampiros, de dançar na ponta dos pés, de chuva e de camarão.
Não gosto de ficar doente, nem de arrumar meu quarto.
Setembro tá acabando e eu já quero desistir de você,
já tô ficando assustada com os mal entendidos, com medo de que você seja quem eu não quero que seja.
Então, espero, sem dizer nada.

De pé, no escuro, esperando o último ônibus passar, coração na mão, sem ter certeza da hora, da vida, do futuro.
E quase consigo te sentir,
juro,
quase consigo ouvir seus passos chegando junto com o último ônibus que parte de setembro,
a mão estendida fazendo sinal pra que ele pare.
Me distraio com seu rosto,
te reconheço,
meu corpo todo te reconhece, sussurra empolgado,
e eu sinto vontade de chorar de emoção
porque você veio.
Eu nem sei se você me reconhece, olha,
mas isso não importa ainda.

- Você vem?
é o que a tua voz - cujo tom eu nem consigo imaginar - diz

E eu vou.

Eu vou.
Vamos juntos.

33x12 Unnecessary Talks

Imagem: TingTing Huang

Aviso: Cuidado, não me entenda mal. Isso não é uma declaração de amor (muito embora o seja, à minha maneira). Eu precisava admitir isso, pra mim mesma, para o mundo.
Disse à minha terapeuta "Não penso sobre isso", mas a verdade é que não gosto de pensar sobre isso. Parecia estranho, errado. E eu não queria admitir, porque parecia tolice.
Admitir que a verdade não é que eu não sentia nada: eu não estava pronta. Não digo que esteja, agora. Mas consigo enxergar que não era errado, que não fez mal a ninguém.
O que faz mal é essa minha mania de fingir que não aconteceu.
Isso me trouxe aqui também, e eu gosto de onde estou agora.
Nenhum amor é perdido.

Você vê,
eu não quero falar com ela.
Pelos motivos que você já sabe, é claro, mas por outros também.
Ela me cauda uma miríade de sensações e pensamentos ruins. Eu tento, mas não dá.
Sabe, não é só o óbvio.
Ela fere as coisas em que acredito.
Ela me faz ferir as coisas em que acredito.

Sororidade, por exemplo.
Eu a protegi antes, em detrimento de outra mulher.
Uma mulher com quem me importava infinitamente mais. Com quem me importo.
E, de novo, eu o faço quando olho pra ela e a detesto. Por sua causa. Por sua culpa, não dela.
Mas não só por isso.
Por causa das noites insones em que deixei de estudar para ouvi-la, aconselhar.
Não só por causa do dissabor que me causa a imagem da sua boca sôfrega a tapar a dela.
Por causa das vezes em que reconciliei vocês, sem pensar duas vezes, com o peito a doer e a encher de ciúmes que eu fingia saber controlar.
Não só por causa da sua falta de tato e incapacidade de continuar a me proteger do mundo e do que vinha depois.

Mas eu não sou melhor do que você.

Gostaria de dizer que sou.
Gostaria de dizer que fiz por você o que você não fez por mim, que te protegi disso.
Mas não fiz.Talvez tenha feito pior que essas fotos e palavras dispersas que tanto pinicaram e doeram.

Noite baixa ainda, precoce, e eu estava feliz.
Queria independência, gostar da minha própria companhia, ver um pouco do que o futuro reservava.
Celular vibrou no bolso, ele: "O que você está fazendo?"
Expliquei sobre genes, mulheres e coisas que não se explicam.
E ele, magicamente, incrivelmente: "Eu vou com você, tô passando aí pra te buscar".

Veio, com aquele jeito de quem acabou de acordar, e passeamos pela Noite Escura, tecendo diálogos feito aranhas tecem teias em carros e histórias de Anansi.
Eu estava feliz.
Quando descemos do carro, e nos sentamos, e ouvimos, e demos risada, aprendemos coisas, encontramos pessoas,
Eu estava feliz.

Feliz, porque éramos fortes, estávamos firmes, vivos.
Porque o coração se parte, mas ele sobrevive.
Porque nós estávamos ali, no centro do mundo inteiro, pra provar isso.
Sobrevivemos.

Mas a coisa chegou ao final e, quando entramos de novo no carro, não estávamos mais a sós.
Sentada atrás de mim, essa tensão crescia, aumentava, respirava ruidosamente, me fazendo saber que estava na hora.
Que havia uma razão pra que estivéssemos ali, sozinhos, em um carro que cortava o escuro, o presente e o passado.
E foi nesse período de tempo, cortando a noite feito navalha, que eu percebi o que teimo em não admitir pra ninguém:

Eu o amava.

A pressão quase me esmagou. Tantas possibilidades. Eu podia enxergar, sabe? E podia ser bom, podia ser exatamente como deveria ser.
Mas, você vê,

Eu o amava. (Você a amava?)

De uma maneira extremamente específica, que pouco ou nada tinha de romântica ou de crua, era diferente, complexa, bem formada. Era amor, puro e simples, feito o sol nas manhãs de domingo ou músicas com poucas notas. Um livro com enredo único e direto, sem metáfora nenhuma.
Eu só queria que ele ficasse bem.

Eu só queria segurar sua mão e atravessar a rua. Queria que ficasse tudo bem, enfrentar todo o mundo e toda a dor, com os punhos cerrados. E eu sabia que, se tivesse algo a dizer, teria que dizê-lo ali.
Meus olhos arderam, lágrimas de esforço começaram a se formar.

Eu o amava,
de tantas maneiras.
Por tantas razões.

e eu queria demonstrar, eu queria dizer algo.
Mas não disse.

Eu o amava,
Mas eu também amava você.

E isso estava me consumindo, me desligando dos outros sentimentos, me afastando das possibilidades.
Eu ainda queria você.

Eu o amava, e foi aí que, talvez, tenha traído a memória de nós, mesmo sem ter dito nada, mesmo sem admitir, fotografar e me declarar publicamente.
Mesmo sem levá-lo pra passar o ano novo comigo,
sem encostar minha boca na dele.

Eu ainda amava você
e eu nunca o submeteria a isso.
Eu não queria amar pela metade,
eu não tinha nem metade de mim pra dar.

Eu sei, desnecessário colocar no papel o que todo mundo parece saber, o que você já sabe, o que eu sei, o que ele provavelmente já sabe.
Mas eu precisava escrever.
Precisava dizer,
não por sua causa.

Por minha causa.
Pra evitar os dissabores de guardar algo lá no fundo, deixar passar.

Sinto muito por te fazer perder seu tempo,
mas não sinto muito
por sentir tanto.

33x11 Heart in a cage

Imagem: TingTing Huang

Coração enjaulado, engaiolado, pia, canta e bica.
Perde as penas, perde sangue, um olho ou dois, bate o bico nas grades até partí-lo e morre de fome, sem ninguém pra amar.
Dramático,
até demais.
Abro a gaiola, dou comida, grãos de esperança, e ele  queima, vira cinza e nasce de novo, piando e cantando. Sorrio.

Deixo aberta a gaiola, e ele não foge, não sabe voar, arredio, meu pássaro novo e vermelho vivo, vermelho sangue, cheirando a metal.
Arranco do peito e o levanto na altura dos olhos.
- O que é que vou fazer com você?
E ele nada, nem liga, pia alto, ruído estridente, assim que o sol aparece na janela que não é tua.
- Shhhhh, quietinho! - peço silêncio e ele me olha como se entendesse, olhos brilhantes escuríssimos, pia baixinho.
Mas, se entende o que digo, ignora, faz o que quer. Coloco-o no ombro enquanto lavo a louça suja de domingo e ele começa a piar, baixinho, aquela canção que é sua, até meio nossa.
Canto junto e ele se anima, bate as asas depressa, quase feito beija-flor.
- Feliz, agora?
Ele pia, uma vez só. Depois, fica quietinho, espera.
Comemos morangos, muitos. Limpo meu quarto, leio, estudo, enquanto ele me espera, quieto.
De vez em quando, solta um pio, me recriminando pela falta de ação.
- Não adianta. Eu não vou fazer o que você quer.
Ele bate as asas, zangado, e eu o ignoro.
Penso em explicar, como se explica a uma criança inquieta, porque é que as coisas são como são. Mas não tenho ânimo, e nem sei todas as respostas, nem sei se essa coisa faz sentido ou se é só efeito de setembro e dos eclipses solares.
Ele pia, tristinho, sente saudade, sente vontade. Passo o dedo na sua cabecinha lisa e me dói tudo, bate uma tristeza e uma vontade de ser quem fica com o mocinho das histórias de aventura.
Mas há que se aceitar.
Abro a gaiola e ele se encolhe lá dentro, triste. E murcha, silencia, amuado.
O humor dele contagia, me ponho sorumbática, tristonha.
Quer coisas que não pode ter, que não pode querer, nas quais não pode pensar.
Tolices.

Tolices de cabeça cansada, deito no sofá pra ler, mas não me concentro.
Olho pro teto, faminta dessa familiaridade do teu olhar do outro lado do cômodo lotado, da sensação de que estamos a sós no centro do mundo.
Sinto dor no peito, súbita, lancinante, mas não é Angina, nem infarto, nem TEP, nem dissecção de aorta: é vontade de ser mais.
A dor aumenta, oclui, não vaza, não sai do lugar, inflama.
E ele pia: alto, triste, muda o arranjo da nossa música, tornando-a melancólica, e o som preenche a casa vazia, o mundo vazio, o peito já cheio desses sentimentos que não admito e não admitirei.

Um hora dessas, vou acabar explodindo.
Não esteja por perto, ok?

Não quero te machucar.

33x10 The Hangover, parte 2

Imagem: TingTing Huang

L. me pergunta sobre ontem.
Como vou explicar?
Não consigo, nem quero conseguir contar tudo de maneira lógica.
Não quero tentar contar sobre rampas, e me sentir feito branca de neve enquanto colocava os meninos pra dentro do elevador, contando um por um pra me certificar de que estavam todos lá.
Ou todas as declarações bêbadas de amizade profunda que recebi do aniversariante mais maluco de todos os tempos.
Não quero tentar contar sobre a profusão de cores e livros naquele apartamento que quero ter quando crescer, ou na vista incrível da varanda.
Eu talvez queira contar sobre beber e discutir política e direitos humanos, sobre ouvir todas as coisas que não deveria ouvir calada, e conseguir dar risada e ficar zangada ao mesmo tempo.
Sobre todas as pessoas mais inusitadas, sobre roncos e pasta de dente.
Sobre plantas que se desfazem, gatos psicopatas e muito fofos, milhões de livros de todos os tipos e a vontade de me deitar no chão do escritório e ler todos.
Sobre eclipses solares e mercúrio retrógrado. Saber coisas sobre as pessoas que você nunca saberia de outra maneira.
Sobre perguntas que eu nunca teria coragem de fazer.
Cartas de tarô, de todos os tipos e tamanhos.
Azulejos coloridos e como a luz da manhã é linda.
Sobre como as pessoas sempre me surpreendem.
Eu queria escrever textos e mais textos enormes, transcrições das conversas que tive, queria nunca esquecer nenhum detalhe, capturar cada segundo e guardar em um frasco pra dar risada todos os dias.
Eu queria descrever a familiaridade dos meus pés imundos com o piso e os tapetes, e a minha falta de vergonha na cara de deitar no sofá com os pés sujos pra olhar a manhã.
Queria falar da coisa, A COISA, e de como ela estava lá também, e eu já estou me acostumando, então não liguei muito. Só olhei pra ela e dei de ombros, como quem diz "vamos ter que conviver uma com a outra amigavelmente, certo?". Acho que, por ela, tudo bem. :)
E joguei tarô, uma, duas, três vezes, jogaria um milhão de vezes.
Tirei "Princess of hearts", a personificação desse setembro maluco, de vozes na minha cabeça dizendo que não consigo me parecer com uma princesa, das minhas esperanças românticas e tolas, das minhas incertezas, da COISA, de milhões de pequenos detalhes como as horas iguais nos relógios, e as músicas de amor.
Deixei as armaduras de lado e dormi no sofá, sem medo de acordar com o rosto sujo de pasta de dentes, sem medo de nada, sem vontade de ir embora. Eu só queria ficar, eu só queria ficar ali, como se fosse um lugar sagrado, e o mundo estivesse preso lá fora, enquanto eu estava livre lá dentro.
Livre o suficiente pra dizer qualquer coisa, que tô cansada de beijar pessoas que não significam muito a longo prazo.
Fui sutil, me afastei nos momentos certos e tentei não causar mal a ninguém.
Queria explicar a sensação de não querer voltar pra casa, de criar um limbo, uma repetição daquelas horas, um concentrado de palavras e expressões, de coisas não ditas, engarrafar a sinceridade desse gigante maluco e usar nos momentos certos. Engarrafar sorrisos e aquela cara de "é, eu sei" que o homem-abacaxi faz quando sabe que eu não tô entendendo nada de nada.

Queria contar as histórias toda a hora, pra todo mundo, cada detalhe.
Mas não conto.
Digo uma coisa aqui, um detalhe engraçado ali,
mas guardo a maior parte de tudo, como se tivesse medo de deixar escapar.

Setembro, é, eclipses e etc. Esses segredos não me pertencem.
Ouço tudo e guardo num cantinho da memória, pra lembrar do que não conheço sobre as pessoas.
E é tudo.

A manhã chega, vamos embora, e eu não quero ir. Quero morar entre as duas fileiras de livros da estante, ou na gaveta das cartas de tarô, talvez no mesmo aquário em que o peixe que não se chama Baudelaire. E me sentar cada dia em um sofá diferente, colocar comida para os gatos bizarros e escrever sentada no sofá, enquanto a manhã chega aos pouquinhos e invade o mundo.
Eu não quero ir embora, quero entender cada enigma escondido debaixo da miniatura de aranha e a disposição dos azulejos.
Quero acordar cada um dos sete bêbados insanos e perguntar tudo sobre a vida deles, eu quero
Eu só não quero sair.
Eu só não quero voltar pra minha casa bagunçada e muda, pouco colorida. Não quero voltar pras minhas manhãs brilhantes demais. Não quero voltar a encontrá-los somente nos corredores e não quero voltar lá pra fora, onde existe o tutorial e a vida inteira, decisões a tomar, e pessoas que precisam de mim, precisam que eu me decida.
Eu quero aqui.
Eu quero as paredes coloridas e os imãs na geladeira, quero as poesias de T.S. Elliot e a sensação de que esses pêlos de gato jamais sairão do meu cabelo.
Mas é tarde,
e a vida espera lá fora.
Os telefones tocam, as mães telefonam, meu quarto precisa de organização, minha vida implora por organização, e eu não tenho tempo pra conhecer todos os segredos desse lado do mundo.
Saímos, e ele tranca a porta,
e eu me despeço,
acabou.

Mas deixe,
esse dia vai estar vivo na minha memória por muito tempo ainda.
Muito,
muito tempo.

33x09 The Hangover, parte 1

Imagem: TingTing Huang

Tô tentando achar um jeito de escrever sobre ontem/hoje.
Tô tentando achar as palavras.
Não acho.
Encontro cores, imagens, sensações.
O gosto do álcool na minha língua, amargo, rude.

E me sentir segura no lugar mais teoricamente inseguro.

Bom, do início, pra variar.
Muitas noites em uma só.

16: 00 Sentei no sofá e escrevi. Escrevi, como não escrevia há muito tempo, com vontade, fé nas palavras que surgiam, como se Oliver estivesse me sussurrando as palavras certas. Ele foi tomando corpo, tomando forma, virando gente, andando pelas ruas de Brasília, com passadas incertas, em tardes quentes e brilhantes demais, irreais demais.

18:00 Mensagem no celular, me levanto e tomo banho, gelatinas prontas na geladeira, quero me parecer com uma princesa. Mas nem tanto assim. Eu só quero ser quem eu quiser, e quando quiser.
Visto minhas roupas, mas nada fica bom, nada nunca fica bom. Eu não me sinto feia, só me sinto estranha. É setembro, e eu não quero mais ninguém. Eu quero me achar bonita e me encontrar por aí, na minha escrita e nas minhas ações, quero fazer o que acho certo. E parece certo, soa certo ir hoje à noite. Não espero nada.
Só quero me sentir bem.

20:00 Elspeth. Milhões de coisas passam em minha cabeça, mas tudo me parece tão familiar.
Eu não me sinto mais doente.
E eu sei disso, eu percebo isso nas cores do suéter de Elspeth, o azul vivo, o branco brilhante, e pela maneira como nossa familiaridade não me assusta, me agrada e me deixa tranquila ao invés de acuada.
Observo pelas frestinhas das outras vidas que as pessoas têm e me agrada por demasiado a familiaridade das conexões que existem por aí, amor puro e simples. A noite é escura e quente e, quando me sento no banco de trás das pessoas mais teimosas do universo, eu me sinto inexplicavelmente abençoada pela oportunidade de estar ali.
Casa do homem-abacaxi, melhor amigo/pessoa que menos conheço no mundo inteiro, tudo parece inexplicavelmente comum. Nossa viagem até uma festa de aniversário sem aniversariante, as pessoas na cozinha, o gosto de guaraná e cerveja, vodka e cereja, os milhares de tons de verde na roupa da garota em quem estou acostumada a pensar como a melhor e mais bonita do mundo - palavras do aniversariante/melhor amigo.
(Sei que é confuso, mas é como se esses detalhes pequeninos constituíssem os pontos-chave de todas as lembranças)
88 descendo na garganta, queimando tudo por dentro, as cartas bonitas de um jogo chamado Coup, a sensação de blefar e de não blefar, e de não estar nervosa. Geralmente, não gosto de jogos. Fico excitada demais, nervosa demais e parece que meu coração vai explodir.
Não dessa vez.
Foi divertido.
Meus amigos gritavam, eu gritava, gritávamos e misturávamos nossos gritos sem nexo ao burburinho das conversas paralelas sobre assuntos que desconheço. Meu amigo dançava no chão, e o mundo parecia no lugar certo.
A comida parecia perfeita, a simplicidade da coisa era fascinante, a areia dentro da ampulheta parecia correr mais lenta e até a chatice ébria das pessoas parecia mais suportável.

2:00 Enxaguei a louça e fiquei feliz, inexplicavelmente feliz por estar fazendo algo tão banal. Parecia adequado. Jogamos as coisas no lixo e eu voltei a ser eu, o álcool escoando aos poucos, evaporando e me tornando mais focada.
Hora de ir embora, mas eu não queria realmente ir, queria?
Sim, queria. Queria minha cama bagunçada, lavar a louça suja na pia, minha roupa, estudar histologia e cumprir com minhas obrigações.
Eu queria ir pra casa.
Eu tinha que ir pra casa.
Eu deveria ir pra casa.

Não fui.
Ainda bem.

33x08 In Between

 Imagem: TingTing Huang

É uma sensação estranha essa:
não estar apaixonada por ninguém.

Tô sentada no meu carro, cheiro de chuva fresca, vidros frios.
Olho pro nada e rememoro milhões de sensações que já tive, em dias iguaizinhos a esse.
Em noites iguaizinhas a essa.

Noites em que eu passei chorando deitada nesses bancos,
o caminho da minha casa se confundia com o caminho da casa dele,
e as noites frias e escuras de Otto.

Tô me sentindo meio vazia e solitária,
perdida e insone,
descalça,
um cão perdido na rua escura,
à procura de companhia.

Deito nos bancos da frente,
Kitten Handsome tocando bem alto,
e eu canto,
enquanto olho pro céu sem estrelas.

Tento apreciar esse vazio,
essa estranheza de não amar quem amava,
de não amar ainda quem talvez vá amar.
Mas é difícil.
Complexo.

Gosto da minha companhia.
Mas gosto de viver de amor.
Gosto de tocar a janela fria e ver nisso um significado romântico.
Gosto de ter uma casa pra observar de fora,
de ter coisas de amor pra me lembrar.
Placas de carro e a cor roxa dos vestidos.
Gosto de ter pra onde ir.

Eu gosto da incerteza.
E da certeza de que vem alguém por aí.
É setembro, afinal.
Uma hora dessas, misturado nesses eclipses e segredos, ele chega,
e me arrebata,
me dá casa e comida,
música e significado pras poesias.

Mas, enquanto ele não vem,
tento aprender circulação coronariana,
tento aprender sobre dor torácica,
e como calcular as doses na pediatria.
Tento aprender a ficar estável,
a estar bem.
Enquanto ele não vem,
enquanto ele não vem,

eu não fico apenas esperando.
Tenho muito o que fazer,

mas, levanto do carro, respiro fundo

Setembro chegou.
Só venha, ok?

Só venha.