44x05 Piano man

Imagem: TingTing Huang

- B., não tenha filhos.
Ela diz, de forma pausada, séria. Assim, usando meu primeiro nome.
Me causa arrepios.

Toque.
Toque.
Toque.

E ele o fez.

Até sangrarem os dedos, sujando todo o piano de sangue.

Toque.
Toque.
Toque.

Ele precisava tocar.

E precisava dela pra tocar.
Energia vital correndo nas veias, ele me diz que tocou as melhores músicas de sua vida.
Todo mundo usa,
mas só eu sou doente.

Toque.
Toque.
Toque.
Mais
Mais alto
Mais forte
Melhor

E ele o fez.
Tocou.
Tocou.
Tocou.

O que mais?
O que mais existe?
Pra que mais serve o dinheiro,
e o sexo,
e estar vivo,
e ser?
Senão pra tocar, mais e melhor,
mais.

E a música
a música
ele só queria viver de música.

Por que fazer diferente?
Estava tudo bem.

- Não tenha filhos

As noites desaparecido,
mulheres sem rosto que somem,
e o cheiro de estar vivo,
a dor de acordar no próprio corpo,
quanto
onde
como
o gosto de sangue
e o gosto amargo de remédios pra todas as coisas ruins que a vida traz.

- Não tenha filhos.

Mas

Ele tira da mochila tantos comprimidos, tantos
- Ela não me quer em casa, acha que vou morrer

Ela olha pra mim,
mea culpa,
the sins of the mother

como se o tivesse amamentado com música, dor, ketamina e loucura.

- Não tenha filhos,
ela diz.

Não tenha filhos.

44x04 It takes one

Imagem: TingTing Huang

- Eu quero morrer. Eu só quero morrer - ela diz.
Conta uma história de ninar sobre viagens, idiomas, pais, filhos e o colchão.

Eu sei.
É a mesma história, de novo e de novo.
Eu quero morrer, mas nunca "me deixe morrer", por quê?
Por que você acha que tem escolha?

Nada aqui é real. Nada é seu. Nem mesmo você, sua vida, sua mente.
Nem as cores das cores ou o rosto das pessoas, seus olhos.

Ela caminha sobre a borda, quase cai, espero,
feito uma predadora.

"Venha"

E ele diz que me sente tocá-lo durante a noite, sente meu hálito queimar seu rosto e ouve a minha voz, minhas vozes.
Mas por que ele não vem?
Você não sabe quem sou?

Eu acordei ao seu lado e te dei o primeiro beijo do dia.
Fizemos amor, e você saiu pelas ruas, nu, gritando meu nome.
Eu decido se você pode ou não ser feliz.

E você está, não está?

Você é o dono do mundo. E eu sou sua dona.

Seus olhos pertencem a mim. E você sabe. Sempre soube. Antes mesmo de saber.

Eu estava lá quando você nasceu. Você não se lembra, mas eu te fiz dormir. Eu te fiz sonhar e sonhar até que você não soubesse mais acordar.

Eu te dei sede,
e a cura pra toda a dor.
Eu te dei amor e o calor necessário pra que você nunca mais queira ir embora.

Eu estou aqui.
Te dizendo que eles querem te ferir.
Eles querem te machucar,
mas eu não.

Tire suas roupas.
Corra, nu.
Livre.
Venha, venha comigo.

Você não é nada.
Você nunca será nada.
Você é lixo.
Doente, nojenta.
Você não serve pra nada.
Eu digo,
e te causo dor,
eu consigo sentir sua dor,
apertando,
roendo,
mas é o que eu faço.
Eu sinto muito, é o que eu faço.

Não tome seus remédios.
Você não precisa deles hoje.
Você está bem.
Você está curado.

Então eu escorro pela língua dela feito melado,
e ela se derrete,
está segura.

Todos estão seguros.

Você está segura.
A salvo do mundo
e das coisas ruins que ele pode fazer com você,
mas tem um preço,
pequeno,
você pode pagar,
é tão pequeno,
vá até o banheiro,
pegue gilete.

Eu não consigo dormir sem a minha mãe.
Existem monstros no escuro,
eu sou um monstro no escuro,
ela é.
Se eu acordar de manhã,
só não quero estar só.

Não pare de gritar,
ou elas vão te encontrar,
vão te encontrar onde quer que você esteja
e vão te fazer mal,
fuja
fuja
fuja

"me deixa ir embora
me deixa ir embora
me deixa ir embora, doutora
eu ja to bem. ", ela diz, enquanto eu acaricio seus cabelos brancos, com cheiro de suor , chuva e sabão e sussurro em seu ouvido cantigas de amor.

A médica levanta a cabeça, olha fundo nos olhos dela e diz
"Ainda não", e desvia o olhar
pra olhar pra mim.
Ela pode me ver.

Corre, prescreve pílulas e mais pílulas, tantas
pra que eu durma um pouco mais.

Mas aí ela vai pra casa, dirigindo,
fugindo de velhos fantasmas e medos absurdos de crianças,
e, quando chega,
eu estou lá esperando por ela,

feito uma predadora.