43x06 Cabeça cheia

Imagem: TingTing Huang

Acordei, ansiosa.
Vontade de escrever.

Faz tempo que não acontece. Acordar assim, com essa vontade, essa sede de letras. Pegar um livro, levar pra ler, mesmo sabendo que não dá, um calor no corpo, uma taquicardia estranha.

Sou eu.
Eu tô aqui, eu acordei de algum lugar absurdo onde eu estive nos últimos anos, nos últimos 5 anos.

Minhas solas dos pés tocam o chão devagar, acordando tudo na cerâmica gelada.

Eu sonhei com Holden. Estranho, ele tocava minhas costas enquanto eu dormia e era bom, como um daqueles sonhos antigos com sensações, era bom e simples.

Sonhei com minha avó, ela vestia dourado e toda a luz do mundo parecia se concentrar nela.
Quero acreditar que isso é um bom sinal. Que quer dizer que ela está bem. De volta a casa, deusa africana, mãe de Anansi, avó de uma mulher de metal e ossos, meio Hulder, meio aranha.

A vontade foi passando no decorrer do dia, tem tanta coisa pra ver, pra fazer, pra estudar, e tudo vai sufocando aos pouquinhos a vontade de pegar a caneta, emudecendo os sussurros e as risadas dos meus amores, Otto, meu Otto, e eu sinto que desperdicei tanto tempo, tanta vida, tantas vidas.

Mas tá na hora de arrumar o guarda roupa. Botar a roupa pra lavar. Arrumar a mochila, pensar no dia de amanhã. E depois. E depois.

Tem tanta coisa pra fazer, mensagens, desculpas, leituras, mas não tem paixão, não tem eu, não tem aquela vontade imensa de varar a madrugada escrevendo sem parar, sem descansar, só uma palavra seguindo a outra.

E eu repito pra mim mesma, não se deixe ir. Não se esqueça de quem você é. Não deixe que eles te façam esquecer.

Mas eu já me sinto diferente. Já não sujo as mãos de tinta, nem uso carvão pra desenhar.

Quero filhos, não amores platônicos. Quero doar minhas roupas e arrumar um emprego. Quero dormir. Quero ignorar.

Minha cabeça tá cheia demais, tão cheia que não consigo ouvir os uivos, as cordas açoitando o ar, ou o silêncio por trás das palavras de quem se ama.

E eu quero ouvir. Eu quero ouvir,
mas não sei mais como se faz.
Não sei mais como desligar os sons da vida.

E eu quero desligar,
eu quero sair e pisar na grama,
eu quero a solidão de estar com um milhão de pessoas.

Mas hoje não dá.
Amanhã tem aula.

43x05 A mulher mais bonita da cidade

Imagem: TingTing Huang

Era uma vez uma mulher, a mulher mais bonita da cidade.
E também a mais friorenta.

Ela tinha o sorriso mais bonito do mundo inteiro.
E tinha nascido em fevereiro.

Fazia mágica com as panelas, mágica que só ela conseguia fazer, que ninguém nunca vai conseguir copiar.

Doce de pauzinho.

Ela costumava se sentar na sua poltrona, feito uma matrona, uma rainha, e ouvir gente de todo o mundo contar problemas e discutir besteiras.

E me deixava sentar do seu lado e segurar sua mão, colocava a mão em cima da minha e me dava um sorriso de quem sabe de tudo o que há pra saber.

Ela sabia quem eu era, mesmo quando eu não sabia.

Sabia bem o que queria e o que não queria, contrariando ordens, contrariando homens e mulheres, sem distinção.
Teimosa e incrível, de um jeito que eu nunca vou ser, ela venceu a todos, venceu a raiva, o machismo e acho que até a morte, que provavelmente vinha de vez em quando pra se sentar no sofá e assistir novelas, comer peta e apreciar o jardim.

Ela distribuiu tanto amor, tanto amor, que não coube na gente, que a gente teve que sair por aí distribuindo também, tanto amor que não coube na família, que tivemos que espalhar e fomos agregando tanta gente que mal cabe nos lugares.

Ela me amava.
Ela me amava.

E eu quero, mais do que tudo, que haja algo de bom lá pra frente.
Que ela não esteja sozinha.
Que seja bem recebida, do jeito que ela merece.
Que haja um lugar pra sentar e assistir TV.
Que não seja frio.
Que ela possa cozinhar.
Que haja gente pra conversar.
E mãos pra segurar.
Quero que não seja escuro, que seja bonito.
E seguro.

Por favor, que seja seguro.

Era uma vez uma mulher incrível,
que deu origem a uma família incrível e cuidou dela por trimilhões de anos.
Ela era forte e incrível e linda, e mil coisas que eu nem sei, que eu não tive tempo de saber, que eu queria ter perguntado e agora não posso mais, porque nossos dias são contados.

Mas acho que o que importa é que eu a amava.
E ela me amava.

O resto a gente conserta um dia,
se houver um dia.

Amo você, vó.

Espero que a gente se encontre de novo, em um lugar especial e lindo,
do jeito que a senhora merece.

43x04 Nothingness

Imagem: TingTing Huang

- Mas você está triste?

Não.
Eu não sinto nada.
Absolutamente nada.

De manhã, eu rio. Faço piadas, faço meu trabalho, faço fofocas, eu me importo.
Eu como. 5 vezes ao dia.

Eu beijo. Eu amo, com todo o meu coração.

Eu cuido. Eu sou boa em cuidar.
Cuido toda hora.

E eu rio.
Eu estudo, eu entendo, eu leio, eu assisto.

Mas não sinto nada.
Nem ansiedade,
nem tristeza,
nem alegria.

Acordo cedo, o celular transbordando de mensagens sobre uma boa notícia. ótima notícia.
Viro pro lado e durmo.

Durmo sem dormir, os sonhos coloridos, intensos, morte, medo, raiva, sensações que eu não sinto ao acordar.

Como uma banana.
Dirijo no escuro.
Consolo um amigo.

Mas não sinto nada.
Nem medo, nem raiva, nem dor.

"mas você tem que sentir alguma coisa", ele diz, ela diz.

Mas eu não quero.

Vocês não entendem,
eu não quero.

Eu quero viver no limbo, no nada,
no escuro,
uma linha reta cortando o monitor.

Eu quero ficar estável.

Quero poder voltar pra casa depois de um dia difícil e conversar com minha irmã, a pessoa mais incrível e esperta do universo, de forma tranquila.
Eu quero ouvir.
Eu quero beijar meu namorado sem chorar, prefiro nunca mais dormir uma noite inteira do que chorar pela dor de alguém que mal conheço.
Eu quero poder cumprir um dia de trabalho sem trazer tudo pra casa.
Quero poder conversar.
Quero poder dizer o que penso, sem remoer depois.
Eu quero poder me olhar no espelho pela manhã.

Eu quero não sentir nada,
pra poder aproveitar tudo.

As sensações intensas me sufocam,
me afogam no escuro de quem eu sou.

Então me deixe não sentir.

Pra que eu possa ficar bem.
Finalmente.

43x03 Everybody dies

Imagem: TingTing Huang

Todo mundo morre.

Deuses morrem, e os Perpétuos.

Por que não eu?

Eu corro e tudo o que ouço é o som dos meus pés batendo no cascalho.
Eu corro pra você.

Não morra, não morra, tenho tanto pra dizer.

Mas não consigo reunir as palavras, eu não consigo te dizer o quanto eu te amo, eu não consigo te contar histórias ou te abraçar.

Todo mundo morre.

Então eu corro na sua direção, sem saber como dizer o que tá no meu coração.
O fato de que todos vamos morrer não me torna mais corajosa, me torna mais medrosa, arredia.

Mas eu corro.

Preciso de você, preciso te olhar nos olhos pra saber que vai ficar tudo bem.

Mas como posso ficar bem se eu sei, se eu sei que todo mundo morre? Que a hora chega, que ninguém pode me dizer com certeza o que vem depois?

Eu corro, corro, mas eu sempre me atraso, meu amor.

Chego a tempo de te olhar nos olhos uma última vez, mas eu queria tanto te tocar. Sentir seu cheiro de creme de frutas.

Eu não sei usar as palavras,
mas eu só quero dizer,
todo mundo morre, mas, por favor, não morra.

Volte pra mim.

Volte pra mim.

Volte pra mim, eu grito com os olhos.

E você sorri.

Meu coração para, por um segundo.
Você não tem medo, nunca teve.
Eu sempre tive.

Volte pra mim,
pra me ensinar a não ter medo, você não pode ir porque eu ainda não sei como.

Mas você vai,
e eu fico.

Adeus.

Eu sempre fico.

43x02 B.F.F.

Imagem: TingTing Huang

Sinto muito.

Eu vou consertar, vou consertar.

Arranco meus cabelos com as mãos, até ouvir o couro cabeludo rasgar.
Rasgo meu rosto com as unhas.
Bato a cabeça na parede.

Pronto?
Tá tudo bem agora?

Vai ficar tudo bem se eu disser que acho que nunca vou ser feliz?

Se eu te disser que todas as conversas são vazias.
E que eu me sinto incapaz de amar e ser amada.
Se eu te disser que tem sempre algo ruim à espreita.
E que tem um vazio dentro de mim que não vai embora, nunca vai embora.

Tudo bem se eu disser que nunca me sinto parte de nada?
Se eu prometer que não consigo dizer a ninguém o que sinto,
e que tudo o que eu faço perde o significado?

Que eu sinto vontade de arrancar fora os meus olhos,
e me cortar bem fundo, abrir um buraco pra que eu possa respirar.

Me diz que vai ficar tudo bem se eu ficar sozinha,
se eu ficar mal,
se eu for mal, cada vez pior.

Me diz o que é preciso
e eu faço.

Só me diz.

Pode ficar com tudo, com todo o mundo,
todas as coisas boas
e belas.

Eu só quero me arrastar pra um canto escuro e ficar.

Pode ficar com tudo.

Você merece mais do que eu.

43x01 Sósia

Imagem: TingTing Huang

Tive esse sonho: nos beijávamos.
Estranho.

Acordei com um gosto ruim na boca.
Dia longo, cinza.

Dirigi sem prestar atenção à estrada.

E ri.

Trabalhei.
Ouvindo seus problemas, resolvendo, fazendo aquilo que eu faço de melhor.
E eu sou boa.
Uma mulher me abraça,
então duas,
três,
uma mãe me diz que quer voltar pra me ver "quero me consultar com você, pode ser daqui a 6 meses".

6 meses.
Ela vai esperar 6 meses por mim.
E eu nem sou nada.
Uau.

Eu deveria estar orgulhosa,
exultante.

Mas eu não sinto nada.

Eu sou boa.
Desenho no papel. Corações e flores, uma dieta especial para bebês.
Asseguro uma avó assustada de que tá tudo bem.
Ela me aperta a mão e sacode, sacode, obrigada obrigada.

Mas eu não fiz nada.

Sorrio.
E não é mentira, eu não minto.
Ou minto?

Eu sou uma ou duas?

A pessoa que passa a manhã rindo, fazendo piadas, preocupando-se em resolver problemas, corre daqui e de lá, solicita mamografia, "mas não é nenhum incômodo, eu tô aqui pra ajudar a senhora", "estou aqui pra fazer o que for preciso, pode voltar quando quiser".

Eu sou boa.

Foda-se o escroto que me disse que me faltava empatia,
eu sou boa.

Mas isso me sufoca.

Cada acerto, cada receita, cada manhã.
O ruído da minha respiração.
RCR2T BNF sem sopros.

Tudo me sufoca, chego em casa e tiro tudo, todas as peças de roupa, abro as janelas do quarto, a porta.
Mas não consigo respirar.

E, ainda assim, amanhã cedo o celular desperta, 05:40 e 06:00, eu me levanto, escolho uma roupa impecável, prendo os cabelos, lápis e rímel, protetor solar no lugar, calço meus tênis e vou.

Sorrir,
resolver problemas,
me distrair do que quer que seja essa sensação de vazio intensa, sufocante
que é estar viva.

Tudo some,
até eu sumo
dentro das aspas da queixa principal.