44x21 Death and the maiden

Imagem: TingTing Huang

Eu vou fazer o meu melhor pra ser delicada.


Minha querida,

eu me lembro vagamente da primeira vez em que a vi. Alguém disse que os dias mais perigosos da vida de alguém são o primeiro e o último.

Coisa de pediatra, eu acho.

Você era frágil, miúda. Eu poderia mandar você pra longe com um sopro. Mas eu só estava lá pra te ver.

E isso eu fiz, não só nesse dia.
Eu voltei, muitas vezes, de guerras incessantes, eu carreguei corpos de homens, mulheres, crianças. E almas. Eu enterrei amigos e pais. Amantes.
E, no fim do dia, voltei pra você.

Eu sofri por cada morte, cada beijo que impossibilitei, declarações de amor eterno e desculpas jamais ditas em voz alta. No fim do dia, eu voltei pra te ver.

Eles, eles eu nunca mais verei. Às vezes, percebo que misturo seus rostos, suas vozes, confundo. Mas não a sua.

Eu me lembro da forma como a luz incide sobre o seu rosto à noite, da forma e textura dos seus fios de cabelo. Eu me lembro da sua respiração e do cheiro da sua urina quente de bebê no meio da noite.

Às vezes, levo sonhos, expectativas, sonhos de berços recém montados e roupinhas limpas de bebê e fico pensando
Por que?
Por que eu faço isso?

Um homem me agradece por encerrar seu sofrimento, uma garota, ela tem sua idade, ela poderia ser você, implora pela minha visita.
Ela poderia ser você.
É você?
Pequena, frágil, forte, intempestiva.
Mas você não é assim?

O que eu vejo, o que sei, o que eu posso ver daqui, de onde o tempo não significa nada, eu não significo nada, mas o que isso quer dizer?
Me diga.
Fale comigo.
Olhe pra mim.
Deixe que eu veja.

Estou sentada sob uma montanha de corpos, mortos e por morrer, eu tenho tanto por fazer,
tanto peso por carregar,
mas eu só consigo pensar em você.

Quem você é,
o que você quer,
do que você precisa.

Você poderia, por favor, me dizer?

Por favor.
Por favor.

Não me deixe dormir sem saber.

Com amor,

B.

44x20 Lungs

Imagem: TingTing Huang

Ele acorda, finalmente, depois de um sono de mil anos.
Vive.
As luzes cegam, e ele nasce, no dia de seu nome, que só a morte sabe por completo.
O 1º dia se confunde com o último, a fusão de um círculo e ele sabe demais, ele sabe de tudo, ele conhece o rosto de Deus, ele chora, lamenta forte e confuso, assustado com a dor e a compressão, grita, gorgoleja, os pulmões úmidos derramam dores milenares com gosto amargo.

Ele fareja o ar, mas é difícil respirar, tão frio, então ele segue o calor da mãe e as batidas do seu coração. Essa língua ele já consegue entender.

Mas então, eles o tiram dela, mais uma vez, e calor, mãos que desnudam e exploram, sem pedir permissão, um mundo de cores, vozes, calores, toques, e ele acabou de chegar, ele acabou de entender a razão de estar aqui, é muito.

Tenta respirar, mas é tão difícil, por que é tão difícil?
Exausto, faminto, pede, grita, "deixem-me comer", mas eles não compreendem. Ele procura o coração da mãe na própria barriga, mas não sente nada. Não tem mais nada lá onde ela costumava estar. Só nada.

Tanto espaço aberto, ele estica os pés, devagar, e agora os cheiros começam a surgir, coloridos, e ele se assusta, espirra, o frio provoca soluços e ele se percebe só, frágil.

Mas e agora?

Ele sente o próprio coração bater, sozinho, assustado, pulmões que antes não faziam sentido marchando errado, ele respira sem saber como e quanto, para e volta, o ar o assusta, tudo fluindo, o medo, a fome, a dor, alegria, tristeza, derramando, indo e vindo em ondas enormes, um maremoto, a frustração, a raiva, o ódio, as lembranças do que veio o que será e do que foi, o amor, saudade, o sono, o esquecimento,
ele chora
de vontade.

Alguém finalmente escuta, lhe dá colo, desajeitado, e o coloca no lugar certo.

Ah
a linguagem antiga e sussurrada, a poesia e a beleza, uma cantiga de ninar da pré e  pós carga, a conversa entre o sangue e as veias da mãe, ele está em casa novamente.

A mãe encosta algo em sua boca e ele, de forma incontrolável, como um imperativo de sobrevivência, abre a boca e suga, desajeitado.
A mãe sente dor, ele sente dor, não sabe ao certo o que fazer, só sabe que é a única forma de voltar pra ela, de voltar a ser ela, de voltar pra dentro dela.

Ele respira, nervoso, frustrado por não saber mais de tudo e chora, de novo. Ela murmura, mas ele não entende, ele ainda não pode entender o que ela diz.
Mas então, como mágica, ele sente o gosto doce da mãe e simplesmente entende.
Suga, desesperado, depois tranquilo.

Eles encontraram um jeito de se tornarem um só novamente e ele finalmente descansa, e sonha, com a certeza de que tudo vai ser como antes.
Algo, talvez o último resquício de sabedoria milenar, lhe diz que não, nada nunca será como antes,

mas ele ignora, esquece, mama e dorme.

44x19 Gemini feed

Imagem: TingTing Huang

"Fica tranquila, tudo vai dar certo"

Sim, sim.
Mas o que é dar certo?

A lua cheia no céu conta histórias, mas eu não ouço, me afundo no caos, surda, muda.

E ela lá fora, distante, separada de mim por uma barreira de 6 anos de gesso, desculpas não pedidas, abraços não dados,
isso vai dar certo?

Quando?
Quando, eis a questão.

As pessoas sonham, alto, mais alto, mais forte, elas voam e eu,
eu acabo de me lembrar que tenho medo de altura.

Eu não posso, eu não posso voar sem asas.
"Oh, but you can", diz Houdini, do seu jeito mágico.
E eu quero realmente acreditar.

Mas eu preciso ficar aqui.

- Precisa? - a voz de Otto na minha cabeça.
Me vejo pelos olhos dele: cansada, tão infinitamente cansada de não diálogos, do que está oculto sob a louça e nos cantos do apartamento, de ter medo, de não chegar a tempo, eu tenho medo até de ter medo e estou cansada de estar cansada.

Estou cansada. Com medo de escrever e não ser boa nisso, de não chegar nunca a

Ao que?

Onde você quer chegar?
Quem você quer ser?
Você ao menos sabe?

E então ela, meu demônio pessoal, banhada de sol, brilhante, confortável, se espreguiça e vem até mim. Ela beija meus lábios de leve, se despede
você não é mais problema meu,
você não precisa de quem te atormente, isso

você está fazendo isso.

Não. Estou tentando ir devagar, um passo de cada vez, estou andando.
- Pra onde?
- É, pra onde?
- Pra onde, B.?
- Onde você quer ir?

é quando me dou conta:
não estou me movimentando.

Estou esperando.
De novo.