47x06 Veil

 

Imagem: TingTing Huang

Chego em casa e lavo as minhas mãos, mas o seu sangue não sai. Mancha toda a pele, feito caneta permanente. 

Não sai nunca e eu esfrego as mãos até ficarem em carne viva, mas o seu sangue fica. 

***

Abro a sua cabeça com mil instrumentos inadequados, abridores de latas e facas de mesa, seu crânio duro entortando meus garfos.
Cacos de vidro, tesouras sem ponta e bigornas. 

Pregos e lixas de unhas pontudas, abro buracos e espio aqui e ali, sem fórmula, sem objetivos, sujo tudo com seu sangue, com meu sangue, até não saber mais qual sangue saiu de quem, quem sangrou mais, quem vendeu, se tem vencedores nessa história de brincar de sério. 

Faço uma sujeira, uma bagunça que não sei limpar, que me apavora ter que limpar sozinha, e eu quero parar e limpar. 
Eu juro que quero. 
Mas, como tudo na minha vida, deixo pra depois... 

E pego uma colher de sobremesa, uma chave, um grampo.
Debruço-me sobre o seu corpo - e me causa tremenda estranheza pensar nessa cena vista de fora - e me ponho a cavar, raspar e furar. 
Incessantemente. 
E eu não sei o porquê. 

Eu não sei o que eu quero encontrar, o que eu vou encontrar. 
Eu não sei o que fazer se achar. 

Por um momento, eu paro. 
Eu pauso o mundo inteiro e me sinto sozinha nele. 
Sozinha com você, o que é mil vezes pior. 

Por que? 

A ideia me sufoca e, no entanto, tornaria tudo tão mais fácil. 
Mas a coisa é:
essa não é uma história de amor. 

É uma história de criação, estamos criando algo, não estamos?, eu te pergunto. 
Mas não somos Adão e Eva, como você queria que fôssemos. 
Somos Pandora e Prometeu, somos Victor Frankenstein e seu monstro e eu tenho uma certeza quase que premonitória de que o que quer que criemos será tomado de nós. 

E seremos punidos pelos deuses modernos. 
É só uma questão de tempo.  

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