24X06 Caleidoscópio

Imagem: TingTing Huang

Caro Otto,
uau. Os últimos dias, os últimos meses passaram rápido demais. Penso neles como um borrão colorido cheio de vozes, cheiros e sons,
Achei que nunca mais te escreveria. Não, minto. Eu sempre soube que te escreveria de novo.
Mas é diferente agora. Isso não é uma carta de amor. Eu não escrevo mais cartas de amor pra você, como sabíamos que aconteceria, como esperávamos que acontecesse.
Eu mudei. E você também deve ter mudado.
Eu me apaixonei. É, como quem tropeça. Pisei em falso, meu coração pisou em falso numa dessas noites quentes demais. Quando acordei, já era junho, já tinha corrido mundo e voltado cheia de histórias e roupas novas na mala pesada. Cheia de expectativas, também.
Expectativas sobre o escuro e a capacidade que a ponta das línguas tem de dizer tudo o que há para ser dito, só de se encostarem.
Eu voltei pra casa, pra você, pra essa cidade de concreto em chamas, só pra descobrir que quem voltou não fui eu.
Voltou uma outra, louca, que queria mais do que amores unilaterais e a amargura de esperar e de amar sozinha. Sem voz, sem v oto.
E ela conseguiu isso, conseguiu mais.
Conseguiu luz de postes e sombra de carros, vozes, "eu te amo" em forma de sussurros no meio da noite, ela conseguiu pele e ossos, clavículas e pintas. Muito mais do que já sonhamos ter.
Essa louca, eu, amou. Ama.
Nenhuma surpresa, certo?
Mas, adivinhe só: estou me deixando amar. É difícil, muito. Mas eu deixo, aos poucos. Tento erguer menos paredes ao meu redor, ter menos segredos. Eu tento.
Mas erro muito, não aprendi a fazer isso.
Estou tentando, engatinhando.
Às vezes, me saio bem, sabe? Ele olha pra mim e acredito no que ele diz. Acredito, quando ele me chama de Amor, quando a ponta do nariz dele toca minha testa e ele fecha os olhos e fica quieto, como se tivesse parado todo o zumbido do mundo, como se só existíssemos nós dois.
Acredito, quando o machuco com minha frieza, minha loucura, e ele me diz com os olhos que dói.
Nem tudo é sempre bom, tem muito a ser feito.
Tivemos dias difíceis, em que me abriguei num casaco cinza e quis que o mundo me esquecesse , em que quis desistir. Dias em que eu estava fraca demais pra tentar.
E ele me pegou no colo e disse, com aquele tom de brincadeira, que ia passar, que era besteira minha.
De vez em quando, corro pra minha caverna, me escondo do mundo. E ele vem, me puxa, abre as persianas e deixa a luz entrar.
E eu deixo.

Então, Otto, onde quer que você esteja, com quem quer que esteja:
Deixe.
Abaixe as defesas, destrua os muros, permita que te magoem, permita que se aproximem.
Eu descobri que não somos invisíveis. São as paredes que erguemos, entende?
Deixe que entrem, prepare-se.
Eu sei que não é fácil. Mas você tem que saber que é possível.
É só abrir as persianas. Por um segundo só.
Alguém vai estar olhando.
Alguém vai te ver.
Deixe.

Com amor, sempre,
B.

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