35x09 Costume e outras drogas

Imagem: TingTing Huang

N.A.: Peço milhões de desculpas por esse texto. Mas ele precisava ser escrito. Já faz tempo que me sinto assim, viciada nessa coisa que não consigo nomear. Não é normal, não é natural. E eu precisava de ajuda pra entender, pra descrever.
Acabei encontrando isso em dois textos sobre adicção, um da Scientific American e um texto brilhante e que merece ser lido, de um cara chamado Mark Pilgrim. Espero que entenda o que eu quis dizer, caro leitor. Aliás, espero que não. Não entenda.
Atualmente, estou limpa há 4 dias, 5 horas e 20 minutos. E contando.


Lavo as mãos, seringa limpa , agulha nova, sempre na direção do coração, injeto você ou o costume de nós dois.

O efeito é quase que imediato:
eu me sinto
maravilhosamente
horrível.

E eu quero me sentir horrível.

"Se você realmente se importasse comigo, não iria querer mais passar por isso"
"Você é melhor do que isso"
"Você não precisa disso"

Você está me queimando.
Vocês, essas palavras, nada disso possui significado.
Meu cérebro, meus neurotransmissores: eles não falam a sua língua.
O corpo quer o que o corpo quer.

Você me diz pra parar, pra jogar fora as seringas
e isso só me faz querer mais.
Isso só me faz precisar de mais.
E eu não quero querer mais.

Tento não pensar sobre isso,
eu tento não devanear sobre isso,
evito situações que possam fazer com que eu queira mais.
Mas não posso evitar tudo.
Ir à faculdade,
ficar em casa,
assistir filmes,
ir à festas,
escolher roupas,
dirigir,
ouvir música.
Pensar nessas coisas me dá vontade.
Deitar na cama sem estar com sono me dá vontade.
Situações estressantes ou eventos muito emocionantes, mesmo que muito bons,
me dão vontade.

Notas boas
notas ruins
um dia estressante na faculdade
brigar com os amigos
ganhar um sorteio
ou perder um.
E, de repente, estou sendo sugada por uma vontade incontrolável

Eu tento.
Eu saio de casa e faço coisas.
Eu falo com pessoas.
Eu saio com pessoas.
E, de alguma forma, sempre acabo em casa questionando minha sanidade.
Tem algo errado comigo?
Tem que ter, porque acabei sentada no parapeito, de novo, injetando doses cavalares disso.

Paro.
Não quero mais.
Começo a comer, comer comer comer comer comer
Meu corpo não aguenta
Vomito
Diarreias tétricas
Tomo o remédio do Dr. House e fico boba
Não dá

Estudo.
Eu só estudo.
Eu faço coisas, um milhão de coisas.
Ao mesmo tempo.
Sou a eficiência em pessoa, por dias, semanas até
Até que não consigo mais.
Eu não consigo pensar.
Começo a me sentir incapaz de fazer as coisas,
a ficar cansada
e rabugenta

Fico com medo de que acabe.
De não ter mais onde conseguir
Eu preciso me sentir mal.
Não tenho coragem de pedir,
começo a ficar paranoica, a sentir dores que não passam
O desconforto físico começa a ficar insuportável e não me deixa dormir.

Sinto medo de que alguém descubra, começo a tomar decisões
pra onde ir
onde comer
o que fazer no fim de semana
que me levem até onde posso conseguir mais

Quando isso passa?
Vai ser assim pra sempre?
Eu preciso mesmo chegar no fundo do poço pra perceber que preciso fazer algo sobre isso?

Mas, quando eu finalmente injeto isso, esse costume, não pode ser outra coisa,
isso não pode ser outra coisa
todo o resto parece
insignificante.
A sensação de alívio é indescritível, alívio físico, mental
Eu posso fazer qualquer coisa.
Eu me sinto incrível.
Eu não sinto vergonha
O tempo passa rápido e eu nem percebo
eu poderia ficar assim pra sempre.

Depois vem a culpa,
a vergonha
ter que esconder das outras pessoas,
omitir pedaços
fico entediada na maior parte do tempo

Chego meia hora atrasada, alta,
tão alta
e me sinto culpada, mas não o suficiente.
Digo que preciso ir embora mais cedo porque tenho um compromisso
Cubro os braços com casacos enormes
Não consigo esperar pra chegar em casa depois de um encontro, uso ali mesmo, no carro, no estacionamento. E de novo, ao chegar em casa.
Mais de uma vez, no mesmo fim de semana.
Mil habilidades que eu não sabia que tinha.
Mentir, com a cara mais cínica do mundo.
E desmarcar compromissos com amigos "Não estou me sentindo muito bem hoje, não quero estragar sua noite"
Mesmo quando é verdade, quando fico doente,
eu preciso usar. Pra acordar me sentindo lixo.
E usar de novo.
Dormir e sonhar, persistentemente, com isso.
Fazer muita merda, muita muita merda.
É quando as pessoas já sabem o que você quer antes mesmo que você diga.
E mentir muito. Pra todo mundo, o tempo todo.
Dormir no sofá por meses, quase um ano.
Ter seringas em todos os cômodos. Ou levar a sua no bolso, pra onde quer que esteja indo.
É não querer receber visitas que possam ver o caos que a sua vida se tornou. Pior do que isso, receber visitas porque não se importa com o que possam pensar.
Não conseguir terminar nada ou fazer as coisas que devem ser feitas, a não ser quando preciso fingir que está tudo ok.
E pensar todo ano que "ano que vem vai ser diferente"
Tentar parar e não conseguir. Ou tentar de verdade, como estou fazendo agora, e descobrir que está "dando um jeitinho" pra não ter que parar de verdade.

"Um dia eu paro", digo, depois de uma noite particularmente incrível e terrível
Deito na cama, me sentindo um pedaço de lixo
Meu quarto é um caos, restos de comida e copos espalhados pelo chão, misturados com roupas limpas, roupas sujas e sapatos. Empurro os livros e sacolas de cima da cama pra dormir, sem lavar o rosto
"Um dia eu paro"

Aí sento na cama, seringa limpa , agulha nova, sempre na direção do coração, injeto você ou o costume de nós dois.

E tudo fica bem no mundo

até o efeito passar.

0 comentários: