41x09 Gobi ou a mãe que não era mulher

Imagem: TingTing Huang

Eu acordo cedo, lavo meu rosto e a tinta  branca escorre pelo ralo, sujando a pia.

Acordo meu filho, uma bolinha pequena de cabelos raspados e olhos tão castanhos quanto a cobertura de chocolate do meu sundae favorito.
Ele resmunga e se levanta, sonolento.

Lavo seu rosto até que a tinta escorra inteira, raspo os pequenos chumaços de cabelo da sua juba de leão, eu repinto seu corpo inteiro, pedaço por pedaço, com a paciência de uma artista, pinto com carinho, temor, eu me lembro de um homem que amei e que me disse que, um dia, os Lordes Negros tomariam o poder do mundo e nós poderíamos parar de nos esconder no escuro.

Fazemos uma pequena prece e meu filho, com sua voz infantil, pede a bênção dos Lordes Negros, pede um futuro, pra ser confundido com os outros meninos brancos, pra não ser morto, pra não ser pego pela polícia, pra não ser notado, pra não ser preso, pra ter algumas oportunidades minimamente equivalentes às dos outros garotos, pra não precisar correr, pra não sentir medo, pra não se sentir pequeno, pra sentir orgulho de ser quem é, pra voltar pra casa no fim do dia, pra poder entrar em
uma loja sem ser confundido com um ladrão.

Mais uma vez, sinto uma ânsia triste de pedir desculpas a ele. De me desculpar por não ser mais clara. Por não ser branca.
Mas me lembro de que eu amo a cor da minha pele e minha juba de cabelos, eu amo a minha história e a dor que corre nas minhas veias.

Enquanto ele come, eu conto as histórias do mundo, como foram contadas por meu pai, e no nosso sangue vivem um milhão de almas, um milhão de heróis, homens e mulheres correndo descalços, assustados, mas que jamais serão derrotados por grilhões ou açoites, que vão viver pra sempre através dos olhos castanhos do meu filho, na cor da pele e nos cabelos que enrolam e formam pequenos anéis.

Conto a ele sobre o Tigre e a Aranha, e os animais que vivem na floresta do fim do mundo, e ele me diz que quer ser um pássaro ou uma aranha.
Eu digo a ele que ele pode ser quem quiser.
Mas ele sabe que não é verdade, porque ele não pode ser quem ele é.

Chega a hora de ir e ele me abraça forte
"Mãe, quando os Lordes Negros vão vir buscar a gente?"
- Logo, logo. Enquanto isso, seja um bom menino, sim? Obedeça. Mantenha a cabeça baixa. Não corra. Não ande sozinho. Não pegue nunca as coisas dos outros. Não dê motivos pra que eles olhem pra você. Ok?
Ele faz que sim com a cabeça, me beija e vai embora na direção do mundo cruel.

Eu volto pro banheiro, lavo todo o meu corpo, fazendo escorrer toda a tinta, arranco minha peruca e solto meus cabelos, deixo-os livres pra voar e se enrolar em todas as direções.
Você abre a porta e me observa, em silêncio, com aquela admiração muda, seu rosto branco do jeito certo, o nariz do meu filho, as pintas do meu filho, o sangue do meu pequeno mestiço brincando de correr pelas suas veias.

Você sabe.
Eu também sei.
Mas ele ainda não precisa saber.

Ainda há tempo,
certo?

41x08 O medo da coisa, a coisa do medo

Imagem: TingTing Huang

Abro as cartas, uma a uma, leio o seu nome, me assusto, mas continuo.

Tenho medo. Medo da coisa, medo do medo, medo do que quer que aconteça nas manhãs de setembro.

Eu tenho medo de não saber, de não ter dinheiro, do quarto vazio, dos escorpiões que saem do ralo e do amor.

Danço nua, no escuro, faço preces, mas meu futuro é incerto, as cartas me confundem, o som do mundo me canta canções divergentes e eu só não sei.

Sento no chão do apartamento sob a não luz de um eclipse e não choro, meu corpo rejeita as lágrimas, repele o fracasso e me corta e empurra pra que eu me levante e ande, e eu cambaleio até o banheiro, vômito preto cobre o chão e os meus pés, suja as paredes e as portas dos meus mundos.

Eu tô assustada e me escondo na curva do pescoço do homem que eu amo, e não durmo, não durmo e nem aceito que o tempo passe e que a vida continue lá fora, que ele vá embora, que o futuro se descortine de maneira imprevisível.

A coisa do medo, o medo da coisa é que me coloca próxima de quem eu era antes, de quem eu não quero mais ser, e ela me sussurra palavras que não compreendo, que não quero compreender, que não posso mais compreender, mas que eu tenho medo de voltar a compreender, então eu me afasto de você por medo de me afastar de você.

Loucura, é.

Eu sei.
Agora, eu sei.

Não pretendo cometer os mesmos erros.

41x07 Voiceover

Imagem: TingTing Huang

"Você tem certeza disso?"

Eu penteio meus cabelos, como frutas. Faço alongamento, às vezes volto a dormir.
Acordo, trabalho, como
"Você não é estável o suficiente"

Eu passo maquiagem.
"Você vai machucá-lo. Muito. Mas você não pensa nisso. Você é egoísta"

Tiro o lixo, recolho minhas coisas, pego as chaves e a carteira de motorista
"Você não tá pronta pra isso"

E dirijo.
"Você acha mesmo que gosta dele? Talvez você não goste, talvez só esteja forçando a barra"

Escrevo, trabalho, estudo. Ele manda mensagem. Sorrio, involuntariamente.
"Quanto tempo isso dura? Até você explodir, sufocar?"

Corro pra casa, espero que ele chegue
"Seu corpo é horrível, seu rosto é horrível, paixão não dura pra sempre"

E ele chega, sobe as escadas, me dá um beijo gelado que eu correspondo
"Corresponde? Tem certeza?"

Ele me diz que gosta de mim, usa palavras bonitas, adjetivos brilhantes demais
"Você não é tudo isso"

Toca o meu corpo e olha pra mim como se eu fosse única no mundo
"Ele não sabe o quanto você é especial e capaz de destruir tudo o que é bom"

Depois levanta e diz que vai pra casa
"Ele não vai mais voltar"

Me promete que volta depois, que quer voltar, que quer ficar
"Mentira"

Desce as escadas e vai embora
"Ele vai te magoar. Ele mente. Ele já se cansou de você. Você não vai conseguir mantê-lo interessado pra sempre. Você é doente. Ele está com raiva de você. Ele não gosta mais de você. Você não pode demonstrar o quanto gosta dele. Ele vai contar pra todo mundo. Ele vai se cansar rápido de você. Ninguém nunca vai gostar de você. Ele sabe. Você é anormal. Nojenta. Existem garotas melhores. Mais bonitas. você não é inteligente o bastante. Você acha que consegue? Você mente. Vai ficar sozinha. Ele sabe. Você machuca as pessoas. Você precisa ficar sozinha. Você é venenosa. Sozinha"

Eu durmo.

O celular desperta.
Começa tudo de novo.

41x06 Um certo capitão

Imagem: TingTing Huang

Era uma vez
Bom, eu queria contar a história toda.
Mas não há tempo pra histórias longas, vocês só precisam saber que, um dia,
um certo capitão veio até a minha casa, me levou pra longe e me trouxe de volta.
E eu já não era a mesma.
Eu já não queria ser a mesma.
Eu queria ser dele, mas não sabia disso.
Levei um certo tempo pra perceber, enquanto ele já sabia de tudo, ele sempre sabe de tudo,
e me levou pra jantar,
pra ver o mundo pelos olhos dele,
entrou pela minha porta, tirou os sapatos, a camisa, minhas roupas,
minha vergonha,
e beijou a minha boca com tanta sutileza, tanta vontade e tanto medo que não podia ser diferente disso.

Ele despiu seu uniforme, arrumou meus lençóis e deitou no canto da cama, trouxe comida e escova de dentes,
foi embora prometendo voltar,
e voltou.
Várias vezes, deixando seu cheiro pelos cantos, marquinhas pequenas de mordidas, copos na pia, passos na escada,
o travesseiro na cama, a ausência marcante no silêncio do apartamento.

Voltou e trouxe qualquer coisa de fora, qualquer coisa que eu não sei como se chama ainda, ou que eu não quero saber como se chama, que me deixa calma e feliz e otimista e esperançosa e feliz e invencível.
Voltou e trouxe consigo essa coisa específica, exclusiva, que vai além das milhares de pintas que se espalham pelo seu corpo, da capacidade (terrível) de imitar vozes e onomatopeias e de criar mundos e pessoas, uma coisa cujo nome eu também não sei, mas que tá no tom da voz dele quando ele me diz coisas incríveis, quando falamos sobre o futuro, tá nos olhos dele quando ele olha nos meus, na respiração, no gosto da boca, no calor do corpo, no cheiro do quarto, tem alguma coisa
que só ele tem, algo relacionado a essa lua em virgem, sol em áries, gente que nasce em minas, que abraça gostoso como o quê.

Eu tento entender, explicar, dou um passo pra trás e ele me puxa pra perto, ele me promete que vamos mais devagar, mas a gente corre mesmo assim, porque é certo e é bom, ele fica pra dormir e eu não quero que ele vá embora quando a manhã chegar.
Evito palavras, fico com medo do mundo e de mim, mas ele entrelaça os dedos nos meus e eu simplesmente sei que ele não vai fugir quando as coisas ruins começarem a acontecer.
A gente se beija e eu não quero mais voltar atrás.
Mas eu também não sei seguir em frente.

Ele me diz que eu posso fazer o que quiser. Da vida, dele.
Eu faço cafuné, pego um cílio caído do olho dele e fazemos pedidos
Peço pra gente ser feliz.

às vezes, eu ganho.
às vezes, ele ganha.
às vezes, ninguém ganha.

E eu fico assustada,
morro de medo de que isso queira dizer que a gente não vai dar certo, eu vou cagar tudo em breve e ele vai correr pras colinas ou vai acabar machucado e sozinho.
Aí eu olho pra ele assustada, e ele tá me olhando de volta.
Com aquele sorriso enigmático ou com aquela cara de "caralho, como você é linda". E eu não sou linda, eu não sou nada, eu sou só eu. Mas, ainda assim,
isso não faz diferença.

Nem o cílio,
nem as previsões do horóscopo ou o Rei de Espadas ou as milhares de coisas que podem dar errado.
Porque eu quero que dê certo.
Holy shit, eu quero que dê certo.

Ele me pergunta "O que foi?"

Eu tô pensando se isso é o que eu acho que é.
E tô achando que pode ser, mas não vou te contar isso agora.
Isso pode esperar, a gente tem todo o tempo do mundo.

- O que foi? Fala.
- Nada, eu respondo.

E você podia insistir, você sabe que, se insistir, eu vou inventar alguma coisa, talvez até conte a verdade, mas não quero ainda.
Então você dá de ombros
e me beija de novo.

E tudo fica bem no mundo.

41x05 That stream of dopamine

Imagem: TingTing Huang

Você quer ficar.
Entra, arruma a cama, a porta, as cortinas e deita na cama, como se já o fizesse há anos.
Minha cama,
nossa cama,
você deita,
com suas pintas, seu cheiro, dá aquele sorriso capaz de derreter geleiras e eu me apaixono por você de novo.

Eu me apaixono pela primeira vez em que você diz que tá apaixonado, porque eu tô com tanto medo de usar essa palavra,
e aí você usa e eu só quero dizer toda hora

Ei, vai com calma,
vocês só ficaram 5,6, 7 vezes

E eu quero de novo.
Quero te ver chegar de mochila pra passar a noite,
bagunçar o seu cabelo e sussurrar no seu ouvido.

Eu tô apaixonada pelas suas pintas em lugares inapropriados,
pela sua insegurança
pela sua voz
seu sorriso
e pela maneira como você come um sanduíche.

Tô apaixonada pelo seu perfil enquanto dirige,
pelo som da sua voz,
seus dentes e suas covinhas
pelo seu silêncio
e pelas coisas que eu desconheço.

Tô apaixonada pelos momentos em que você me diz que eu sou incrível,
porque eu te acho incrível demais,
brilhante,
adorável,
lindo,
bizarro.

Tô apaixonada pela visão do teu corpo pela manhã,
pela maneira como nossas mãos se encaixam,
pela sua família inteira,
pela sua imaginação
e pela maneira como você se expressa.

E pelos seus olhos.

Meu deus, seus olhos, sua boca.

Eu tô apaixonada e isso é bizarro, impensável,
irresponsável,
idiota,
eu nem tenho tempo pra isso.

Eu podia me sentar, respirar fundo, esperar passar
Não
Não quero

Pego meu casaco, desço as escadas e vejo sua silhueta atrás da porta
Eu podia dar meia volta, é.
Mas escolho descer as escadas o mais rápido possível, te tirar da noite escura e te colocar pra dentro.

"É dopamina, eu sei.
Vai passar, eventualmente.", eu penso

"Oh, cala a boca, B. Só abra a porta, abra a maldita porta", diz a outra B,
e eu acho sensato obedecer.