Imagem: TingTing Huang
Eu acordo cedo, lavo meu rosto e a tinta branca escorre pelo ralo, sujando a pia.
Acordo meu filho, uma bolinha pequena de cabelos raspados e olhos tão castanhos quanto a cobertura de chocolate do meu sundae favorito.
Ele resmunga e se levanta, sonolento.
Lavo seu rosto até que a tinta escorra inteira, raspo os pequenos chumaços de cabelo da sua juba de leão, eu repinto seu corpo inteiro, pedaço por pedaço, com a paciência de uma artista, pinto com carinho, temor, eu me lembro de um homem que amei e que me disse que, um dia, os Lordes Negros tomariam o poder do mundo e nós poderíamos parar de nos esconder no escuro.
Fazemos uma pequena prece e meu filho, com sua voz infantil, pede a bênção dos Lordes Negros, pede um futuro, pra ser confundido com os outros meninos brancos, pra não ser morto, pra não ser pego pela polícia, pra não ser notado, pra não ser preso, pra ter algumas oportunidades minimamente equivalentes às dos outros garotos, pra não precisar correr, pra não sentir medo, pra não se sentir pequeno, pra sentir orgulho de ser quem é, pra voltar pra casa no fim do dia, pra poder entrar em
uma loja sem ser confundido com um ladrão.
Mais uma vez, sinto uma ânsia triste de pedir desculpas a ele. De me desculpar por não ser mais clara. Por não ser branca.
Mas me lembro de que eu amo a cor da minha pele e minha juba de cabelos, eu amo a minha história e a dor que corre nas minhas veias.
Enquanto ele come, eu conto as histórias do mundo, como foram contadas por meu pai, e no nosso sangue vivem um milhão de almas, um milhão de heróis, homens e mulheres correndo descalços, assustados, mas que jamais serão derrotados por grilhões ou açoites, que vão viver pra sempre através dos olhos castanhos do meu filho, na cor da pele e nos cabelos que enrolam e formam pequenos anéis.
Conto a ele sobre o Tigre e a Aranha, e os animais que vivem na floresta do fim do mundo, e ele me diz que quer ser um pássaro ou uma aranha.
Eu digo a ele que ele pode ser quem quiser.
Mas ele sabe que não é verdade, porque ele não pode ser quem ele é.
Chega a hora de ir e ele me abraça forte
"Mãe, quando os Lordes Negros vão vir buscar a gente?"
- Logo, logo. Enquanto isso, seja um bom menino, sim? Obedeça. Mantenha a cabeça baixa. Não corra. Não ande sozinho. Não pegue nunca as coisas dos outros. Não dê motivos pra que eles olhem pra você. Ok?
Ele faz que sim com a cabeça, me beija e vai embora na direção do mundo cruel.
Eu volto pro banheiro, lavo todo o meu corpo, fazendo escorrer toda a tinta, arranco minha peruca e solto meus cabelos, deixo-os livres pra voar e se enrolar em todas as direções.
Você abre a porta e me observa, em silêncio, com aquela admiração muda, seu rosto branco do jeito certo, o nariz do meu filho, as pintas do meu filho, o sangue do meu pequeno mestiço brincando de correr pelas suas veias.
Você sabe.
Eu também sei.
Mas ele ainda não precisa saber.
Ainda há tempo,
certo?
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