48x05 The end of the world as we know it

 

Imagem: TingTing Huang

"Você vai morrer em breve", ela me diz, olhando as linhas da minha mão. 

- Que bom, eu respondo. 

Ela treme, mas não esboça expressão. 

É o fim do mundo, lá fora. Ou pode ser, ou espero que seja. 

E eu, Macabéa, saio feliz com a profecia, que eu preciso que se realize. 
Vou pra casa, organizar minha mala, deixar meus bilhetes. 

No caminho, compro um sorvete de menta. 
Mas não tomo. 
E se eu tomar? E morrer engasgada? 
Me assusto. 

Respiro. 

Tomo o sorvete. Uma colherada de cada vez. 

No caminho de casa, atravesso na faixa de pedestres, um carro para quase em cima de mim. 
Homem estúpido! Não vê que estou atravessando?

Escurece e eu ando cada vez mais depressa. 
Atrás de mim, ouço passos que quase me alcançam, meu corpo todo se arrepia e eu tremo, e penso em correr, ao mesmo tempo em que paraliso. 

Ele me alcança, e é agora, eu sei que é, me viro, em pânico e

É uma mulher e ela passa por mim, depressa, e segue seu caminho na direção de um futuro que, 
felizmente, 
não existe pra mim. 

48x04 Mirror, mirror on the wall

 

Imagem: TingTing Huang

Aceno, feito Sofia, e espero que a imagem no espelho acene de volta.

Sou eu, é o outro?

A mulher no espelho me persegue, me observa. 

No escuro, ela está lá, presa? Ela existe quando não existo?

Fora do enquadro, o mundo existe inteiro no espelho que fica no canto do quarto? 

Apago as luzes e, mesmo assim, ouço, ou quase ouço ou imagino que ouço a sua respiração, imagino-a embaçando o espelho, o outro lado. 

O outro eu, o outro dentro do espelho, Alice, quem é você?

Você é feliz? Que espaço ocupa no universo e o que você deseja? Você tem o que eu desejo? Eu tenho o que você deseja?

Dizem que, quem quebra o espelho, tem 7 anos de azar pela frente. 
Se eu quebro, e você desaparece, vira parte de mim? Como atravesso? Eu quero atravessar?

Cutuco seus dedos com os meus, e nos juntamos por um instante, sob a superfície gelada. 
Mágica. 

Finjo que trocamos de lugar, que existo dentro do seu universo, e respiro. 

Pela primeira vez, eu saio do lago de Narciso e eu sou eu. 
Tiro a cabeça da água e somem as guelras, eu sou você, e só consigo ser eu se eu for você. 

Nós nos olhamos, sob a mesma superfície, enfim. Duas de nós, no mesmo lugar. 
E isso não é possível, sabemos. 
Não é natural. 

Eu sei o que eu faria. Logo, sei o que você vai fazer. 
E você não surpreende: empurra a minha cabeça no lago, com força, e segura, enquanto eu me debato, luto e luto pra sair, pra respirar, sem sucesso, até aceitar, 

e afundar. 

Early Cuts: Das coisas que se quer

 

Imagem: TingTing Huang

"Eu quero morrer e, com todo o respeito, vocês não deixam, passam remédios e remédios e não me deixam fazer o que eu quero", ela diz. 

O que desejamos?

A força motriz da vida é a busca pelo objeto desejado que nunca se pode alcançar porque, quando se alcança, então
então o quê?

Eu sou, eu existo apenas na jornada. 

O pote de ouro no fim do arco-íris, se existe ou não, importa? 

O que acontece se eu chego à cidade Esmeralda e encontro, no lugar do grandioso mágico de Oz, apenas um homenzinho, fumaça e espelhos? 

Eu quero, e devo querer, mas nunca posso alcançar. 

Não querer a jornada é desejar a morte?
Chegar ao fim da jornada é encerrar assim, a pulsão de vida? 
Mas com sucesso?

Existe felicidade ou só a busca?

E, nos extremos, fatalmente, na saída e na chegada, inevitavelmente, a morte do prazer de existir? 

Meus telômeros desfiando feito o novelo de Ariadne, fios longos cor de carne que vão me guiar num labirinto cada vez mais emaranhado, intrincado, e vazio e sufocante, 

A jornada da Besta e a jornada do Herói se fundem ou entram em conflito, puxando, puxando, sempre na mesma direção do fim. 

Mas 

E se eu não quiser ir e nem voltar? 

E se eu quiser ficar parada no ponto do meio, no limbo entre o não querer e o não seguir,
mas querendo ficar. 
Querer permanecer é querer estar vivo?


Parte II
A falta

Paro no meio da sala. Esqueci algo. 

Não sei o que é, e isso me aflige, me preocupa. 

Te devoro no café da manhã, mas ainda me sinto vazia. 
Eu me alimentei de amor e comida fresca, dinheiro, conhecimento, mas a escassez se sobrepõe ao todo. 

Ou o segredo da vida é entender que
Não, corrijo, não existe um segredo da vida. 

Mas, talvez, compreender a existência e permanência da escassez como força motriz para o alvo do desejo seja mesmo de grande importância. 
A escassez pode ser medida? 
Existem níveis de escassez? 

Como se apresentam?
De forma biológica, nos hábitos? 

As regras da jornada são ditadas à época da formação da pulsão de vida? 
Como num jogo da vida em que se escolhe a profissão logo no início, sem volta. 

48x03 Under control

 

Imagem: TingTing Huang

6mg, 3 dedos de água filtrada pra manter a fiação intacta, impulsos elétricos e íons com cheiro. 

Seu gosto de sono, cheiro de casa, dias estranhos esses, tão ruins e caóticos, 6mg resolvem tudo o que há pra fazer, o dito e o não dito?

Durmo, sono intranquilo, meia boca, perambulo pelo limiar entre o sonho e o não sonho. 

Evito usar a palavra "real" porque o sonho às vezes é mais sólido do que a rotina que se impõe, quente e seca. 
Arenosa. 

Fico em suspenso, 6mg. 
Olho no espelho e sorrio. 
Sorrio. 
Sorrio. 
E sempre estou triste. 

Eu me sinto cor de chumbo, cianótica, enfumaçada. 
Sacrifico Leda no altar, em busca de -
Em busca de mim, eu suponho. 

Abro meu coração, mas não figurativamente, eu o abro e devoro, e sussurro segredos noturnos, passo a entender a linguagem de Oceano. 

E defeco, evacuo sangue, mas não o meu. 

Olho pro outro e não me vejo, só me vejo no espelho, e me odeio por isso, por não ser o outro. 

No meio da floresta, encontro meu duplo, a quem busquei com tanto afinco, a quem eu quis tanto ver. 
Corro pra ele, e o abraço, e o beijo, e juro amor eterno e etc etc e quebro o seu pescoço, sem hesitar, nem mesmo por um instante. 

E, enfim,
me sinto em paz. 

48x02 Motherland

 

Imagem: TingTing Huang

Diga a coisa como ela é. 

Leio sobre mim mesma numa página do DSM, sobre nós. Sobre como é crescer sob a sombra protetora e sombria de mulheres-salgueiro. 

De criança, somos alimentadas com leite fraco, sangue forte e brasas de fogo, feito abelhas operárias. Os meninos, maná e leite e mel, que jorram da terra. 

Somos primogênitas e, portanto, devemos sempre carregar os sacos mais pesados, os maiores baldes, sem parar para descansar. 

Todo mês, sob a lua cheia, nos banhamos em sangue e lama e entoamos cânticos sob o olhar atento das estátuas vivas de mulheres que conhecemos ou que vamos conhecer. 
A lama entra em nossas narinas e seca, endurece, mas não nos movemos. 

Eu não reclamo, eu não choro, eu não posso chorar. Eu só posso aguentar até o fim. 

Endureço, por dentro e por fora, presa na lama, sem conseguir falar, sem conseguir gritar. E, sabendo que, se pudesse, não o faria. Não diria nada, não gritaria, jamais pediria ajuda. 

É preciso sair sozinha, ou perecer. Sinto dor, sinto coceira, sinto a lama queimar meus olhos e narinas, o corpo todo preso numa forma de mulher que eu ainda não sou. 

Sinto que vou morrer aqui, que vou morrer assim, à míngua, como tantas antes de mim. E eu não quero morrer assim. 
Eu não quero morrer assim. 

Mas não sei como sair, só sei que 
Eu não quero morrer assim. 

Early Cuts: Behind the curtains

 

Imagem: TingTing Huang

Cochichamos. 

Você é pequeno, magro demais, cabeludo demais. 
Acho que sou um pouco mais alta, braços longos, cabelos revoltos. 

Escondidos atrás das cortinas, esperamos, pacientemente, até que venham nos procurar. 

Lembro do seu cheiro de suor e salgadinho, meu cabelo grudando no pescoço, pés encostando no azulejo gelado. 

Alguém passa bem perto, chamando nossos nomes, e isso assusta. 

Odeio pique-esconde, a tensão, a corrida, a taquicardia que chega a machucar meu esterno, o medo de correr; prendo a respiração, em pânico. 

Você, sisudo, uma criança de 100 anos, só espera, pacientemente. 
Por fora, calmo, mas consigo ouvir seu coração bater bem alto, e

48x01 The 30th

 

Imagem: TingTing Huang

Cara Ulrika, 

Como vai você? Espero que bem. Viva, saudável. 

Não tenho pensado em você, mas tenho pensado. 
Muito. 
Tenho 30 anos e me sinto muito jovem e muito velha. 
Muito por fazer, por decidir. 

Eu já não quero conhecer o mundo, e nem conquistá-lo. 
Eu amo, e sou amada. É complicado, às vezes. Mas é bom. 

Sempre achei que saberia o que fazer, mas novas incertezas teimam em surgir todos os dias. Sinto medo, todos os dias, e essa sensação terrível de que tudo é incontrolável. 

No espelho, meu reflexo me conta coisas que não compreendo. Tenho a impressão de que tudo o que vai acontecer está a um passo de distância, e isso me paralisa. Faço parecer que caminho, mas não: estou parada, inerte, mal respiro. Tudo, como sempre, é muito. 

Às vezes, quero dormir. Um sono longo, acordar em 5, 10 anos, tudo pronto, decidido, caótico. 

As semanas, cada vez mais longas, com menos dias bons, e a sensação de que nada tem significado. 
Ou, talvez, tudo tenha significados demais. 

Tudo tem história, um cheiro, fumaça e espelhos, o som das vozes, a falta do meu pai que não me desejou feliz aniversário (de novo), tudo tem que querer dizer algo?

Uma vez você me disse que existir doía. 
Nossa, como dói. 

Tenho 30 anos e me falta ódio. 
Eu sou toda, inteira, tristeza. 

30 anos, e ainda me sinto como um projeto inacabado, mal ajambrado e pintado com pouca tinta. 
Pai e mãe me montando o rosto, o corpo, ligando e desligando, testando componentes, até ficar assim, um protótipo de... 
De quê?

Uma máquina, ainda pouco refinada. 

Fecho os olhos e tenho esse desejo consciente, recorrente, de correr. 
Não corro nunca, saiba disso. 
Tenho medo. De iniciar a ação e nunca mais parar. 
Dar a volta ao mundo. 
Chegar aqui, séculos depois, em pedaços. 
Enferrujada, sem memória alguma, seguindo só esse desejo primordial que eu ainda teimo em ter. 
Correr. 

Não sei porque te escrevo, Ulrika. Nem sei onde você está, se se importa. 
Só queria que fosse diferente, entende?

Feliz aniversário pra mim, 
de mim.


Com amor, 

B.