4x06 Calendário de Palavras


-E o que te inquieta hoje?, diz Nona, ocupada em seu eterno trabalho.
Mas não era com ela que eu queria falar.
-Sou eu. - disse a vozinha infantil, saída do corpo de menina velha sentada aos pés de Décima - Eu a inquieto.
-Por que?, são as palavras que consigo articular
Há raiva na voz de Nona: "Sua ira é inútil. Menina tola e arrogante, isso não lhe diz respeito".
Mas Morta já está de pé.
- Não é Ira. - ela me toca rapidamente
- Raiva, ódio, fúria - eu digo.
- Dor - ela toca minhas costelhas e eu grito de dor até sufocar. - Dor e purificação. Purga.
Eu me encolho, pra me proteger dos toques dela, mesmo sabendo que não faz sentido.
- Por que? Por que, por que... - é tudo o que eu digo.
- Por que? - ela se agacha ao meu lado - Porque ele podia ver.
- E como isso... - ela me toca e eu grito novamente, cortando o silêncio sacro da oficina.
- Era demais pra ele. Amor. É instintivo e grande demais.
- Menina tola e azarada. Tola. - resmunga Nona.
- Paciência - diz Décima com sua voz doce e desafinada. - Lhe faltou paciência. Ele quis tanto, como você quis, e acabou sozinho. Muito amor para pouco coração.
- Você vai enxergar, vai sentir. - sussurra Morta.
- Como ele? - grito, acusadora, cuspindo saliva naquele rosto infantil e velho. - Como ele via? Como ele sentiu?
- Saia de dentro de si mesma! - ela grita. O trabalho de Nona para. O trabalho de Décima fica lento e eu mal ouço o assovio da máquina.
Cassiopéia, meus pais, rosas e pequenas abelhas me vêem aos olhos.
- Ele queria forçar um equilíbrio que não se pode forçar. Tem de ser encontrado. E ele o encontrou. Ele seguiu su destino sem olhar para trás, com todo o ardimento possível. Ele encontrou a purga. Ele fez o que estava tecido para si.
Ela sopra meus olhos e tudo volta ao normal.
- Faça também o que tem que fazer mas não tente criar sua própria purga.
Me levanto pra ir embora. E Décima:
- Deixe de aravias, criança. Seu coração é tão grande quanto o céu. Abra o arcabouço, deixe que o toquem.

Redenção.

1 comentários:

Babalu disse...

Sempre imaginei os corações como janelas. de várias formas e tamanhos, algumas mais ou menos fechadas, mas, geralmente, como a porta num quadro do Henri Rousseau, por onde entra uma nuvem, como quem não quer nada...

Pregos no coração dóem, eles enferrujam, inflamam.. até que um dia a gente aprende qual o modo de ir retirando cada um. a gente se aprende com o tempo, parece, mas não sei...