Imagem: TingTing Huang
Estava bêbada.
Estou sempre bêbada.
Os verbos se tornam pó debaixo da língua e eu não sinto dor, eu não sou nada.
A música alta me tira do prumo, e eu deito, eu me encolho e cresço, as pessoas me imprensam, me apertam e a física se curva, tudo ocupa o mesmo lugar, tudo é a mesma coisa.
Eu não sei quem sou. E isso é verdade, mais do que nunca, e é a única coisa que existe.
Um cara me olha, me pede um beijo e eu não sei se quero, eu não sei se não quero. Nos beijamos e eu não quero mais vê-lo de novo.
Respiro fundo, fumaça de cigarro, eu fumo, mesmo não fumando, porque eu não sei quem eu sou.
Uma garota me pergunta se beijo garotas. Digo que não, eu não beijo. (Estou esperando a garota certa, quero dizer, mas não digo)
Dançamos juntas, amigas agora. E eu não olho pra nada, pra ninguém, caminhamos por aí trocando olhares e eu não sinto meus pés.
- Ei, aquela garota é a ex do meu ex namorado, ó, digo, no meu estupor alcoólico. Mas eu também sou a ex do meu ex namorado. - digo isso não sei pra quem, não sei o porquê e rio, como se fosse muito engraçado, mas não é, é nada, é a verdade e a verdade não tem vez aqui.
Encontramos um cara que eu beijei na outra noite e ele me olha incerto, não sabe se me lembro dele, se vamos nos beijar de novo, acho graça, mas é claro que não.
Mas aí encontro outro cara, quebro minha regra, nos beijamos de novo e é bom, mas calma, eu tô bêbada demais pra me importar com o fato de que isso não significa nada. Quero ir lá pra dentro, quero ficar no escuro, onde sou bonita, onde ninguém me vê.
Caminhamos, eu encontro um cara, nos beijamos, qual é teu nome 'Camila' (minto e não minto, porque não quero mais te ver), e o teu 'Bernardo' (Bernardo nem soa como um nome de verdade, ele me conta que vai pra Dinamarca e eu não ligo, não dou a mínima) me beija, e a gente se beija e não é tão bom quanto eu gostaria que fosse, mas eu não sei exatamente o que é que eu estou procurando. Digo tchau, vai procurar outra garota pro que quer que seja.
E eu ando, zonza, tentando não cair e não esbarrar em ninguém, eu não sei mais o que eu quero da vida. Tento me lembrar do porquê faz tanto sentido beijar essas pessoas e não me lembro, sinto vontade de me sentar, mas não posso, não posso, eu preciso achar a pessoa certa, só precisa ser a pessoa certa.
O primeiro cara me pede um beijo de novo, diz que meu beijo é incrível, algo sobre como ele se sentiu e eu não quero saber, eu não quero ouvir, me beija,
não, não é esse, definitivamente não é esse
Danço, e o cara da outra festa me vê, vem falar comigo
'Oi, você lembra de mim?' Digo que sim, não vejo sentido em mentir, a gente ficou e nem foi ruim, 'Eu lembro que você faz medicina, mas não lembro seu nome', ah, cara, eu tenho que parar de falar que faço medicina, disso todo mundo lembra, acho irônico e triste que a porra da medicina seja a coisa mais grandiosa que eu vá fazer com minha vida merda, mesmo pra esses caras. Digo pra ele 'Eu lembro teu nome', ele parece meio tenso por isso, ainda bem que sou boa com nomes e em constranger as pessoas, ele me pede pra dizer o meu e eu resolvo tudo com um 'vai ter que lembrar sozinho', aí é adeus e eu volto pra essa busca insana por nada e por qualquer coisa que signifique algo.
Danço e um cara me olha, mas eu já estou quase sóbria, sóbria o bastante pra querer beijar o amigo dele, o que ferra tudo, porque eu não fico com amigos de caras que querem ficar comigo. Acho horrível.
Ele se aproxima e meu amigo grita "Não vai ficar com ela, ela é minha". E eu digo, meio bêbada, "NÃO SOU NÃO", e me arrependo logo em seguida porque parece interesse e não é: é desespero.
Ele me empurra pro King, e nos beijamos de novo, e acho que ambos já nos cansamos um do outro, já sugamos toda a vontade possível dos pulmões um do outro e nossas línguas já se movem de forma quase automática. Eu não ferro com as coisas, mas tô cansada das coisas que não significam nada, e eu só quero que ele tenha beijado 50 outras meninas e que tenha sido mil vezes melhor. Porque eu não tenho mais forças pra isso. Pra toda essa estupidez, toda essa insanidade.
Quero ir pra casa, mas não dá, eu não tenho pra onde ir.
Ele vai embora e eu fico, eu danço, eu pulo, eu preciso disso, eu preciso ficar, eu preciso não voltar pra casa, eu preciso disso.
Aí o amigo do outro cara volta e começa a dançar do meu lado e eu suponho que deveria achar legal o fato de ele querer ficar comigo mesmo depois de eu ter beijado outro cara na frente dele, mas só acho triste, tremendamente triste. Porque eu não sou ninguém, eu estou suja e cansada, e não sinto nem vontade de tentar.
Ele não desiste, dança e olha pra mim como quem diz "eu quero você e pronto".
Daí se cansa, se aproxima e usa aquela velha frase "Eu ia esperar mais, mas você é muito linda e eu preciso te beijar".
De repente, sinto que tenho 80 anos, ou 100 ou mil e que já vi aquela cena tantas vezes tantas vezes. Mas ele é jovem, e quer beijar uma droga de garota que já deve ter pego zilhões de bactérias da boca de outras pessoas, e vai que é ele, vai que é esse e não o amigo dele, vai que os planetas se alinham e
Bom, não.
Não era ele. A gente se beija e eu faço aquelas coisas que eu faço, automaticamente. Estou certa de que ele deve ser um cara legal, deve merecer mais do que isso, digo isso a ele, em outras palavras, mas ele balança a cabeça, "eu queria você".
Ele pergunta meu nome, o que faço da vida, here we go 'Camila, psicologia', e de repente eu só sei que nunca mais vou falar meu nome de novo.
Aí acaba, sempre acaba, adeus, adeus.
Todo mundo vai embora e só a gente fica - James e eu- , dançando as músicas do final, com uns caras engraçados, até a manhã quase chegar.
Quando ela chega, estamos onde sempre acabamos, em casa, sentados, cheirando a cigarro, bebida e suor, gosto de morte na boca,
- Acho melhor a gente dar um tempo dessas festas. Muita gente conhecida. Que não quero ver de novo.
- Yep. De acordo.
Aí a gente dorme, e o significado dessas coisas se perde, pra nunca mais ser encontrado.
Ainda bem.
29x06 Dinamarca
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