44x03 Entre os horizontes da ordem e do sonho

Imagem: TingTing Huang

Como é?
Como você chegou aqui?

- Eu não me lembro.
Só sei que foi assim.

Um homem me conta que foi dormir
e acordou outro
que nunca mais dormiu.

Como o menino que nunca dormia.
"É porque eu tomava muito café",
ele me justificou.

- Deus falou comigo sobre as tribulações.
Ele me mostrou a morte e o sofrimento.
Como alguém não ficaria louco ao ver isso?
Como eu sei que você não tá falando a verdade?

- Tem um chip na minha cabeça. Um dispositivo. Da china. Só quem tem um desses pode se comunicar comigo.
Ah.
- E tem clones meus. Em todos os lugares.

- Eu quero morrer.
- Por que?
- To cansado disso tudo. De vocês, de remédios. Eu quero morrer. Se você me der alta, eu vou me matar.

- Eu quero sair daqui e ser pastor. Estudar teologia. E psicologia.

- Você tá com vontade de beber?
- Nunca mais.

- Quero fumar. Você tem um cigarro?
- Tenho não. De onde você veio?
- ... Quero fumar

- Meu filho disse que o que eu tenho é frescura, dra., que só quero chamar atenção. Se você me disser que é preguiça, que é falta de vergonha, eu dou um jeito. Eu só quero saber.

- Que dia é hoje?

- Fica com Deus.

Cortes, cortes e mais cortes. Superficiais e profundos, nos braços inteiros, feito uma floresta de pêlos, feito listras de tigresa, uma tigresa ferida.
- Vai pra casa e não volta.
Não, não volta.
Mas ela tá mesmo legal?
- Quando ela chegou aqui, ela nem falava. Não comia. Não se levantava da cama. Fazia as necessidades deitada mesmo. Quase uma catatonia. Melhorou demais. Mas ainda tem muita luta pela frente.

- Me deixa ir embora doutor, pelo amor de Deus

- Não quero ir embora não, só quero sair quando eu estiver estável. Sabe, tem até coisas boas na esquizofrenia? Tem passe pra viajar pra onde eu quiser. Até o nome eu acho bonito às vezes.

- Você não acredita em mim, Dra., mas Deus falou comigo, ele me revela coisas, ele me diz coisas. Nem todo mundo acredita, mas é verdade. Ele me escolheu.

- Quero ser uma menina. Meninas são meigas, delicadas e todo mundo quer ficar perto delas.

- Eu tomei banho hoje.

- Não melhorei nada.

- Estão colocando remédios na minha comida. Eu conheço meu corpo.

- Posso ir pra casa amanhã, doutor?

Que loucura querer fazer isso pra sempre.
"Eu amo psiquiatria. Eu não faria outra coisa".

É,
acho que nem eu.

44x02 Quero minha mãe

Imagem: TingTing Huang

Não consigo.
Tá pesando.
Todo dia uma coisa nova,
um texto,
e eu tenho que estudar,
eu tenho que fazer as compras,
eu tenho que arrumar as malas,
achar um lugar pra morar.

Eu tenho que pagar uma conta,
eu tenho que arrumar um emprego,
eu tenho que não me sentir mal por ser adulta, porque é assim que é a vida,
eu tenho que passar a roupa e arrumar as coisas, e dirigir pra todo o lado da cidade, eu não posso esquecer desse compromisso,
e de estar em casa às 19h,
de mandar essa mensagem, fazer essa reserva,
ler esses artigos,
conversar com o senhorio,
estudar neurotrauma,
tirar as roupas do varal,
comprar um guarda-chuva,
arrumar dinheiro,
ir ao hospital,
dormir e beber água,

Eu tenho que não cair de sono antes de tomar os remédios, lavar o rosto, tirar a maquiagem, escovar os dentes, passar creme nos pés, cortar as unhas
Eu tenho que tomar banho
e lavar os sapatos
sempre ter calcinhas limpas,
enquanto sei tudo sobre comunicação de más notícias

Pôster e artigos,
eu preciso nunca esquecer de prescrever todas as pacientes,
abastecer o carro,
trocar a bateria,
arrumar os relógios e encher as garrafas de água,
eu preciso não parar pra jogar ou ler ou assistir filmes e novelas,
e fazer exercícios,
e arrumar meu quarto, e manter meu quarto arrumado,
limpar a geladeira
e o banheiro,
e mandar mensagem pro meu pai,
e pros meus amigos,
e pentear os cabelos, hidratar os cabelos, matizar os cabelos,
limpar minha bolsa, mandar os boletos pro e-mail,
ir ao banco,
ir à faculdade,
comprovante de endereço,
ir à papelaria, comprar um creme e um repelente,
e não gastar dinheiro.

Tenho que lembrar de não bater o carro - de novo - e de não levar multas.
De trancar a porta, fechar as janelas, tirar as coisas da tomada,
não esquecer o carregador, blusa de frio, comida,
sapatos,
o estetoscópio.

nem os jalecos limpos.

Não posso esquecer as toalhas, de limpar as cortinas,
jogar o lixo fora.

Eu nunca posso esquecer nada,
nem fazer nada de errado,
nem parar.

Tenho que lembrar de não ficar triste,
nem chorar porque isso me faz perder tempo.
Lembrar de comer,
de dormir,
de meditar,
de respirar.

Eu só quero colo.
Que me digam que dá pra fazer, que dá pra lembrar, que dá pra esperar, que melhora.

Mas não melhora.

Só piora.

Preciso me lembrar disso também,
só piora.

44x01 Últimas palavras

Imagem: TingTing Huang

Caro amigo,

eu tenho medo. De você, de mim, do futuro.
O que está acontecendo?
O que você está pensando?
Você não tem medo?
Das pessoas nas ruas, dos seus amigos que demoram a voltar pra casa nas noites de domingo, dos amigos que aos poucos precisam deixar de ser quem são.

Tenho medo, confesso, de estar enlouquecendo. De estar errada. De que você esteja certo. De que ele seja mesmo o melhor para o país.
Mas se eu estou errada, a imprensa internacional está errada, se tudo em que acredito é mentira, se estou sendo manipulada e você não, então eu não entendo mais nada.

eu não entendo mais de livros, de história,
do medo do povo que queria poder escolher - e que você talvez acredite que era bandido,
não entendo mais de tortura, e de como é uma coisa horrível e revoltante - que você talvez ache que foi feita só com gente que merecia, mas que ninguém merece, ninguém, por pior que seja. E me olha no olho, não grita comigo, eu não discordo de punições, eu discordo de estupro corretivo, de choques elétricos e de colocar animais vivos nos genitais das pessoas.

Meu amor, se você tá certo, eu não entendo de gente que apanha, que morre só por existir, que morre só por estar ali, por ser, por querer.
Se você tá certo, então eu tô errada em querer mais do que eu tenho, em querer ser igual, em querer ter voz.
Meu amor, você tá me dizendo que eu não entendo, então você deve entender porque você sabe tanto, eu te amo tanto, porque você talvez vá ser médico um dia, ou vai cuidar de pessoas de algum modo, vai educar filhos, você tem pai, mãe, irmãos, você me tem,
e tá me dizendo que não liga,
que a solução do Brasil é a morte de quem pensa diferente, de quem é diferente, de quem quer diferente do que você quer.

Se você tá certo, então eu tô errada em achar que tá tudo perdido, eu tô errada em ter medo de dizer em voz alta o que penso porque eu tenho medo de que a minha família pague por isso em alguns dias, alguns meses. Tô com medo de sair na rua com a camiseta errada, com o adesivo errado, com a opinião errada.
Se você tá certo, então eu tô errada por achar que muitos dos meus vão se machucar, que o sangue deles vai estar mais e mais espalhado por aí, pelas esquinas, nas próprias casas, canivetes, nas mãos de homens e mulheres comuns.

Se você tá certo, então eu tô muito errada, muito errada, sonhando com um mundo absurdo onde as pessoas podem se amar, opinar, andar nas ruas, onde eu posso ser quem eu quero ser, onde eu não preciso me preocupar com qual banheiro meu amigo vai usar, e com quem ele vai encontrar sozinho nas ruas, ou se ele vai andar de mãos dadas.

Se você tá certo,
então eu não quero estar.

Eu amo você,
e eu ainda morro se for preciso pra defender a tua opinião divergente,
morro por causa dela,
mas jamais concordar com ela.
Nunca.

Nós talvez não sejamos mais amigos - como podemos ser amigos assim? Você me fere, me machuca. Você não é estúpido, é a pessoa mais incrível do mundo. E, ainda assim, escolheu seu lado. -
Mas eu amo você,
sempre vou.

Se um dia nos encontrarmos de novo, não desejo que um de nós esteja mais certo do que o outro, não.
Eu não quero dizer: "Eu avisei"
Eu quero dizer "Olá". Eu quero estar bem. Quero que você esteja bem.
Quero que esteja tudo bem.
E que possamos caminhar juntos.

Agora não dá,
mas quem sabe um dia?

Com amor,
todo o amor,

B.

43x22 To scream your name (Season finale)

Imagem: TingTing Huang

Vem.
e me dá todo o espaço do mundo
pra crescer
e amar.

Me busca no canto do universo, pra ser tua, pra ser a mãe dos teus filhos, pra ser finalmente, talvez, se der,
feliz.

Eu só quero viver bem.
Mas - eu não sou bem.

Me mostra a beleza do mundo, e tape o sol com a mão pra que ele não possa ferir meus olhos.
Cuide de mim.
E não vá embora.

Me deixa amar,
e correr.
Ralar o joelho. E chorar.

Fala.
Alto e claro, pra que eu ouça a sua voz. Pra que eu entenda. Sem subterfúgios, sem mentiras.

Penteie o meu cabelo enquanto te faço amor, eu te dou amor,
e você me deixa ser quem eu quero ser quando eu crescer.

Dança comigo, dorme comigo, caminha comigo e, em troca, eu te dou um nome,
eu grito seu nome,
quando eu souber qual é.

Early Cuts: Magnificent Beast

Imagem: TingTing Huang

"You are a magnificent beast"

Tô olhando pra cada pedacinho da minha parede, e cada um conta uma história, tem uma marca, uma cicatriz.
Eu não me amo.
Eu detesto acordar no meu corpo,
com meu rosto.
Detesto minhas maneiras,
a maneira como minha cabeça funciona,
eu nunca nunca nunca me sinto suficiente.

E isso cansa,
exaure.
Tanto que nem sei como consigo me levantar de manhã.

E, ainda assim,
eu ouso.

Eu ouso olhar as cicatrizes e tentar.

Eu quero, eu sonho
em ser aquela garota.
Aquela, você sabe qual.

Eu quero ser como ela.
Não sei se algum dia vou deixar de querer isso.

Mas, enquanto não acontece,
eu devo dizer
que meu namorado me acha linda. Mesmo de manhã. Mesmo quando eu choro.
E que eu amo meus cabelos de molinha e meus pés.
Minha pele tem milhões de tons diferentes, cada um com uma história pra contar, de sol, chuva, carnaval e luta.
Tenho boas orelhas. Talvez eu devesse usar menos o cotonete, brincos maiores. Mas os fones encaixam direitinho. E isso é bom. Incrível.
Bons olhos castanhos. Uma mistura dos olhos de tanta gente, mas que são só meus. Um castanho que é só meu e de mais ninguém.
Tem também essa boca que minha mãe sempre disse que era fina demais, mas que tá de bom tamanho.
Dentes de criança, mas que eu amo, que servem pra experimentar uma ou outra coisa, doer quando como doce.
E essa língua que já me levou pra tantos amores, que sente seu gosto.
Tem essas mãos meio desajeitadas e braços longos, que servem pra escrever - que eu amo -, pegar livros, mandar mensagens, pegar na tua mão,
Te abraçar à noite quando ficamos de conchinha, pegar minha irmã no colo pra levar pra cama, cozinhar arroz e milho,
e sentir. Folhas e cores, sons e pele.
Essas pernas que me fazem lembrar minha avó. Me fazem pensar que ela vive em mim, de algum jeito.
Tem meu umbigo e a história de quando minha avó colocou uma moeda nele.
Tem essas pintinhas, essas manchas, que eu não sei pra que servem, nem se vão me fazer mal, mas estão aqui.

Tem tanta coisa boa pra ver, pra mostrar.
Mas eu ainda quero ser aquela garota.

Eu só espero que, um dia, eu queira ser essa garota.
Espero que eu entenda que assim tá melhor que bom, mil vezes mais.

Mas, enquanto não acontece,
eu vou vivendo,
tentando me lembrar, tentando lembrar as pessoas de que
aquela garota nem existe.

Mas essa existe,
e é magnífica,
incrível,
maravilhosa,
sen sa cio nal.

43x21 Dinâmica uterina

Imagem: TingTing Huang

Ela estava chorando, gritando, me implorando pra deixá-la sair correndo.
Mas não tinha mais como fugir.

- Ele vai te dar um remédio agora. Vai fazer mágica. A dor vai desaparecer como se nunca tivesse existido.

Eu disse, sem perceber, percebendo
que queria que ele fizesse o mesmo por mim.

Que minha dor era como a dela,
regular,
intensa,
dessas que não melhoram com os remédios comuns.

Que eu precisava estar no lugar dela.

- Relaxe, relaxe os ombros, abaixe a cabeça

E, de repente, as mãos de Houdini, me fazendo massagem, destruindo a tensão com os dedos,
com amor,
com otimismo,
mas sem bupivacaína.

Parecia suficiente,
mas não,
não é.

Ainda dói,
fundo,
surdo.
Dói, rasga, vai e volta,
mas nunca some, nunca melhora.

"Quanto pior a dor, mais perto do fim estamos chegando", eu prometo.
Mas quanta dor eu consigo aguentar?
Minha verdade é verdade pra tudo,
pra todas?

- Eu só quero que tirem isso de mim,
34 semanas e diabetes me diz.
E eu digo a ela pra ter paciência, esperar mais um pouco,
mas eu também só quero que tirem isso de mim.

Agora,
agora.
Eu não quero mais sentir dor.

Mas tudo o que eles sabem - eles sabem de alguma coisa? -
é fazer perguntas,
sangue ou líquido ou contrações, queixas urinárias, se ele se mexe,
e então desaparecem e não me dizem nunca quando passa a dor.

Mulheres gritam, mulheres choram,
aqui e em outros lugares,
no escuro,
em casa,
na igreja,
paradas de ônibus,
no meio do nada,
sem poder pedir ajuda.
E eu posso,
eu posso,
mas pra quem?

Tem sangue,
e líquido escuro nas minhas mãos,
ele não se move,
eu sei que tem algo errado.
Quando o mundo está em silêncio,
eu quase posso ouvir seu coração bater.

Mas caminho,
caminho,
está chegando a hora,
mas dói,
dói tanto,
que eu não sei se consigo aguentar,
que eu não sei se quero aguentar.

mas eu queria tanto.

Deus
é bom e justo

e o interior do meu corpo é quente, febril,
me diz
quantos centímetros?

Quantos centímetros de dor eu preciso aguentar até que você decida que não preciso mais aguentar?

Então a hora chega e eu grito seu nome,
eu quero segurar a sua mão,
eu não quero passar por isso sozinha,
me dizem pra prender a respiração,
fazer força,
mas eu não tenho forças sem você aqui.
Só que você não vem,
você não consegue me encontrar,
e eu tenho, mais uma vez, que fazer tudo sozinha.

Sempre sozinha,
mas agora eu tenho isso,
então eu seguro o grito entalado na garganta e faço força,
minhas últimas forças,
depois de tanta dor,
tanto medo,
tanta procura,
eu não vou mais ter que ficar sozinha.

Então,
força
força
força
não para
assim
empurra meu dedo
força de coco
prende a respiração
descansa
ele precisa nascer

mas eu não consigo
você consegue
e eu dou tudo de mim
tudo de mim pra você,
mas você não vem
você não sai,

não é seguro aqui
e você sabe
e sofre

alguém te empurra,
te obriga a sair
e você sai,
em silêncio,
se recusa a chorar,
se recusa a respirar,
se recusa a viver

se recusa a ficar

e me deixa só.

- A dor vai passar assim que ele nascer, ela disse.

Mas não passou.
Não passou.

E agora?

- Alta.