44x17 L.O.T.E.

Imagem: TingTing Huang

Caro Otto,

eu sempre volto pra você quando estou confusa, certo?
Acho que, a essa altura, já entendemos que escrevo mais pra mim do que pra você.
Preciso de alguém.
Homem ou mulher,
preciso de contato, profundo, intenso, doloroso.

Está em todos os lugares, nos meus sonhos,
nas casquinhas de machucado que eu arranco da pele.
Você sabe o que eu quero dizer?

Meu aniversário.
Eu não consegui escrever nada, manter a tradição de escrever algo pra mim.
Então escrevo pra você.

Porque preciso de você.
Tantos anos desde nós, e eu ainda preciso de você pra entender que estou viva.
26 anos já, e eu não sei pra onde ir.

Eu sei quem sou.
E sei que não sei quem sou o bastante, porque eu sou muito, fui muito e serei muito mais.
Mas mais o quê?

White noise,
nas ruas,
em casa,
à noite,
em você.

Estamos vivos.
Você.
eu.

Mas às vezes nem parece, porque tudo simplesmente flui, a vida acontece sem que eu tenha que fazer nada.
Se eu não quiser, não preciso fazer nada, nunca mais.
Só preciso esperar,
e tudo vai sendo decidido, encaixado, aprontado.

Eu não sei o que quero,
eu só sei querer.
E fingir que não quero, aparentemente.

Nasci outro dia, sabe? e já me botaram coisas, ideias, um nome, um número,
umas ideias tortas de pais e mães,
umas ideias tortas de mim.

Cabelo de molinhas,
e mais o quê?
Não tenho nada pra mostrar, não tenho documentos pra provar que eu sou como você.
Só tenho a minha palavra,
e ela não vale absolutamente nada.

Eu sofro.
Estranho dizer,
estranho admitir.
Eu sofro.
Dói pra caralho, e eu também não quero me levantar amanhã,
eu não quero me levantar e não quero que amanhã chegue,
mas chega.

Com você, sem você,
o tempo vai, aos poucos, deixando de fazer sentido.
O hoje, o agora, amanhã, pra sempre.
Eu deito na cama, me espreguiço, e meus pés tocam o futuro, meus dedos da mão ficam úmidos e gelados ao tocar as gotas de chuva da noite em que eu decidi que a gente não era pra ser.
Que foi ontem, ou é amanhã,
daqui a 100 anos,
tanto faz.

Talvez eu não queira nada porque eu já tive tudo.
Já fui mãe,
já cometi o erro de não ser perfeita.
Já fui importante,
até não ser mais.
Já fui boa,
e ruim.
E agora eu só estou.

O tempo se dissolve debaixo da minha língua, efervescente,
e é tudo de que preciso pra entender que estou exausta,
tonta com as voltas do tempo a minha volta, feito um redemoinho,
enterrando e desenterrando as coisas,
me confundindo,
me fazendo sentir que o agora é ontem, e o amanhã é hoje.

Segura a minha mão.
Não me deixa afundar na areia que escorre da ampulheta.
Segura a minha mão, Otto.
Eu só preciso saber que dia é hoje,
que ano é hoje,
quem é hoje,
onde é hoje,
quando é hoje,
por que hoje, Otto?

Por que hoje?


Com amor,
B.

P.S.: Feliz aniversário pra mim, de mim.

44x16 Delicate

Imagem: TingTing Huang

Tecido fino e transparente. Diáfano.
Tecido dos sonhos.

O que os sonhos dizem? Que histórias contam por trás das histórias absurdas, as cores e a falta de som, homens que falam sem mover os lábios, espíritos, estranhos, defuntos.

Cores verde-escuras, nuvens, sua boca.
O barulho do despertador que me acorda de bexiga cheia.
Eu te amo?

O sonho queima as bordas da realidade, queima meus dedos que eu retiro por reflexo quando toco em você.
Você queima, forma bolhas de líquido viscoso que cheiram a algodão doce.
Elas estouram, sem doer. Infectam.
Faço febre.
Não durmo, sinto meu corpo queimar, em chamas, escaldadura, eletricidade de alta tensão, brigadeiro, thinner, asfalto quente, deixando sequelas, imprevisível.

Bebo água. Sinto medo por meu corpo e do líquido que foge dos espaços certos.
Dentro de mim, maremotos; por horas e horas até a maré acalmar, o sol se por.

Sonho com seu corpo. Liso, leve. Não é normal, não é humano, é feito do mesmo pó de que viemos, mas não somos o mesmo.

Você constrói destruindo, criando em mim uma armadura, carapaça, me rasga pra me endurecer, repuxa meus olhos, boca, cada articulação até que eu mal consiga me mover. Até que eu me curve.
Me rói pelas beiradas, sem aviso prévio.
Me marca sem previsão de alta, sem prognóstico.
E me cura com pós, espuma, pano, pomadas, beberagens, palavras mágicas, malhas.

Apenas pra me queimar de novo.

44x15 Sleepless in Brasília

Imagem: TingTing Huang

Não acorda.
Não dormiu.
O cheiro de fogo nas narinas morde os sonhos e os afasta.

Mr Sandman, uma figura sombria, alta e esguia, uma sombra de perpétuo espalha areia sobre seus olhos abertos e ele luta contra o calor do metal e dos asfalto.

O ruído da pele, queimando, sutil, crepitações baixinhas e os gritos das crianças nas ruas, a pena dos homens, a repulsa das mulheres.
Não, ele não pode voltar.

Uma sacerdotisa traz um espelho e ele não quer olhar, então fecha os olhos com força, uma força tão grande que parece que sua cabeça vai explodir.

Mas é um sonho. Tão real, tão terrível como só um sonho pode ser.

Abre os olhos e lá está ele, antes do acidente. Ele.
Ele se reconhece, pisca, toca a pele lisa, seus cílios, nariz, boca.

"Por favor, deixe-me morrer aqui, deixe-me morrer aqui", ele implora à sacerdotisa silenciosa com o rosto coberto por uma máscara de metal e cinzas.
Por favor, por favor.
Mas ela não responde, apenas segura o espelho, estática, e ele sente o sonho descolando feito um curativo velho, o rosto retraindo, secando.

Acorda chorando, encolhido, o olho úmido, sem pálpebra, sol alto, mais um dia.

"Não vou dormir nunca mais".

--

Ele sonha com trovões.
Um espasmo súbito, único, passando por todo o corpo de uma vez só, sem ser de uma vez só, o tempo passando e parando, a luz branca, cegando-o, e o som de explosão, da pele, músculos e ossos paralisados, assustados.
E, depois, a escuridão.

Ele preferia a escuridão.

Tinha medo da luz, mas ela estava em todos os lugares.
Como nunca tinha reparado?
Dizia a todos que era um problema da visão, uma sequela. Mas era medo.
Tinha medo de que ela o engolisse de novo, o devorasse.

A luz estava viva, feito um animal, procurando por ele desde que ele escapou.

Sonha com trovões e acorda, abraça o escuro, mas nem sempre é suficiente.
Às vezes, faz xixi na cama.
Pensa em voltar a dormir com a mãe, mas não quer preocupá-la.
Não quer que ninguém saiba.
Tem medo.
Tem vergonha de ter medo.

Então acende a luz do celular.
E espera o sol nascer.

--

- Mr. Sandman?
- Sim.
- Sera que... Bem, só hoje, poderíamos dar um sonho bom a ele?
Ele me olha das sombras, enigmático.
Estremeço, me arrependo.

- Sim.

Suspiro, aliviada.
fada-madrinha.
Ele se afasta e eu jogo areia nos olhos de um bebê, jovem demais pra entender que seus sonhos usuais sobre o abraço pesado da mãe cheirando a terra, leite e sangue são sonhos de morte.

Transformo o acidente em um voo: dou asas a ele.
E ele voa sobre os sons de panelas, a voz do pai e da tia, pros braços cheirosos da mãe, fruta, pão, leite quente e doce.
Ele ri.
Da profusão de cores e sons, do gosto, da lembrança. Ele ainda não conhece direito a saudade.

- Vamos.
Fecho a porta atrás de mim, como se fosse real.
E talvez seja.

Só essa noite, talvez seja.

Boa noite.
Bons sonhos.

44x14 Burning witches

Imagem: TingTing Huang

"É o cheiro", ele pensa.
O cheiro que não é de fumaça, carne ou combustível. Não. É diferente. Algo nas roupas.

Ele reflete se vale a pena passar a queimá-las nuas só pra saber se o cheiro muda.
Não.
Muito trabalho extra.

Ela grita pouco, essa.
Tantas coisas que ele não sabe.

Quando criança, perguntou ao pai se doía. Morrer queimado.
Era uma criança pequena, mirrada, assustada, que olhava de longe as mulheres queimarem, escandalosas.
"Só dói se você for uma bruxa", o pai dissera.

O pai.
O pai havia lhe ensinado tudo o que sabia.
Nunca queimar em lugares fechados. Porque ele podia se machucar. Porque as bruxas morriam intoxicadas pela fumaça. "Tem que ser fogo", ele dizia, "só o fogo salva".
Queimar tudo.
Sempre levar combustível extra.

Havia queimado 3 bruxas essa semana.
Estava exausto. Toda a procura, o encontro, a caçada, mulheres pesadas demais cheias de pecados. Era um trabalho estressante.

Abriu uma lata de coca cola e a finalizou em poucos goles. Guardou todo o lixo em um saco, entrou no carro, ligou o rádio, Jeff Buckley cantando, e dirigiu pra longe.
Com cuidado, com calma.
"Devagar também se chega", a voz da mãe.

Tinha queimado a mãe pela primeira vez aos 11 anos, logo após a morte do pai.
Ela gritava,
e o cheiro.
Mas a mãe não queimava nunca.
Ele acendia a chama de dia e, à noite, estourava as bolhas dos braços e puxava os tecidos grudados em sua pele. Mas o cheiro.

Ela gritava durante o dia e orava durante a noite, oração de bruxa, o rosto em carne viva, inchado, mas ela não morria nunca.
E ele tinha que acender a fogueira.
Tinha que mantê-la queimando.

E ele queimava, queimava.
A mãe e as outras mulheres, outras bruxas, seus filhos, mas a mãe nunca morria.
Falava o tempo todo na cabeça dele, oração de bruxa, cheiro de carne queimada, melada de combustível e canela.
A cada mulher que queimava, a mãe ficava mais vívida, mais ruidosa, o rosto desfigurado no retrovisor, sempre murmurando.

Bruxas.
Em todos os lugares.
Na televisão, na rádio, supermercados, colégios.
Esperando, só esperando pra sussurrar nos seus ouvidos um feitiço,
pra entregar sua alma ao demônio.

Já é noite alta quando ele chega em casa, destranca a porta e entra de mansinho.
Bebe água, come as sobras do almoço.
Lava o rosto, escova os dentes, troca de roupa sem acordar a esposa, que ronca baixinho.
Arruma as coisas para ir trabalhar de manhã e, antes de dormir, observa a filha dormindo tranquila, o peito subindo e descendo, os cabelos grudando na testa suada.

A mãe começa a murmurar novamente e ele fecha a porta.

Vai pro quarto, deita gentilmente ao lado da esposa, e pega num sono rápido, sem sonhos.
O sono dos justos.