Imagem: TingTing Huang
"É o cheiro", ele pensa.
O cheiro que não é de fumaça, carne ou combustível. Não. É diferente. Algo nas roupas.
Ele reflete se vale a pena passar a queimá-las nuas só pra saber se o cheiro muda.
Não.
Muito trabalho extra.
Ela grita pouco, essa.
Tantas coisas que ele não sabe.
Quando criança, perguntou ao pai se doía. Morrer queimado.
Era uma criança pequena, mirrada, assustada, que olhava de longe as mulheres queimarem, escandalosas.
"Só dói se você for uma bruxa", o pai dissera.
O pai.
O pai havia lhe ensinado tudo o que sabia.
Nunca queimar em lugares fechados. Porque ele podia se machucar. Porque as bruxas morriam intoxicadas pela fumaça. "Tem que ser fogo", ele dizia, "só o fogo salva".
Queimar tudo.
Sempre levar combustível extra.
Havia queimado 3 bruxas essa semana.
Estava exausto. Toda a procura, o encontro, a caçada, mulheres pesadas demais cheias de pecados. Era um trabalho estressante.
Abriu uma lata de coca cola e a finalizou em poucos goles. Guardou todo o lixo em um saco, entrou no carro, ligou o rádio, Jeff Buckley cantando, e dirigiu pra longe.
Com cuidado, com calma.
"Devagar também se chega", a voz da mãe.
Tinha queimado a mãe pela primeira vez aos 11 anos, logo após a morte do pai.
Ela gritava,
e o cheiro.
Mas a mãe não queimava nunca.
Ele acendia a chama de dia e, à noite, estourava as bolhas dos braços e puxava os tecidos grudados em sua pele. Mas o cheiro.
Ela gritava durante o dia e orava durante a noite, oração de bruxa, o rosto em carne viva, inchado, mas ela não morria nunca.
E ele tinha que acender a fogueira.
Tinha que mantê-la queimando.
E ele queimava, queimava.
A mãe e as outras mulheres, outras bruxas, seus filhos, mas a mãe nunca morria.
Falava o tempo todo na cabeça dele, oração de bruxa, cheiro de carne queimada, melada de combustível e canela.
A cada mulher que queimava, a mãe ficava mais vívida, mais ruidosa, o rosto desfigurado no retrovisor, sempre murmurando.
Bruxas.
Em todos os lugares.
Na televisão, na rádio, supermercados, colégios.
Esperando, só esperando pra sussurrar nos seus ouvidos um feitiço,
pra entregar sua alma ao demônio.
Já é noite alta quando ele chega em casa, destranca a porta e entra de mansinho.
Bebe água, come as sobras do almoço.
Lava o rosto, escova os dentes, troca de roupa sem acordar a esposa, que ronca baixinho.
Arruma as coisas para ir trabalhar de manhã e, antes de dormir, observa a filha dormindo tranquila, o peito subindo e descendo, os cabelos grudando na testa suada.
A mãe começa a murmurar novamente e ele fecha a porta.
Vai pro quarto, deita gentilmente ao lado da esposa, e pega num sono rápido, sem sonhos.
O sono dos justos.
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