44x15 Sleepless in Brasília

Imagem: TingTing Huang

Não acorda.
Não dormiu.
O cheiro de fogo nas narinas morde os sonhos e os afasta.

Mr Sandman, uma figura sombria, alta e esguia, uma sombra de perpétuo espalha areia sobre seus olhos abertos e ele luta contra o calor do metal e dos asfalto.

O ruído da pele, queimando, sutil, crepitações baixinhas e os gritos das crianças nas ruas, a pena dos homens, a repulsa das mulheres.
Não, ele não pode voltar.

Uma sacerdotisa traz um espelho e ele não quer olhar, então fecha os olhos com força, uma força tão grande que parece que sua cabeça vai explodir.

Mas é um sonho. Tão real, tão terrível como só um sonho pode ser.

Abre os olhos e lá está ele, antes do acidente. Ele.
Ele se reconhece, pisca, toca a pele lisa, seus cílios, nariz, boca.

"Por favor, deixe-me morrer aqui, deixe-me morrer aqui", ele implora à sacerdotisa silenciosa com o rosto coberto por uma máscara de metal e cinzas.
Por favor, por favor.
Mas ela não responde, apenas segura o espelho, estática, e ele sente o sonho descolando feito um curativo velho, o rosto retraindo, secando.

Acorda chorando, encolhido, o olho úmido, sem pálpebra, sol alto, mais um dia.

"Não vou dormir nunca mais".

--

Ele sonha com trovões.
Um espasmo súbito, único, passando por todo o corpo de uma vez só, sem ser de uma vez só, o tempo passando e parando, a luz branca, cegando-o, e o som de explosão, da pele, músculos e ossos paralisados, assustados.
E, depois, a escuridão.

Ele preferia a escuridão.

Tinha medo da luz, mas ela estava em todos os lugares.
Como nunca tinha reparado?
Dizia a todos que era um problema da visão, uma sequela. Mas era medo.
Tinha medo de que ela o engolisse de novo, o devorasse.

A luz estava viva, feito um animal, procurando por ele desde que ele escapou.

Sonha com trovões e acorda, abraça o escuro, mas nem sempre é suficiente.
Às vezes, faz xixi na cama.
Pensa em voltar a dormir com a mãe, mas não quer preocupá-la.
Não quer que ninguém saiba.
Tem medo.
Tem vergonha de ter medo.

Então acende a luz do celular.
E espera o sol nascer.

--

- Mr. Sandman?
- Sim.
- Sera que... Bem, só hoje, poderíamos dar um sonho bom a ele?
Ele me olha das sombras, enigmático.
Estremeço, me arrependo.

- Sim.

Suspiro, aliviada.
fada-madrinha.
Ele se afasta e eu jogo areia nos olhos de um bebê, jovem demais pra entender que seus sonhos usuais sobre o abraço pesado da mãe cheirando a terra, leite e sangue são sonhos de morte.

Transformo o acidente em um voo: dou asas a ele.
E ele voa sobre os sons de panelas, a voz do pai e da tia, pros braços cheirosos da mãe, fruta, pão, leite quente e doce.
Ele ri.
Da profusão de cores e sons, do gosto, da lembrança. Ele ainda não conhece direito a saudade.

- Vamos.
Fecho a porta atrás de mim, como se fosse real.
E talvez seja.

Só essa noite, talvez seja.

Boa noite.
Bons sonhos.

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