46x12 Through the silence of our camp at night

 

Imagem: TingTing Huang

Tô contando os carros, um por um. 

Se passa um carro agora, lá em cima, então você me ama. 

Passa um carro, zunindo, no último cruzamento, veloz. 

Há que se pensar e há que se decidir. 

Talvez, nem tenha sido um carro, sabemos que as minhas vistas não andam lá essas coisas... Podia muito bem ser o caminhão do lixo, potente e simbólico, levando embora o sentimento fugaz induzido por tortillas. 

Talvez o caminhão seja o próprio tempo, o mundo, eu e você. 

Tô assim agora, perdão. Metida a interpretação de sonhos, fatos históricos, carros. 

Tô interpretando tudo, menos você, menos eu. 

Analisando incessantemente a inflexão da sua voz, aquela coisa que você fez ao rir, a inclinação da sua caligrafia, a pausa, idas e vindas e letras na tela. 

Parece que, um dia desses, não faz muito tempo, estava apaixonada por você. 
Era e tinha que ser você. 

Quando eu bebia água, ou chá, ou esse restinho de cor quando o sol se põe ou essa casa imensa e escura no canto do universo, na qual eu resido agora, calmaria, delírio cristalizado, respiro, incerta, como quem adquire um certo insight. 

Você me ama? 

Eu não sei. E preciso que você diga, que você grite. 

Porque eu não posso adivinhar, eu não posso apelar para carros e estrelas, horóscopo e tarô. 

Eu não quero. 

Eu quero ouvir você dizer, em alto e bom som. 

Eu quero te ouvir daqui, do terceiro andar, com a casa fechada, quero que ecoe pela rua azul. 

Eu amo você? 

Às vezes, eu questiono. Tento até duvidar,
mas sim. 

Sim, eu amo. 

Um observador incauto me pergunta se você sabe, com certeza. 

Respondo que não. 

Será que você também quer ouvir daí? 

Em alto e bom som? 

Talvez eu grite. 

Ou, mais provável, talvez eu fique em silêncio até a manhã chegar. 

46x11 To kill a mockingbird

 

Imagem: TingTing Huang

Silêncio, mas não do tipo bom. 

Silêncio demais, dentro do quarto, na sala no jardim enorme, interno. 

Por um instante, ela se perguntou se estava mesmo viva. 

Palpou o pulso no pescoço magro, batendo no dedo, tum tá. 

Tinha sangue nas veias, a pressão adequada, um músculo pulsante, eletrizado, sinapses piscando sem ruído algum em meio à tarde quente de janeiro. 

Dentro dela, um turbilhão de células, neurotransmissores, segundos-mensageiros, um liga-desliga insistente, até irritante. 

Tinha vida ali. 

No entanto, todavia -

Sentiu dor. Uma fisgada no céu da boca. Dor. Outrora lancinante, intensa. Agora, só dor. 

Correu a pegar o comprimido e colocou sobre a língua úmida, foi chupando como se fosse bala, sentindo o gosto amargo até o fim. Nem tinha ainda acabado de derreter e já se sentia melhor. 

No que era mesmo que estivera pensando? 
Ah, sim. 

Paro, na frente do espelho e examino meu rosto sem vaidade, digo a mim mesma, vaidade pra quê? 

Pra quem? 

Eu sou mesmo uma mulher partida em pedaços. 42. Um número cabalístico. 42 pedaços, talvez. Eu pauso, pra me ajuntar, mas não tenho como colar o que sobrou. 
Faltam peças, tantos pedaços, o septo e palato, ossos e células boas, bem feitas, receptores bem postos. 

Mãos pálidas, dedos artríticos, a mil anos luz de quem eu realmente fui. 

Uma artista. 

O substantivo me machuca feito um soco que levei entre as costelas, machuca feito traição. 

Artista. 

Eu fui, eu sou. Eu era. 

Agora, estou. Eu não sou nada. 

Silencio a dor com mais um comprimido amargo a derreter. 
Conto comprimidos. 
Um pra dor, 
outro pra outra dor. E mais essa e aquela. 

Manhã, tarde e noite passam feito a memória dos sussurros de velhos amantes, gélidas e cinzentas, fugazes, nubladas. 

E mais um dia e outro. 

Ouço um pássaro cantar. Longe, bem longe. 
Dentro de mim. 

Há muito tempo que não o ouvia. 

Fecho os olhos e aprecio a melodia. 
Talvez, seja a última vez. 

Espero que seja a última vez. 

46x10 Estrabismo e outras tempestades

 

Imagem: TingTing Huang

Vou te contar um segredo, um que eu nem mesmo sei. 

(Tapo um pouco os olhos com as costas da mão. A luz no seu ombro incomoda meus olhos, sabe? Meus óculos não tem lentes antirreflexo)

O que eu tô tentando dizer é bem simples, na verdade. Mas, ao mesmo tempo, é complicado. 

Tem a ver, como tudo na vida, com a minha mãe. Não, na verdade, talvez com o meu pai. 

Quero dizer, tem o bigode, as laranjas e um cheiro peculiar de toalha molhada, critérios de um DSM que ainda nem sequer foi escrito, critérios nos quais você não se encaixa. 

Ele gostava de discursos, de política, de gente. 

E eu gosto de brigadeiro branco, cogumelos e desse devaneio que tenho com a sua boca.

Olha, não me leve a mal, eu estou tentando te contar que 

Eu não me lembro direito, mas sei que tem a ver com a forma como meu coração parece sair pela boca quando você chega, ou com meus atos falhos, ou com minha dificuldade imensa de controlar esse impulso que sinto de te dizer o que me vem à cabeça, a sensação de me afogar no silêncio entre a gente. Tem a ver com a vontade de tocar a sua mão e a sensação rascante de que eu vou morrer se não invadir seu espaço pessoal no meio da noite. 

Sabe, eu não sei do que se trata isso tudo, mas talvez tenha a ver com a sensação de que vou enlouquecer longe de você e perto de você também, ou talvez isso também já seja parte de um quadro psicótico. Não sei, pode até ser. 

Eu quero te falar que tem essa coisa, essa alguma coisa, que eu quero saber o que é, que eu te analiso inteiro e procuro dentro e fora, que eu quero arrancar ou quero, que eu nem sei o que eu quero. 

O que eu quero te explicar é que você faz chover dentro de mim, transborda tudo, destrói o que eu tenho de meu, de seguro, de certo, escorre feito cera de vela acesa pra dentro dos meus sonhos, dos meus dias bons, contamina tudo e eu nem sei mais como tenho conseguido silenciar o animal que ruge seu nome. 

Tô aqui contando carros na varanda e pensando se isso mata, se se morre disso,

vontade. 

Se der pra morrer de vontade, 
meus dias estão contados. 

46x09 The fire that I started in me

 

Imagem: TingTing Huang

"Eu me sinto -- como uma pira funerária acesa na chuva (...) uma fogueira na chuva"

E se eu te disser
Sim
?

É quase madrugada, o que quer que isso queira dizer. Não é tarde demais pra dormir, mas também não é cedo. 
É quase. 

Aqui dentro eu juntei tudo, folhas secas de cadernos e diários com teu nome, e gravetos, mil gravetos como em um livro que li uma vez, gravetos com teu nome gravado, carvão, ervas perfumadas, tecidos, combustível que roubei do tanque do seu carro, do meu carro. Tanta coisa pequena, inflamável, uma pilha enorme de desenhos, livros, lembretes, letras, letras, letras e mensagens confusas. 

Pra acender uma fogueira enorme, gigantesca. 

Veio a chuva de verão, dessas chuvas fugazes, intensas, que molham os amantes em filmes, que deixam o vestido branco e florido da mocinha quase transparente, grudado no corpo prestes a ser beijado e acariciado, molhou tudo. 

Mas eu esperei, pacientemente, até secar. 

E agora, é hora de acender. Acender e queimar. Hoje, não esqueci o isqueiro. Nem álcool. Tudo certo, tudo pronto, tudo limpo. Chego perto, e é hora de acender a pira e queimar --

Queimar o quê? 

Eu tô pronta. Tenho o fogo que falta, a centelha, eu tô pronta pra queimar. Mas eu não sei mais o que queimar. Eu não sei se essa é a grande pira funerária do nós que é, do nós que nunca foi. Se é uma fogueira pra fazer sinais de fumaça e te fazer entender como eu me sinto. 

Eu não sei o que eu quero tanto queimar, eu só sei que eu quero acender, eu quero ver o fogo, eu quero sentir calor. 
Eu tô cansada de sentir frio. 

Mas eu também sinto medo de desperdiçar tudo isso, todo esse tempo, só pra ver, por uns segundos, as chamas coloridas transformando tudo em cinza. 

Eu quero acender. Eu quero queimar. 

Mas é cedo, ainda. 
Eu preciso de tempo. 

Preciso de mais tempo. 

46x08 Pharaoh, risen

 

Imagem: TingTing Huang

Acordo com seus gritos. 

Na verdade, nem sei se dormi. Às vezes, sinto que não durmo nunca, que estou sempre alerta, vigiando, olhos abertos ou fechados, corpo e mente, todo o meu espírito e a água do Nilo que corre no meu corpo, ao contrário. Sempre em guarda, à espera. 

Abro as portas e adentro os aposentos escuros do grande Sol. 

Passa pela minha mente o seguinte pensamento "A noite é mais poderosa do que o Sol". Mesmo agora, desperto, ele está no escuro, indefeso. 

A chama da vela que carrego tremula, e eu temo que se apague. 
Às vezes, confesso, tenho medo dele. Dos seus sonhos, dos seus gritos. 

Todos tem medo dele. 
Exceto a rainha, sua mãe. Ela não tem medo de nada. 

Silêncio no quarto. Cheia de medo, me aproximo da cama enorme e dourada. 
Ali, em meio às cobertas, a chama da vela ilumina o rosto assustado de um menino. 

Eu sempre me esqueço e me assusto ao vê-lo. 
Um rei, um deus, um homem: um menino. 

Ele não fala nada, não me conta mais os detalhes. Há muito, ele já não fala mais dos sonhos, do dilúvio, Ísis, um homem elefante, um homem crucificado e a mulher com muitos braços. Mil vidas, mil mortes e uma noite de mil dias. Um dia, ele me contou, em segredo, como eu iria morrer. 

Ele se arrependera, pouco depois, mas era tarde demais. Agora, eu já sofria da mesma doença de meu pai, eu já tentava desesperadamente escapar da morte e definhava a cada dia, por senti-la próxima. 

Sem dizer uma palavra, eu encostei meu rosto no rosto dele, testa contra testa, olhos fechados, murmurei uma prece para espantar os sonhos ruins. Uma prece antiga, com a qual eu também sonhei um dia, capaz de varrer pra longe a tríade de deuses que sopram nos ouvidos, a certeza solitária de que o mundo em que vivemos fica na junção entre todos os tempos, no ponto central de todos os universos que são, que foram, que serão. 

E eu cuspo palavras mágicas, capazes de antagonizar dopamina, até você tremer, boca e mãos, até seu corpo todo travar, até que você durma. 

Um sono profundo, sem sonhos, sem mágica.
Sem medos. 

Até o efeito passar. 

46x07 'Til forever falls apart

 

Imagem: TingTing Huang

Eu amo você, e eu não quero dormir essa noite. Quero uma noite, só essa noite. Uma noite longa, que dure muitos e muitos dias, quero te ler uma história tão longa que você a ouça por um período equivalente a 1001 noites. 

Vamos não dormir, hoje não. Essa noite não. 

Vamos ler um pro outro, e ver todas as séries abandonadas pela metade. 

Vamos, essa noite, contar todos os segredos e resolver todos os dilemas morais, vamos explorar nossos inconscientes, vamos fazer todos os planos virarem realidade. 

Vem, mas tem que ser agora, tem que ser essa noite, vamos fugir. Vamos pra bem longe, comer doce, andar de mãos dadas, vamos fazer um filho, vê-lo nascer e crescer essa noite, vamos envelhecer juntos. 

Vamos ser padrinho e madrinha das crianças nascidas em todo o estado, ler todas as histórias e ver todos os filmes de amor. 

Vamos não dormir, 
vamos nos amar com pressa, com intensidade, como se essa fosse a última noite,

porque talvez seja.