Imagem: TingTing Huang
- Seja uma boa menina,
disse a Fada Azul dos meus sonhos,
seja uma boa menina e você será uma menina de verdade.
E eu fui.
Eu juro que fui.
Eu nunca cortei os pulsos, refreando toda a vontade e jamais comprando as coisas certas. Eu não queria fazer sujeira demais. Alguém sempre precisa limpar.
Eu acordei cedo. E fui à escola.
Eu assisti às aulas.
E nunca precisaram chamar minha mãe. Porque ela não podia ir.
Eu nunca pedi nada grandioso ao meu pai. Porque ele não podia dar.
E eu nunca fiquei zangada por isso. Porque não era um direito meu.
Eu podia ter pego a chave. Eu podia ter tomado as pílulas, sem aviso prévio, sem atos grandiosos. Mas eu preferi esperar. Porque me disseram que algo melhor estava por vir. E eu escolhi acreditar nisso.
Eu nunca beijei uma garota. Porque eu não queria complicar as coisas, as pessoas não iriam gostar.
Eu estudei. Eu estudo. Não vejo objetivo algum, nenhum ponto. Mas faz as pessoas felizes. E fazê-las felizes me faz, bem, me deixa em paz.
Eu fui pra casa. Mesmo quando eu só queria ficar só e me encolher em uma bola de cobertas no chão da sala, envolvida pelo silêncio sepulcral dos fins de semana em Brasília. Porque ela precisa acreditar que eu ainda faço parte disso.
Eu disse as coisas certas às pessoas certas.
Eu fingi que gostei.
Eu disse a verdade, ou que era mais próximo disso.
Eu até me apaixonei e estraguei tudo, seguindo o padrão genético-cinematográfico esperado. Porque era adequado.
Eu nunca fiquei com garotos em carros até a idade adulta, como minha mãe mandou.
Nem tomei porres homéricos.
Eu fiz amigos. E eu não fui a melhor das amigas, mas não fui a pior. Porque as pessoas precisam de bons amigos. Porque as pessoas não podem me dar o que eu preciso.
Eu disse a ele que o amava. Eu acreditei nisso. Porque era necessário.
E eu vim aceitando, me sujeitando, e agindo feito uma heroína num romance de Jane Austen que finge ser Lisbeth Salander, sem saber quem eu sou.
Porque tenho medo do que eu sou.
Eu me sinto sufocar, afogar
por essa realidade
que nem parece de verdade.
E é tudo o que sinto.
E eu espero que seja suficiente,
porque eu não me sinto mais nada.
- Seja um boa menina, ela disse.
Eu tô tentando.
Fazer as coisas certas,
tomar as decisões certas.
Cuidar das pessoas certas.
Mas eu tô cansada.
De ser filha,
de ser amiga,
irmã.
mãe de mentira,
de estudar,
de tentar ser alguém na vida,
de tentar não deixar de ser quem eu sou,
de gostar,
e de não gostar mais.
Tô cansada das vozes na minha cabeça
e do silêncio das vozes que quero ouvir.
De fazer as coisas sem guia,
e de fazer as coisas que todo mundo me diz pra fazer.
Eu quero, Fada Azul, ser uma garota de verdade.
Mas eu juro que, em dias como esses,
sinto vontade de arrancar minha pele toda, pedaço por pedaço, arrancar tudo,
rasgar com os dentes e as unhas,
e mostrar pra todo mundo - talvez até pra mim
quem realmente sou.
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