Imagem: TingTing Huang
- Tô com medo.
Em algum lugar, alguém assobiava Nancy Sinatra, e eu respirava rápido, hiperventilava.
Eu estava com tanto medo, tanto medo que queria sair correndo e me encolher debaixo das cobertas.
Mas ele olhou pra mim e disse, no tom mais neutro,
- Você consegue fazer isso.
E eu sabia que não conseguia.
Eu tinha certeza absoluta de que era tudo um grande engano.
Quero dizer,
meu pai foi embora.
eu fui criada pra ser robô, pra obedecer, não pra fazer coisas grandiosas,
pra estudar e agir feito gente,
pra ler histórias e nunca sair delas,
pra ficar louca, mas nunca ficar fraca,
pra desistir.
Eu fui criada pra abaixar a cabeça.
Meu corpo inteiro tremia, eu era magra feito um espeto,
joelhos e o rosto redondo,
senti vontade de vomitar e arregalei meus olhos o quanto pude, cheia de choro contido.
Eu queria ir pra casa.
Eu era uma criança, eu não estava pronta,
eu nunca estaria pronta,
eu só queria pedir desculpas, dizer que tinha sido um engano,
eu não queria mais, eu estava enganada, eu queria minha casa, perdão.
Lá fora, as pessoas esperavam, silenciosas, enquanto eu me preparava.
Nua e trêmula, as costas machucadas, os pés e os joelhos ralados e sujos de lama.
- Tô com medo.
E eu soube que iria passar a vida toda sentindo aquele mesmo medo, aquele mesmo desejo de deixar pra lá, de deixar pra depois, que nunca iria embora, como se estivesse impregnado em mim.
Ele apertou os olhos, como quem vê algo muito esquisito, e me disse exatamente o que eu precisava ouvir
- Eu vou te dizer uma coisa. O que você vai fazer agora, eu não sou capaz de fazer. Mas você é. Você se sente pequena, insignificante. E vai se sentir assim pra sempre. Não tem muito que eu possa fazer. Eu não posso te curar de quem você é. Mas, você vê, eu acredito em você. Eu acredito que você vai até lá e vai fazer o que tem que ser feito. Então, Bells, você pode até não ter fé suficiente em si mesma pra sair daqui e mostrar pra todo mundo de que é feita. Mas eu tenho. Você pode usar a minha hoje. E toda vez que você não tiver fé suficiente em si mesma, alguém vai ter por você. Pegue emprestada.
Ele colocou a mão no topo da minha cabeça de menina, como se me abençoasse, como se estivesse fazendo algo mágico.
E eu sabia, ainda, que não conseguiria, por nada no mundo.
As pessoas lá fora se agitavam, impacientes, e eu conseguia ouvir meu coração batendo forte demais, rápido demais.
E quis dizer que ainda tinha medo, muito medo.
Mas eu não queria decepcioná-lo.
Não queria admitir que, talvez, sua fé em mim não significasse nada.
Então saí pra noite mais clara da minha vida.
E me tornei imortal.
Voltei mais tarde, suja de sangue e suor, o nariz cheio de sangue coagulado,
tanta terra nos olhos,
o cabelo sujo, pingando,
as costas mais raladas que nunca
e ele me abraçou.
- Eu sabia que você conseguiria
Mas eu não podia. Eu não conseguia,
eu não tinha sido feita pr'aquilo,
eu tinha medo
muito medo.
Eu fui feita pra desistir.
Mesmo enquanto gritavam meu nome,
e quando dei meu primeiro beijo suja de sangue
eu tive medo,
e vomitei até as tripas no banheiro que ficava no fim do corredor,
enquanto o grande amor da minha vida assistia, em silêncio.
- Eu sei que você está com medo. E o medo nunca vai embora. A sensação de estar fazendo a coisa errada, nunca vai embora. O peso de cada decisão sempre fica.
- Então, como você faz? Como é que você vive?
- Bom, Bells,
eu vivo. Enfrento um dia de cada vez, um erro de cada vez, um medo de cada vez. O medo de sair, de acordar, de sangrar e de gostar de alguém. Um de cada vez, aos pouquinhos. Com o tempo, acredite, de tanto enfrentar os mesmos medos, eles vão ficando mais fáceis de encarar. Eu prometo.
Ele estendeu a mão, pra me ajudar a levantar do chão do banheiro, pra me ajudar a enfrentar meus medos, pra me ajudar a tomar decisões
E eu tive medo, muito medo
mas peguei.
Então hoje, anos depois, já crescida, com muito mais gordura corporal, um rosto menos redondinho e cabelos mais enrolados,
eu tô com medo,
sem tua mão pra me levantar do chão do banheiro,
tô com medo,
sem ele pra me emprestar fé,
tô com medo, sem multidão à espera pra me ver sangrar
mas enfrento um dia de cada vez,
um erro de cada vez,
um medo de cada vez.
De sair,
de acordar,
de sangrar,
de ser presidente,
de gostar de alguém,
de não gostar mais de alguém,
Aos pouquinhos.
Eles vão ficar menores, certo?
Porque eu acredito que sim,
até hoje.
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