41x14 Pantera

Imagem: TingTing Huang

Abro os olhos, e a luz invade o corpo todo, acorda as células e a boca seca. Umedeço a língua, sinto o gosto das bactérias da manhã.

Tento olhar pela janela, o pescoço duro.

Frio.
O corpo todo arrepia, contorcido. Enrijeço os dedos com raiva, pisco os olhos secos.

Penso.

A mulher no leito da frente pisca, senta, fala uma fala embolada. Me irrita. Enrijeço os punhos.

Desvio o olhar para o teto branco e olho fixo até os olhos lacrimejarem.
Sinto falta da música, o som dos tambores, o choro de minha filha e o seu ato de sugar minha força pelo seio.

Minha cuidadora me toca, mãos geladas, me despe sem pudor.
Sinto meu próprio cheiro, de fezes e urina, e me envergonho, olho para o teto.
Ela passa a toalha pelo meu corpo, me arranha com o tecido áspero.

Engasgo de raiva e o ruído da traqueo me irrita, o falatório no quarto, o esteto gelado do médico, os cumprimentos vazios.

Uma mulher se inclina sobre mim e ela cheira a xampu.
Eu sinto falta de xampu.

Sonho, às vezes, com um banho quente de chuveiro, estender minhas mãos e lavar meus cabelos, o cheiro da limpeza, andar descalça pelos azulejos.
Nos meus sonhos, sinto o cheiro da pele da minha filha, suada, de bebê. A textura, o cheiro do leire, saliva, urina e fezes.

Me acordam, me despem, e me deixam nua no centro da sala, sem a minha permissão.

Eu dancei no topo do mundo sob as estrelas, entre homens que me desejaram e eu escolhi dentre eles o pai de minha filha, e o amei e entreguei a ele o meu corpo, minha alma.
Eu sei segredos obscuros sobre a lua, e a deusa negra que mora nos oceanos. E meu corpo tem o poder de mover as marés.

Eu tento dizer, mas ela não se importa.
E eu choro uma só lágrima salgada que ela deixa escorrer e secar, sem compaixão pelo que fui.
Pelo que eu poderia ter sido.
Pelo que eu ainda sou.

Porque eu sou.

Eu estou aqui.

Eu estou aqui.

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