45x12 Into the rabbit hole

 

Imagem: TingTing Huang

Ela me conta um segredo e eu sinto que tenho um milhão de anos. Ela me conta que está esperando.

Eu envelheci à espera. E eu não posso mais esperar. Eu sei o que eu disse, sei que fizemos uma espécie de pacto antigo, com sangue e ossos, eu me lembro.

Eu me lembro da sua voz rouca sussurrando um feitiço, eu me lembro da tinta preta da caneta no papel que assinamos, eu me lembro do ruído que seus cabelos fizeram enquanto cresciam, cheios de promessas. 

Eu me lembro do pavor dos seus dedos. Cada cláusula, cada desejo, cada noite insone, cada sonho. Eu me lembro do seu cheiro de dia nublado. Eu me lembro do chão. Eu me lembro daquela noite. E das outras. Do tapete, da manhã. 

Eu me lembro, mas eu também não me lembro, quando foi isso? Quando foi que eu percebi que eu não podia mais? Quando foi que eu comecei a dizer pra mim mesma que você me destruiria, quando a verdade é: eu destruiria você. 

A verdade é, e eu só vou dizer isso mais essa vez, embora não seja mentira, e embora eu possa dizer em voz alta, mas - eu amo você. Tanto, mas tanto, que me machuca. Machuca minhas convicções, machuca quem eu também amo. Eu te amo tanto que me assusta, que te assusta, eu sei. Você não sabe como isso funciona, sabe? 

Eu te amo tanto que mataria nós dois. Você, de medo, de pavor. E eu, de solidão. 

Eu te amo tanto que criei na minha mente essa bolha, essa realidade alternativa em que isso poderia, talvez, funcionar. Eu te amo tanto que sei que não vai. 

Eu te amo tanto que vou te deixar nunca sentir isso, essa intensidade, esse terremoto, tempestade, eu nunca vou te deixar molhar os pés em mim, se afogar no oceano do que eu tô sentindo agora. 

Eu te amo tanto que vou te deixar dançar sozinho, ou acompanhado, e não vou interferir. Eu te amo tanto que vou brindar à sua felicidade. Eu te amo tanto e eu estou tão apavorada, paralisada de medo, de nunca sentir o gosto da sua boca e o seu coração batendo perto do meu peito, com tanto medo como se minha vida dependesse disso pra continuar. Mesmo assim, eu brindarei e desejarei felicidade, de verdade. 

Eu te amo tanto que estou te deixando ir - o que não quer dizer que vou deixar de te amar.
Eu te amo tanto que vou te deixar sozinho, na sua própria escuridão, pra achar seu próprio caminho. 

E mesmo que meus ossos estremeçam, mesmo que meu sangue cante seu nome e mesmo que eu encontre seu rosto em um estranho na floresta, mesmo assim, 
apesar das juras, e do pacto, e das profecias tecidas em tapeçarias e mesmo se seus pés sangrassem de tanto andar pelas encruzilhadas do submundo até o meu templo, e mesmo que você seguisse o fio de lã vermelho até o centro do labirinto, mesmo que você voasse sob o oceano, mesmo se você enfrentasse novamente os ciclopes, feiticeiras, tempestades, donzelas amaldiçoadas e pretendentes, nem mesmo assim

Não.
Nem mesmo assim.

Eu te amo tanto, que acabou. 

45x11 Terrible love

 

Imagem: TingTing Huang

Ele vem, devagar, flutua na minha direção.

Palavras correm pela minha mente. Pensamento acelerado, tão rápido, tão rápido, 

Palavras como
penumbra, cheiro, afago, cafuné, a textura do fecho, o cheiro do seu cabelo, do seu suor

É preciso mais do que

Do que é preciso mesmo? 

Você respira e eu sinto seu hálito, sua respiração, suas moléculas, eletricidade pura, estática, o choque das sinapses, meus pelos arrepiando, o conhecido repuxar no baixo ventre, excitação pura, 

E, ainda assim, nada. 
Uma corrente de ar gelado separando a sua boca da minha. 

Ah, sim. 
Um oceano no meio do caminho.

De medo, de culpa, de desejo:

de oportunidades perdidas. 

45x10 That feeling

 

Imagem: TingTing Huang

Eu não sei mais me expressar feito uma menina tocando piano no escuro da própria dor, eu não sei dizer o que tô sentindo. 

Uma velha, a mais velha do mundo, grasna, irritada e infeliz. 
É um mal estar. 

Mas não é. 

É uma sensação, um sentimento que não melhora, nem mesmo com a venlafaxina. 

É uma coisa aqui dentro, nem fome, nem sono, nem dor de viver. 
Ou talvez seja. 
Talvez seja eu, finalmente entendendo e querendo viver tudo isso. 

Tem uma coisa acontecendo comigo, uma coisa em mim, uma saudade que não sei nomear, intensa, profunda, marcante, que morde, belisca e pinica. 
Tá na ponta da língua o nome, eu quase posso tocar a palavra

É aquela sensação de que 
Sabe quando...? 

Tem uma coisa batendo, uma inquietude e o silêncio e a sua demora em dizer, e as HQs e o seu cheiro que eu já esqueci, e o medo de que um dia eu já não te tenha mais. 

Uma mistura disso e sono. 

Você sabe o que quero dizer, certo? 

Não? 

Então tá bom.
Amanhã, já esqueci. 

45x09 Estou querendo acabar com tudo

 

Imagem: TingTing Huang

Não. 

Tem uma pequena semente plantada num canto claro e cheio de sol, uma flor de pétalas bem finas, que floresce em climas mais frios, sob o sol gelado de uma cidade cheia de ladeiras. 

Uma frase curta, sem sentido, um sussurro em forma de sinapse

não existe amanhã

Acordo, ofegante. Sonhei, mas não me lembro dos detalhes, tento agarrar os elementos e eles se perdem, escorregam pelas beiradas da realidade imposta. 

Que dia é -
hoje. 

Hoje é hoje. 
E amanhã é hoje. Mês que vem é hoje. Semana que vem é hoje. 

Eu me deixo cair direto no abismo da rotina, na escuridão das horas, 
Que dia é
hoje? 

Hoje é hoje. 
E isso me faz feliz. Só preciso ficar hoje. Hoje é aqui. Amanhã é hoje, e isso me tranquiliza, de um jeito que você não consegue mais. 

Às vezes, eu ainda penso em acabar com tudo, 
mas não hoje. 
Hoje não, amanhã. 
E amanhã não existe, 
só hoje. 
Entende? 

Amanhã é hoje. 
Mas hoje não é amanhã. 
E é aí, meu amor,
que reside a magia dos dias e a razão pela qual eu não posso acabar com tudo, 
mesmo querendo,
hoje. 

Amanhã, quem sabe? 
Veremos. 

45x08 Walking with spiders


 Imagem: TingTing Huang

A memória é uma coisa engraçada, não? 

Uma aranha tece a teia translúcida, impenetrável, lá dentro do meu pavilhão auricular, tece a teia, aumenta um pedaço, tece, tece, por dentro do meu tímpano perfurado pelas lutas constantes, tece através das membranas, fibras finíssimas, quase invisíveis a olho nu, tece depressa as conexões pequenas, tece sobre as memórias, conectando fatos outrora completamente desconectados. 

Tece sensações, sentimentos, tece o gosto do pão doce e da coca-cola sobre a minha língua, o açúcar e as bolhas de gás, tece sob o rosto do meu pai, Ananse, tece sombra sobre a luz bonita da infância, tece a noite no deserto frio e seco, um cemitério de memórias enormes feito elefantes. 

Tece incessantemente, tece sobre os amados joelhos de Otto, tece tanto que eu mal me lembro do quão marrons são seus tênis converse, quão loiros são seus cabelos. 

Mal me lembro dos dentes enormes de Berenice, pois ela tece sobre eles um véu diáfano e poeirento, um véu de noiva, de uma Berenice boa e pura, sem maldade, letras em papéis e o ruído. 

Tece e eu quase posso ouvir suas patinhas de aranha, o roçar dos pelos, o claque claque, eu ouço por cima das memórias de uma adolescente. 
Misturo o zumbido do tráfego, Leslie Odom Jr e a voz de Chris Martin, tece por cima de Kate Nash e da primeira vez em que ouvi a voz de Florence, no cinema. 

Tece, tece, tece, tece por cima dos meus sentimentos mais íntimos, segredos mais obscuros, tece meu rosto no espelho, seu gosto, o gosto da carne, seu cheiro, alguns gestos que eu só recentemente aprendi, tece o sono, sonhos vívidos de amor e de guerra. 

Eu não quero esquecer. 
Eu não estou pronta pra esquecer, digo.

Mas ela não fala a minha língua e continua a tecer, tecer, tecer, tecer, 
insensível,
implacável. 

45x07 Which Witch

 

Imagem: TingTing Huang

Não me lembro do seu nome, da bruxa no quarto, à beira da morte, da bruxa na jaula, esperando a fogueira. 

Não me lembro do seu rosto. 

- Não foi um feitiço, foi um milagre, ela disse. 
Mas eu não vim julgar, eu vim pra aprender. 

Ela me conta sobre as noites, cicatrizes, dedos quebrados e gritos, e ele, o demônio, um homem, e o medo e o terror. 

Conta, delirante, febril, sobre o pavor, a coragem, uma semente, um desejo, um
feitiço. 

- Mas eu não sou bruxa, ela disse, eu não sou bruxa. 

Peço que continue, não temos muito tempo. 

Ela me conta que decidiu que nunca mais sentiria aquilo.
Decidiu? Desejou? 
Naquela noite, ele saiu em meio à chuva torrencial. 
E não voltou pela manhã. 
Foi encontrado em um buraco, tetraplégico. 

- Mas não fui eu. Foi Deus. Ele me ouviu, Ele me ouviu. 
- O que foi que Ele ouviu?, perguntei, o que você disse? 

Ela chorou, só chorou sem parar, sacudindo o corpo inteiro. 
- O que? - eu quase gritei

Podia ouvir o barulho dos passos no corredor, próximos. 
Ela moveu os lábios, sem que saísse som. 
- O que? Fale mais alto. O que você disse, naquela noite, o que você desejou? 

Aproximei meu rosto do seu, queria ouvir, precisava ouvir, mas, quando cheguei meus ouvidos perto o suficiente dos seus lábios, a porta se abriu, o tempo acabou e eu desapareci no ar, infelizmente, muito mais rápido do que o som do seu murmúrio, como se nunca tivesse existido, um borrão de tinta e pequenos pontos de poeira. 

- Não sou uma bruxa, foi o que ela disse - contei a Lilith, que me esperava, pacientemente, bebericando café. 
- Ela tem razão. Bruxas não existem.

E, como se apenas para contradizê-la, como se viajasse atrás de mim em uma velocidade infinitamente menor,
ouço o feitiço-desejo, baixinho, 
um segredo.

- Sim, você tem razão. 
Bruxas não existem. 

45x06 A wake

 

Imagem: TingTing Huang

Ela estava me contando a história de uma mulher que morreu de solidão. 

Eu não queria saber de dores nas costas potencialmente fatais, de remédios e doses, de psicopatologia, de sintomas depressivos e ansiosos, demência. 

Eu queria brindar. Eu queria histórias de aventuras e de uma mulher que não tinha medo de nada, nem mesmo de morrer só. 

Um dia, será que alguém reunir as pessoas pra contar histórias sobre como eu fui? Sobre minhas roupas, meu cheiro, meu jeito de falar. Um dia em que ela me contou sobre um homem que amava. 
Sobre um delírio romântico, 
um sonho adolescente, 
sobre um homem amado que me visitava nos sonhos.

(Você acha, você deseja com todo o seu coração, que ela o tenha encontrado? Que exista um depois disso tudo, um lugar único e especial onde tudo é possível)

Ela honra suas memórias, de um jeito tão especial e carinhoso, ela me conta, sem julgamento, que você estava à espera. 
E eu, através dela, te faço imortal, sem nome, sem rosto, uma história única e especial. 
Eu te dou amor e eu espero e brindo, ao amor que só existia na sua cabeça. 

Espero que ele, seu cabo, tenha vindo te receber na porta. Eu consigo imaginar a cena, seu rosto se iluminando à visão dele, seu uniforme, seu vestido, a iluminação do dia, eu dirijo a cena, como um filme antigo, tem luz e som,
tem cor, mas uma cor que nem existe por aqui. 

- Eu não lido bem com a morte, ela me diz. 

Mas a verdade é que ela lida melhor do que todos nós:
ela honra a vida. 

Brindamos. Com água, café, desvenlafaxina (até mais! até breve!) e esperamos, secretamente, que alguém, um dia, conte a nossa história assim, 
com afeto,
tristeza e
vontade.  

45x05 Awakenings

 

Imagem: TingTing Huang

Ele estava
cansado. Tinha sido um dia difícil. 

Bebeu água, comeu um pedaço de pão, quis morrer,
uma semente cinzenta brotando na terra fértil da mente, ínfima, absurda, erva-daninha no meio do jardim, ele se surpreendeu e 

regou-a. 

Só daquela vez, só pra ver. 

Sentiu prazer. 
E culpa. 

Pisoteou a ideia, afastou-se, tomou um banho longo e quente, trocou de roupa, quis morrer. 

Escreveu uma carta para a mãe. 
Desculpe. 
A verdade é que sentia muito. 
Demais até. 

Escovou os dentes e deitou-se. Fechou os olhos e imaginou, só por um milésimo de segundo ou talvez por umas 3 horas, como seria mais fácil se estivesse--
Se não estivesse. 
Se não fosse. 

Dormiu. 

E acordou, infelizmente, quero dizer, acordou. 
Sorriu, penteou os cabelos, 
deu risada, 
beijou a boca de uma mulher de cabelos cheirosos, seu pescoço, seus seios,
e quis morrer, mas só um pouco, talvez um pouco menos, era o que esperava. 

voltou pra casa com o gosto dela na boca, 
amou e foi amado, 
bebeu suco de uva, industrializado, de caixinha, 
sentiu vontade de comer pipoca, 
sentiu saudade de quando comia pipoca à tarde, depois da escola, 
e quis, desesperadamente, morrer. 

Nesse dia, sentiu medo. 
considerou contar a alguém, mas
era só uma ideia,
um pensamento intrusivo, lépido, frágil, que some depois de 
que some quando

ia passar logo, 
só um fase, 
altos e baixos, coisa e tal,
cortou as unhas, 
amarrou os cadarços, 
procurou as chaves,
quis morrer,

e achou natural, 
adequado, 
certo,

como 2 e 2 são 4.