Imagem: TingTing Huang
A memória é uma coisa engraçada, não?
Uma aranha tece a teia translúcida, impenetrável, lá dentro do meu pavilhão auricular, tece a teia, aumenta um pedaço, tece, tece, por dentro do meu tímpano perfurado pelas lutas constantes, tece através das membranas, fibras finíssimas, quase invisíveis a olho nu, tece depressa as conexões pequenas, tece sobre as memórias, conectando fatos outrora completamente desconectados.
Tece sensações, sentimentos, tece o gosto do pão doce e da coca-cola sobre a minha língua, o açúcar e as bolhas de gás, tece sob o rosto do meu pai, Ananse, tece sombra sobre a luz bonita da infância, tece a noite no deserto frio e seco, um cemitério de memórias enormes feito elefantes.
Tece incessantemente, tece sobre os amados joelhos de Otto, tece tanto que eu mal me lembro do quão marrons são seus tênis converse, quão loiros são seus cabelos.
Mal me lembro dos dentes enormes de Berenice, pois ela tece sobre eles um véu diáfano e poeirento, um véu de noiva, de uma Berenice boa e pura, sem maldade, letras em papéis e o ruído.
Tece e eu quase posso ouvir suas patinhas de aranha, o roçar dos pelos, o claque claque, eu ouço por cima das memórias de uma adolescente.
Misturo o zumbido do tráfego, Leslie Odom Jr e a voz de Chris Martin, tece por cima de Kate Nash e da primeira vez em que ouvi a voz de Florence, no cinema.
Tece, tece, tece, tece por cima dos meus sentimentos mais íntimos, segredos mais obscuros, tece meu rosto no espelho, seu gosto, o gosto da carne, seu cheiro, alguns gestos que eu só recentemente aprendi, tece o sono, sonhos vívidos de amor e de guerra.
Eu não quero esquecer.
Eu não estou pronta pra esquecer, digo.
Mas ela não fala a minha língua e continua a tecer, tecer, tecer, tecer,
insensível,
implacável.
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