45x18 Trema

 

Imagem: TingTing Huang

Você vê, 
tenho sentido uma coisa estranha. É difícil explicar, um frio na barriga, o peito apertado, a boca seca, intranquilidade e a mão a tremer de leve. 

me distraio e deito, não durmo, eu não durmo nunca, mas parece que nem sequer acordei. 

Que gosto é esse, de sono ou sonho que eu sinto no café matinal. 

E que língua é essa, de mulheres e homens que soa como o sol, como os sinos, sacos e sacolas

A boca seca, mas nem sofro, só sonho alto, 
noite alta, 
mas sem dormir, eu não durmo nunca

Ou durmo? 

Não me lembro, mas também nunca esqueci, na verdade, não me lembro como se esquece. 

Tem algo aqui, na casa ou na minha cabeça, uma coisa bem pequena ou muito grande que me deixa, que me deixa
Não louca, não estou louca. 
Na verdade, nunca estive tão bem, você não vê? 

Eu não durmo e não me canso e não me canso de
eu conheço você de algum lugar
tenho certeza, certeza absoluta de que já te vi antes, 
mas tudo bem, depois eu me lembro

Nossa, que sensação ruim, parece até que
que

Ah. 
Então era isso.
Faz sentido, agora. 
Tudo faz sentido. 

Não faz?

45x17 Kindred (evil) spirits

 

Imagem: TingTing Huang

Era minha. 

Ela veio, trazida ao templo. Eu podia ouvir os gritos, mesmo de longe, do meu quarto. 

Calcei as sandálias e prendi os cabelos. Tentei parecer calma, mas, como sempre, o coração vinha à boca. 
Tenho urgência em ir, medo. Ao mesmo tempo, uma certa calma. 

Há tempos que o sofrimento não me parece urgente, como pareceu outrora. 

Acendo as tochas e faço uma prece a Apolo, secreta e única, pra que ele me guie, me tranquilize. 

Os gritos da família irritam meus ouvidos sensíveis, eu peço silêncio. 

É mais um caso de espírito maligno aprisionado no corpo de mulher, se alimentando dos seus sonhos, da sua força vital. É uma sombra e eu sou a sacerdotisa da luz, a portadora da centelha. Eu trago a cura. 

Trago-a para o centro do círculo, onde ficamos sentadas, uma de frente para a outra. 
Peço à sombra que me conte sua história e ela conta, com calma e zelo, e febre, e sonho, delicadeza, medo, raiva, angústia. Sem lágrimas, sem gritos, a sombra me explica o mundo, e as histórias dos livros, a fantasia das almas, a união dos corpos, e que a morte não é a escuridão. Ela me olha nos olhos e arde, e queima, e eu posso ver
ela dança uma música que só nós duas ouvimos. 

Ela quer sair, mas não quer sumir, não quer desaparecer. 
Quer morrer, mas quer viver. 

Estendo a mão na sua direção e vejo o medo, insisto, e ela agarra. 

Meu coração bate tão forte que parece que vai explodir no peito. Ao invés de alívio e certeza, 
sinto medo e não sei o que isso quer dizer.
Sinto uma angústia brutal, um cansaço. Uma dor. 

E acaba. Ela se levanta, sã,
um milagre. 
A família me agradece e chora, deixa oferendas, beijam minhas mãos. 
E eu atordoada, gelada. 
Ela me olha, e arde e queima, 
e dançamos em silêncio uma música, 
aquela música
que só nós duas ouvimos. 

Não sei o que isso quer dizer, 
não sei. 

45x16 Treshold

 

Imagem: TingTing Huang

Tem algo acontecendo. 
Sinto. 

Ou, eu não sei, sentir é isso? 

É um sentimento ou ideia, a textura de cinza, de pó que não é areia, uma ideia que parece grafite, suja os dedos, sem cheiro, sem gosto. 

Borboleta encasulada, ela me diz. 
E me faz pensar. 
no bater de asas contra o casulo, 

O ruído de asas, de inseto no ouvido, um som, uma sensação que é ideia ou medo (e o medo? não é também uma ideia?)

Respiro fundo, tem algo aqui. 
O gosto de um dia em que eu saí cedo da casa da minha avó,
cotovelos molhados com a água gelada da chuva, 
a cor forte do seu perfume às 6 da manhã. 

Eu sinto ou penso ou sinto o tempo expandir aos poucos. 
Tem um vento sujo movimentando as folhas do jardim. 
Tem algo acontecendo. 

Nesse universo ou em algum outro, dentro ou fora de mim, bom ou mau, ou 
nada. 

Bebo um café quente e minha língua queima um pouco na ponta. 
Do nada, chove. 
Sem relação, ou então, talvez, eu tenha agora poderes mágicos premonitórios. 

Dou risada da ideia, mas o barulho de chuva me dá arrepios. 
Ou o doce do café, 
a lembrança da sensação incômoda na língua, me distraio, e apago da mente a lembrança do limiar cruzado. 

Como se ela nunca tivesse existido. 

45x15 Bad, Beth and Beyond

 

Imagem: TingTing Huang

Amo o seu rosto, sua pele, a pele do meu filho. 
Eu amo o que quer que seja isso. 
Eu amo você. 

Amo seus caninos. E a textura da sua boca. 
Eu amo segurar a sua mão, sem apertar, como se você sempre pudesse fugir, escapar, escorregar.

Eu amo seus dias banais, seus pacientes tristes, eu amo a cor castanha dos seus olhos. 
Eu amo a sua constância. Abrir a porta e ouvir a sua voz. Eu amo a sua companhia. 

Amo as nossas conversas e seu abraço apertado. 
Amo quando você ri e quando fica triste, e quando tá animado e quando tá doente. Tenho medo quando fica chato, quando fica mal, quando tá confuso. 

Te amo 'brabo' e te amo arrependido, criativo e ambicioso. 
Te amo chegando, na saída e no meio. 

Te amo durante a viagem, eu te amo irresponsável e compulsivo, adulto e bebê. Eu te amo no futuro, sem nem te conhecer. 
No almoço, no jantar e, às vezes, no café da manhã. 
Isso é bom, isso é incrível. 

Isso é terrível. 

45x14 Teleborianism

 

Imagem: TingTing Huang

Olho pra mim mesma, de cima pra baixo, de baixo pra cima. 

Eu sou, eu era, a mãe da mulher tornou a mulher um monstro direto dos pesadelos da infância, uma sombra escura sobre o leito, fala lenta, amena, monótona. Fórmulas e fatos e questionamentos mornos. 

Eu me sento como ele se sentava, eu toco como ele me tocava.
Olho como ele me olhava, falo como ele falava, eu bato à porta como ele batia e entro na vida, valsando, e eu finjo que não quero me meter, eu

Atenta aos detalhes da história, eu inclino a cabeça como ele fazia, mesmo sem querer. 
Longas voltas pelo hospital, eu me inclino, mas nem tanto. 

Eu me lembro da raiva, do nojo, do receio e me pergunto se eu também causo isso. 
Alguém se irrita e grita, e eu me pergunto se estou fazendo a coisa certa, se isso é certo e se eu sou o que ele me fez ser. 
O monstro de Frankenstein, sem nome, só partes de remédios, uma colagem de antidepressivos e estabilizadores e antipsicóticos, um pouco disso e daquilo, ciência louca e errática, sem nexo, que apaga pessoas e memórias, anos, organiza pensamentos enquanto destrói poesia e a melancolia e cria uma coisa nova, funcional
perfeitamente funcional
socialmente aceitável

Fico me perguntando se sou, também, uma silenciadora de gritos, uma destruidora de silêncios e experiências individuais, se só eu e não Morfeu é quem tem o poder de adormecer,
se eu tiro o sofrimento ou crio novos. 

Não sei se tenho a resposta. 
Não sei se quero ter. 

45x13 Safe Spaces

 

Imagem: TingTing Huang


Queria conseguir escrever uma crônica, algumas. 

Seguir alguns padrões, andar sobre as linhas, escrever com as letras duras sobre as pautas, sem letras cursivas flutuantes no papel. 

Não consigo. 

Até tento, mas as letras saem voando, correndo, fugindo do papel como fogem da minha cabeça. 
Fogem em busca de um lugar seguro. 

Tolice. 
Não existem lugares seguros. 

Sentamos no banquinho de pedra, sob o sol quente do fim da manhã.
Ele ri. 
Uma risada frouxa, boba, de adolescente. 
Eu gosto. 

Teve um dia ruim, uns dias ruins. 
Fico pensando que as pessoas só chegam pra mim assim, em dias ruins. 
Todo dia é um dia ruim de alguém, pra mim. 

Ele me fala de música, tá animado pra me contar sobre um dia, uma noite, um beijo, uma vontade. Conta sobre prazeres secretos, a escola, um sonho. Quase como se eu,
como se eu fosse um lugar seguro. 
Mas não existe nenhum lugar seguro. 

Mesmo assim, eu deixo. Eu sou o lugar seguro, ou tenho o poder mágico de tornar lugares seguros, umas letras e palavras mágicas de amor e conforto, um colo místico, abro as asas de carne e esquento seus ossinhos arrepiados.
- Tudo bem, criança, vai ficar tudo bem -, minto. 


Eu minto, mas espero que fique. 
Espero que fiquemos.