45x17 Kindred (evil) spirits

 

Imagem: TingTing Huang

Era minha. 

Ela veio, trazida ao templo. Eu podia ouvir os gritos, mesmo de longe, do meu quarto. 

Calcei as sandálias e prendi os cabelos. Tentei parecer calma, mas, como sempre, o coração vinha à boca. 
Tenho urgência em ir, medo. Ao mesmo tempo, uma certa calma. 

Há tempos que o sofrimento não me parece urgente, como pareceu outrora. 

Acendo as tochas e faço uma prece a Apolo, secreta e única, pra que ele me guie, me tranquilize. 

Os gritos da família irritam meus ouvidos sensíveis, eu peço silêncio. 

É mais um caso de espírito maligno aprisionado no corpo de mulher, se alimentando dos seus sonhos, da sua força vital. É uma sombra e eu sou a sacerdotisa da luz, a portadora da centelha. Eu trago a cura. 

Trago-a para o centro do círculo, onde ficamos sentadas, uma de frente para a outra. 
Peço à sombra que me conte sua história e ela conta, com calma e zelo, e febre, e sonho, delicadeza, medo, raiva, angústia. Sem lágrimas, sem gritos, a sombra me explica o mundo, e as histórias dos livros, a fantasia das almas, a união dos corpos, e que a morte não é a escuridão. Ela me olha nos olhos e arde, e queima, e eu posso ver
ela dança uma música que só nós duas ouvimos. 

Ela quer sair, mas não quer sumir, não quer desaparecer. 
Quer morrer, mas quer viver. 

Estendo a mão na sua direção e vejo o medo, insisto, e ela agarra. 

Meu coração bate tão forte que parece que vai explodir no peito. Ao invés de alívio e certeza, 
sinto medo e não sei o que isso quer dizer.
Sinto uma angústia brutal, um cansaço. Uma dor. 

E acaba. Ela se levanta, sã,
um milagre. 
A família me agradece e chora, deixa oferendas, beijam minhas mãos. 
E eu atordoada, gelada. 
Ela me olha, e arde e queima, 
e dançamos em silêncio uma música, 
aquela música
que só nós duas ouvimos. 

Não sei o que isso quer dizer, 
não sei. 

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