Imagem: TingTing Huang
Eu tinha 6 anos, talvez mais.
Minha mãe era uma montanha cheia de significados que eu não conseguia, ainda, compreender. Que eu ainda não compreendo.
Me acordou no meio da noite, 9 de julho, e eu chorei. Daquele jeito que a gente chora quando sabe que a vida toda vai mudar. De quem sabe, secretamente, que alguma coisa tem que morrer quando alguém nasce.
Trouxeram pra casa, apesar dos meus apelos.
Pequena, cheirando a mil coisas secretas e um pouco mágicas, cor de leite achocolatado, um chumaço de cabelos e uma quantidade gigantesca de baba, os olhos mais escuros do que o próprio escuro.
Me apaixonei.
Não à primeira vista.
Talvez à décima. Vigésima. Centésima.
E aceitei dividir meu quarto cor de rosa, minha vida nem tão cor de rosa assim, pela primeira vez.
E eu pensei, pela primeira vez, que talvez a vida não tivesse que ser um caminho solitário.
Ele foi embora.
E nós também, pra direção oposta.
Você sem entender nada, eu chorando de medo do mundo dos adultos, tão cheio de mentiras e medos.
Casa nova, um desfile de babás novas, cara novo.
Sua passividade me irritava.
Queria alguém que se rebelasse, que gritasse e batesse, trouxesse o papai de volta.
Queria companhia na minha solidão,
e você fazia o melhor que podia, mas não entendia nada.
E nem podia.
O mundo ia de mal a pior, dormíamos juntas e eu te dava beliscões, e rezava antes de dormir,
pra que o mal fosse embora,
pra que a gente escapasse ilesa,
e a manhã chegasse com tudo no mesmo lugar.
Por que é que a gente parou de dormir juntas?
Fui eu?
Minhas reclamações, minha vontade adolescente de chutar o balde, ir embora pra bem longe da mamãe, ir pra bem longe de tudo foram atendidas.
Fui embora,
e você ficou.
Antes de dormir,
me dava um medo enorme, gigantesco,
e uma culpa,
por ter te deixado pra trás.
E eu nunca te pedi desculpas.
Eu nunca soube o que você teve que aguentar quando eu fui embora.
Mas eu juro que, a cada vez que te via, eu só queria te levar embora também,
pra longe de tudo,
só nós duas contra o mundo inteiro.
Mas esse dia nunca chegou.
Eu cresci.
Você cresceu.
E eu continuei te tapando os ouvidos, nos fins de semana.
E desejando que as coisas fossem diferentes.
Eu fui embora.
Você foi embora.
E a gente não se conhecia mais tão bem.
Você estava crescendo.
E sofrendo as mesmas coisas que eu.
Mas você não era eu.
E eu percebi isso muito tarde.
Você veio embora.
Morar comigo.
Finalmente.
Nós duas contra o mundo, certo?
Não.
Já não éramos duas. Éramos três.
E tudo estava diferente.
A gente já não falava mais a mesma língua, seu silêncio me machucava,
suas palavras me ofendiam
E Deus sabe o que as minhas faziam contigo.
Eu queria te conhecer.
Ou te reconhecer.
Ou encontrar em você a bolinha cor de achocolatado que minha mãe trouxe pra casa.
Mas eu sou filha do meu pai.
Nosso pai.
E meu sangue cala.
Cala até ferver.
Eu não falo nada, eu observo, eu deixo pra lá.
E fui deixando o diálogo pra depois, pra amanhã,
confiando que éramos nós duas contra o mundo.
Aí você chegou
e me contou sobre o piercing.
Mas você mentiu
PRA MIM?
Não éramos nós duas contra o mundo?
Always and forever?
Eu olhei nos teus olhos.
E percebi, Lola,
que eu tinha passado uma vida dormindo.
A tua vida.
A vida que você tinha criado,
você contra o mundo.
Passada a raiva, a mágoa, a desconfiança,
tentei te conhecer.
- Olá
Bati na tua porta e você até abriu.
Me deixava olhar por entre a fresta do portão, de vez em quando até visitar a sala de estar da tua vida.
E eu fui te conhecendo e te admirando, e me admirando,
e percebendo
que você nem era mais menina
que já tinha vivido mil eras de sabedoria,
mas ainda era jovem demais.
As ideias
ó, as ideias.
Um dia, acordava mística,
no outro, religiosa,
feminista
cheia de opiniões políticas,
fãzoca de celebridades,
pegadora,
triste,
irritadiça,
animada,
na dúvida sobre o caminho a seguir.
E eu ouvi.
Documentei.
Apoiei.
Discuti.
E deixei.
Eu deixei demais?
Nesse meio, eu briguei de menos?
Eu dormi demais?
Onde, exatamente,
pra onde é que eu tenho que voltar pra que você não acabe como eu?
Você me pede pra almoçar na casa de uma amiga,
e eu levo.
É um bom dia.
Tem que ser um bom dia.
Te deixo na porta,
e espero que você se divirta.
Só isso.
Durmo.
Meu celular toca, seu número no visor, mas não é tua voz que fala comigo.
É uma voz completamente desconhecida,
e eu não tô entendendo nada.
Ele tá falando que você tá desacordada, completamente bêbada a quilômetros daqui.
Mas você não tá, você tá na casa da sua amiga.
Você tá onde eu deixei, não tá?
Você tá dando risada, bebendo refrigerante, e fazendo seus comentários ácidos,
dando aquela sua risada única,
e esquisita.
Você tá bem.
Onde eu deixei,
você tá exatamente onde eu deixei.
Mas aí peço pra falar com você,
e eu sei,
que tô redondamente enganada.
34 minutos.
É o tempo que levo pra chegar lá.
Rezando, rezando, e te xingando, e rezando, e te xingando, e rezando, e te xingando, tanto tanto, e com tanto medo, um medo que eu não sei se já senti na vida, um frio na espinha, uma raiva, um medo, um medo, medo, medo de chegar lá e não ter mais o que fazer.
Meu cérebro diz que é só bebedeira, cura com água e sono,
mas eu tô com medo.
Chego lá, com o coração apertado, toco o interfone,
ele diz que já vai descer com você,
mas parece que ele não desce nunca,
aperto de novo,
e ele demora uma eternidade.
E eu passo essa eternidade me preparando pra te ver
Mas eu queria ter passado mais uma,
porque nada me preparou
pra te ver daquele jeito.
Não é que eu tenha me iludido,
pensado que você nunca iria beber.
Eu bebo.
E gosto.
Mas as consequências, essas mesmas nas quais não penso
Estar sozinha, sem ter uma B. pra quem ligar, uma B. que me busque,
ter que ser amparada por essas pessoas,
em um lugar estranho,
passar vergonha,
e as mil coisas horríveis,
as possibilidades tétricas,
pra quem fica inconsciente nesse mundo maldito.
Eu só quero teu bem.
Só quero que você fique bem.
E você pode até nunca mais falar comigo,
mas
eu tô aqui.
Pra te buscar.
E pra te xingar.
E pra ter medo quando essas coisas acontecem.
Pode ser você sozinha contra o mundo, Lola.
Mas pode ser nós duas contra o mundo, nós três, nós quatro,
Se você quiser.
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