46x06 A witch and a knight walk into a bar

 

Imagem: TingTing Huang

Estamos sentados, cada um com a sua cerveja. 

Eu, já bêbada, mas nem tanto. Só o suficiente pra estar zonza e feliz, rir alto de tudo o que você diz, passar mais segundos do que deveria olhando pras suas sobrancelhas, seus dentes, e seu pescoço. Não estou bêbada o suficiente, não tanto quanto eu gostaria de estar. 

E você -- você nada. Sempre, sempre nada. 
Sinto aquela vontade, infelizmente controlável, absurda, de dizer:

- Você não sabe, não faz ideia, do que você faz com a minha cabeça. Do efeito que você causa em mim. 

Eu diria isso olhando nos teus olhos, imagino, e você ficaria apenas momentaneamente desconcertado. 
Considero, calmamente, causar o seu desequilíbrio, enquanto tomo mais um gole. 
Mas não. 

"O que você faz com a minha cabeça". 
tolice. 
Como se você, só um homem, pudesse fazer algo com a minha cabeça. 

Eu sou a feiticeira verde, eu dou poder e o tiro. Eu tenho o poder de fazer queimar, chover, de adormecer os homens e acordar as mulheres.
Eu, não você. 
Seu poder sobre mim é o poder que eu te dou. 
Não é seu, e eu o quero de volta. 

Sou eu, a de muitos nomes, eu sou o espírito da água, eu sou a rainha de mil faces, eu transformo homens em porcos, só eu sei os segredos dos cervos e das fogueiras de Beltane. 

Eu sou a mãe de Édipo, sou a que chora a morte após tirar a vida. Sou eu quem habita as sombras dos desejos no seu coração, sou o som dos seus sonhos e aquela que chama o seu nome nos ruídos das primeiras horas da manhã. 

Eu te dou o meu amor, e você, você me dá tudo, sem saber o que existe no final. 

Eu sinto em você, o cheiro de morte, juras de amor, aventuras, terra molhada de sangue e metal, saliva e suor. Uvas e framboesas. 
E eu sei, eu sei. Você também sente o cheiro. 
Grãos, sangue, incenso, chuva, fumaça, sacrifícios. Uvas e framboesas. 

Bebemos. 
Você espera -- pelo quê?
Eu espero, pacientemente, aquele momento em que você me olha nos olhos e diz

- Você não sabe, não faz ideia, do que você faz com a minha cabeça. Do efeito que você causa em mim.


Esperamos, em guerra. 

Alguém tem que ceder, 
certo?

46x05 Queen of cups

 

Imagem: TingTing Huang


- Eu não sabia o que fazer. Eu só sabia que eu não sabia o que fazer.. Eu nem sei mais quem eu sou...

Sentada, no chão úmido da caverna, na penumbra, eu tento explicar, sem chorar tanto, mas nem eu entendo como vim parar aqui. Só sei que o som das tesouras e do tear me afligem e me acalmam, tão rápidos, tão perfeitamente sincronizados. 

- Eu preciso saber, Mãe. Eu preciso entender. Eu preciso saber quem sou. - mas a Mãe, ela não pode me ouvir. 
Seus dedos correm, velozes, tecendo sem parar, criando às cegas um desenho que ainda não consigo decifrar, que eu mal consigo ver, mesmo à meia luz. 

A luz vem da chama da vela que a Donzela segura firme, com as duas mãos. 
É através dela que eu consigo ver pequenas mudanças no ambiente, nos tons da tapeçaria, menos tons de cinza, mais cores brilhantes, verde musgo e pôr do sol, algumas silhuetas familiares.

Quase me distraio com as cores novas e deixo de ver Morta, em sua pequenez sombria, cortando fios em silêncio. Hoje, eu diria que ela realmente tem bilhões de anos. Frágil, exausta. 

A Donzela se aproxima de mim com a vela e o calor que ela emana, uma vela tão pequena, é quase insuportável. A luz incomoda meus olhos e quase não consigo abri-los. 
De pé, a Donzela tem quase o dobro da minha altura. Pernas longas, enormes, escondidas sobre um vestido escuro e dedos aracnídeos. Cabelos ruivos, lisos e igualmente longos. Ela se parece mesmo com um fantasma, o fantasma de alguma donzela de contos de fadas. 
Eu raramente vejo o seu rosto. Ela está quase sempre debruçada sobre a tapeçaria, sempre tecendo, sempre olhando, sempre sussurrando para si mesma ou cantando uma música que só ela conhece, mas que, eventualmente, ressoa nos meus sonhos. 

Mas não hoje. 

Hoje é a noite em que o sagrado deixa de ser secreto. 

- Venha - ela chama, e eu a sigo, em silêncio, com um pouco de receio, confesso. 

Ela me guia por um caminho amplo e escuro, com tapeçarias desbotadas que, ao serem iluminadas, magicamente retomam suas cores originais. 
E eu posso ver, de novo, o cinza e o amarelo, e as cores que eu nem me lembrava que existiam. 

Caminhamos em silêncio por alguns minutos, até parar em frente à tapeçaria que eu chamo, carinhosamente "Petrichor & spiders". 
E eu reconheço aquela cena, reconheço as cores e o cheiro de tecido, o frio, o amor, mas eu não sei mais me sentir assim. Ou, talvez, eu só saiba me sentir assim.

- Quem sou eu? - pergunto para a rua molhada, úmida e amarela. 
E a Donzela, ela responde, e eu sinto que a sua voz cresce em mim, dentro do meu coração, se é que isso é possível. 

- Você é alguém que perdeu a fé, que tem medo do amanhã. Você é aquela que tem medo de si mesma. Você sabe quem você é, criança, e tem medo dessa pessoa. 
Está negando e escondendo, mas eu vejo tudo que a luz ilumina e o que fica no escuro. Eu vejo o seu coração e eu vejo a dúvida. Eu vejo a solidão. 
E eu vejo um homem --

Ela sussurra, tão baixo que eu perco as palavras dentro de mim, escuro, trabalho, eu só não entendo, mas eu tento. 

Ela fala comigo e consigo mesma, murmura, suspira e grita, eu não consigo acompanhar.

- Antes, - ela diz - você controlava as suas emoções, você não deixava o medo tomar conta, você era disciplinada feito o homem, o homem na carruagem que esconde suas emoções e se defende atrás de esfinges e rasga o tecido dos seus sonhos e
Você quer o fim do conflito. Você quer tempos de paz. Mas você, meu amor, você é caos. Você usa o caos e a confusão. Você é o entrave. O que você quer?

- Eu quero... Eu quero ser feliz. 

- Não... Você não quer. Você tem medo de ser feliz. Sempre teve. - e então, ela começa a gritar, me assustando e fazendo meus pelos ficarem arrepiados - PARE DE LUTAR, PARE DE LUTAR. Você precisa esperar. E refletir. Existe amor, mas não agora, não. Não agora. Agora, você precisa entender quem você é. 
E você, você sabe a resposta, minha querida. Pense. Isso, pense. E ouça. 
Você está feliz? 
Pra onde, agora? 
Você sabe. Ouça. 

Fico em silêncio, eu me sinto mal. O calor da chama me causa desconforto, a luz me dá dor de cabeça. Ela volta a sussurrar e a gritar e eu me sinto cada vez pior. 

- Muitas preocupações, muito muito medo. Tão pessimista, você não é feliz ou você não quer ser feliz? NÃO. AGORA NÃO. Depois, quando passar, depois. Quando o sol se por. Eu sei, você não quer machucar ninguém. E não quer perder. 

- Donzela, eu não entendo. Eu não fiz nada... Eu só não sei o que fazer. 

- Oh. - ela pausa, por um instante, suspira. Quase parece que ela está exausta - Não minta. 
Tem muita tristeza a caminho. Hurricane, thunderstorm. 
Você conseguia controlar, por que não consegue mais? 
Você precisa acordar. Essas coisas, essa mágica que você conjura, ela cobra um preço, um sacrifício. 
você sabe disso. 
Mas já aconteceu antes. Tem que acontecer de novo. 

E, de novo, aquele tom. Como se eu fosse destruir tudo. 

- Por que? - eu questiono, mesmo sem entender - O que tem que acontecer de novo? Por que? O que eu faço pra não acontecer de novo? 

- Você fica. 

- Onde? Onde eu fico?

- Você só fica. E espera. As coisas. A vida. Está tudo aqui. Se você olhar com atenção, vai ver. 

E ela coloca uma das mãos na frente da chama, diminuindo a intensidade da luz. 

Eu consigo ver, agora. 
Ou acho que consigo, dessa vez. 


Espero. 

46x04 Multiverso

 

Imagem: TingTing Huang

Em algum lugar no universo, tem essa mulher. 

Eu não sei o que ela faz, eu não sei como ela é. Mas eu sei 

Eu sei que ela gosta de música, de cinema e de dar as mãos. 
Eu sei que ela dá muitas risadas e esconde a cabeça no seu ombro quando ri muito alto. O som da risada dela é engraçado. 

Eu sei que vocês ouvem música às vezes, no finalzinho da tarde. 
Eu sei que vocês tem uma música só de vocês, que não revelam pra ninguém. 
Sempre que toca, vocês se entreolham, onde quer que estejam. 

Eu sei que vocês são felizes. 
Eu sei sobre o primeiro beijo de vocês, na penumbra, ou na chuva, ou no seu carro, quando você estacionou pra deixá-la mais perto do carro dela. Na calçada. 

Eu sei que vocês tem uma linguagem secreta de sinais e que, às vezes, não precisam nem conversar pra saber no que o outro está pensando. 
Eu sei que você contou pra ela alguns segredos que nunca tinha contado pra ninguém. Morreu de medo, mas, depois, se sentiu tão mais leve. 

Eu sei que ela se sente insegura às vezes, fica com medo do que vai ser, se vocês vão mesmo ficar juntos pra sempre, pra sempre é tanto tempo.
Eu sei que você já se acostumou com o caos que ela deixa por onde passa. 
Eu sei que ela não tem tido mais pesadelos, desde que você começou a dormir em casa. 

Eu sei que ela acha que você cozinha melhor do que ela. 
Mas, também, eu sei que ela acha que tudo o que você faz é incrível, maravilhoso, perfeito e mágico.
Eu sei que ela pensa, secretamente, se vocês foram feitos um pro outro. 
Eu sei que ela pensa que vive em um filme romântico dos anos 90. 

Eu sei que ela gosta do seu cheiro, do cheiro que você deixa no carro e na casa. 
Eu sei que ela pensa o dia inteiro sobre as partes do seu corpo que ela ainda não decorou.
Eu sei que ela cria poemas sobre a textura da sua boca e o jeito como você beija

Eu sei que ela te adora, e adora o seu corpo e a sua voz e o jeito como você anuncia a sua chegada, tanto que às vezes ela até se assusta com essa intensidade. 
Eu sei que ela adora quando você ri alto, de um jeito inesperado.
Eu sei que ela odeia a sua ausência. 

Eu sei que ela se pergunta se é possível ficar sem você, e tem medo da resposta. 
Eu também teria medo. 

Eu também tenho medo da resposta. 

46x03 A friagem

 

Imagem: TingTing Huang

Deita.

Vento quente, sufocante, sua perna, seu corpo, quente, sua por baixo do tecido grosso. 

Estende os dedos e enrola, fio a fio, rápido, ligeiro. 

Por fora, dormente, atenta. 
Por dentro, a mulher é um turbilhão. 

Ventania gelada, sopra, congelando as veias, o estômago afunda, caos e

Para, respira. Tenta se concentrar em movimentos lentos e propositalmente curtos. Um balé, uma dança. 
Enrola os cabelos com os dedos. Não consegue não fazer algo. 

A angústia, a friagem interna avançam, inexoravelmente. 
Ela, em contrapartida, luta como pode, senta, deita perto do sol, queima os pés e enrola, enrola os fios até que se quebrem e caiam, murchos, no estofado escuro.

Dói feito pesadelo, mais do que os pesadelos até, porque não para, não passa. 
Aos poucos, ela sufoca, gelada por dentro, quente por fora. 

Sente a friagem consumir tudo, seus sonhos, a manhã, o conceito de cadeiras, a ideia de verdade, corta em pedaços quem ela quer ser. 
Agulhas geladas, perfurando o peito enquanto ela, como num ritual, enrola e enrola e enrola os cabelos. 

Ele, silêncio.

Ela, tempestade de verão, chuva fria na terra quente, inundando, lavando tudo.
Destruindo o que quer que esteja no caminho. 

46x02 Os donos dos corpos

 

Imagem: TingTing Huang

Essa mulher, ela se senta na minha frente, e ela me diz a melhor e a pior coisa de se ouvir:
ela me diz que vai me contar uma coisa que nunca contou a ninguém. 

E, ao mesmo tempo em que eu quero decifrar o enigma da esfinge, ao mesmo tempo em que eu quero desbravar os limites da mente e dizer que eu vi seu ego nu, que eu sei as cicatrizes da sua alma, 

eu não aguento mais nada. 

E, ainda assim, a despeito do meu pavor de que me dê uma história que eu nunca vou poder contar, ela conta. 

E eu entendo o porquê de essa mulher tão pequena e morena morrer um tanto todo dia. 
Porque agora eu também morro um pouco todo dia. 

Era uma vez amor,
quando um homem e uma mulher se amam, 
e ele também ama outras mulheres, 
mas nem foi aí o início da história. 

O início é antigo, milenar, alguém um dia deixou que os homens pensassem que eles são os donos dos corpos das mulheres. 
Que amor é um certificado de posse.

Enquanto ela me descrevia o sangue e a noite, a culpa e o arrependimento que só quem carrega por anos é que conhece, eu fiquei nauseada. 
Não é das histórias que me canso, eu me canso do mundo, eu me canso não de você, moça, nunca de você e da sua voz, eu me canso de existir em um mundo tão brutal e injusto, 
não, não, eu não tô exausta pelo seu sofrimento, eu estou cansada de ter que te ver resistir e carregar um peso que todo o escitalopram do mundo não tira, um vazio que esse depakene não vai preencher. 

Perdão. 

Eu queria poder fazer melhor, eu quero poder fazer melhor. 
Por mim, por você, por nós duas.
Por nós todas. 

Mas hoje, só hoje, o que eu tenho é isso: dois ouvidos, uma boca e a capacidade de guardar segredo. 

Serve?

46x01 E de Estupro

 

Imagem: TingTing Huang

Ela nem sequer conseguia dizer a palavra. 

Olhava pra mim com aqueles olhões enormes, azuis. 

E dizia "o que ele fez comigo", "fez aquilo", "forçou aquilo", "a mesma coisa da outra vez", "aconteceu de novo". 

E o tempo todo, no meu ouvido, uma voz ríspida gritando que eu a corrigisse. 

Eu, impassível, calada, ouvindo e ouvindo. 

Aquilo o quê?
O que foi que ele fez com você? 

E ela circulava, evitava a palavra como se o nome da coisa carregasse consigo o poder de trazer tudo de volta, como se dizer a palavra fosse 
Como se a palavra fosse a lembrança, como se a palavra fosse o homem no escuro, o peso do corpo e o cheiro 

Como se 7 letras a tivessem segurado de encontro ao chão. 
Como se 7 letras carregassem a culpa de tudo o que houve, e não eles.
7 letras e ela. E o nome dela. 

Todo o peso do mundo nas costas de uma pessoa tão pequena, de uma palavra tão pequena e tão apavorante, terrível, grotesca,
e só eu ali, tão pequena e crua e imatura, 
quem sou eu pra tirar o peso das costas de Atlas? 

Eu sou Ninguém. Ou, talvez, 
Ninguém seja quem eu quero ser. 

45x22 Happier than ever (Season finale)

 

Imagem: TingTing Huang

Fico me perguntando se você já foi mesmo feliz. 

Porque você parece feliz hoje, e eu nunca te vi assim. 

Você explica, gesticula, me conta e volta, diz coisas secretas e obscuras, e fala, pela primeira vez em eras, sobre a mulher que você amou. 
A mulher que te destruiu primeiro, ou pelo menos é isso o que você pensa, o que você sabe, o que você vê. 

Você diz que está livre, que está feliz, que está bem. 

E eu quero acreditar que isso é felicidade, que felicidade existe e não é só uma confusão química acontecendo no seu cérebro bem diante dos meus olhos. 
Eu quero acreditar que dá pra ser feliz assim, bem desse jeito, porque eu preciso acreditar em algo. 

Se eu pudesse acreditar em algo, acreditaria em você. 
Acredita que sua vida pode mudar em um piscar de olhos, acreditaria em amor e que existe cura pra gente profundamente triste e quebrada e vazia. 

E aí está você,
ainda de pé como um ator, e eu ouço o seu monólogo assombrada, com um pressentimento ruim, uma dor estranha no peito. 
Eu não quero que isso que você está sentindo tenha fim. 
Eu não quero que seja mentira.
Eu não quero que seja qualquer coisa além de felicidade pura, brilhante, furta-cor, transbordando. 

Eu quero ser feliz assim, eu quero que seja de verdade. 
Por favor, fique feliz de verdade. 
Por favor, esteja feliz. 
Por favor, esteja bem. 
Por favor, homem, menino, prove que existe. 

Eu preciso que exista. 

Eu quero ser feliz também. 


45x21 Teleborianism II

 

Imagem: TingTing Huang

Ela olhou nos meus olhos. 

Magra, parda, os olhos úmidos de chorar. Ela me pediu que a deixasse morrer. 

E eu, que já matei tanta gente, logo eu, disse que não. 

Ela argumentou, me jurou que já tinha feito de tudo. Jurou que já tinha aproveitado a vida, que 21 anos tinham sido mais do que suficientes. 

Ela me prometeu que lorazepam, clomipramina, amitriptilina e venlafaxina,
que seu problema não era a serotonina. Seu problema, ela afirmou, era a vida. 

A vida era muito. 
A vida era demais. 

Me deixa morrer

Ela jurou que não queria mais sentimentos, não queria viagens, nem cores, nem músicas, nem os filmes novos da Marvel, nem beijar alguém que você sempre amou, nem primeiros beijos, nem sexo, nem a dor de perder ou de ganhar. 

Ela me disse, por favor, acredite, eu fiz tudo o que me pediram, mas não melhora nunca. E eu não quero que melhore. 
Eu só quero que acabe. 

E eu, intrometida, 
invasiva, 
salvadora não requisitada, 
prometi mundos e fundos, prometi que o lítio, prometi que a quetamina, prometi preencher o vazio de uma vida com singelos 300mg. 

Na batalha entre a autonomia e a obrigação, 
quem venceu foi o tempo. 
Não eu, não ela. 

"Sinto muito", 
saiu da minha boca, sem controle, antes que eu pudesse sair correndo, sempre correndo, 
como se algo estivesse me perseguindo. 


45x20 Boyhood

 

Imagem: TingTing Huang

Manuel

Voz de mulher, como sussurro, voz soprada, quase musical, não sei explicar, só sei que é assim que é. 
Acordo no meu quarto, ou no meio da rua. 
Não sei se eu tô bem ou mal, sei que tô. 
E que tem um vento indo na minha direção. 
Depois do vento, a voz. Da voz, o vento. 

Paraliso, ouvindo o feitiço, a mágica soprada, a voz. Eu entendo, mas não falo essa língua. 

Moça preta vem, pega a minha mão, e eu tenho a impressão de que nos conhecemos há séculos, desde aquele tempo em que eu era só um velho, mas hoje eu sou só um menino. 
Ela, ela também já foi e é. 

Às vezes, até acho que tudo vai ficar bem. Aí vem
Ah, sim.
E êxtase, e medo e 
tudo faz sentido. 

Rui

Deus está sentado na minha cama, me olhando. 

É difícil começar a descrevê-lo. Mas posso tentar. 

Sinto muito, Deus não é uma mulher. Mas também, não sei se Deus é um homem. Quero dizer, Deus é Deus. 

Eu li em um livro, uma vez, mas não me lembro hoje. 

Ele está aqui porque tudo vai ficar bem. Porque eu estou bem. Porque todo mundo está bem. 

Sou inundado por uma sensação única e incrível e brilhante e 
algo irreal. 

Será que estou enlouquecendo? Quero dizer, não estou. Ele está aqui, eu posso vê-lo tão claro como--
Como cadeiras e mesas e 
Estou tão cansado, até meus pensamentos me cansam. 
Mas agora não, agora tudo vai ficar bem.
Deus está aqui agora. 
Tudo vai ficar bem. 
Eu sei que vai, 
eu tenho certeza de que vai, 
não vai? 


Lúcio

Onde?

Acordo de um sono de 100 anos, como a Bela Adormecida do Bosque, na história antiga. 

Queimo em febre e sinto vontade de chamar minha mãe. Mas não sei as palavras. Eu não sei mais tudo. Eu sei. 
Tem quem eu sou.
Tem onde estou. 
Tem homens e mulheres e nomes e datas e o lugar onde fica o banheiro. 
Tem o gosto da comida. 

E, ainda assim, eu sinto que caminho dentro de um sonho, através de um sonho, 
e onde chego depois? 

Fico parado na estrada onírica, me perguntando se hoje é mesmo hoje, mas sei quando e onde e mais um monte de coisas. Eu só não sei mais tudo. 
Nem sei se quero saber. 

Eu quero só aqui, só agora. 
Talvez até volte a dormir, se é que não estou dormindo, 
e acorde só daqui a outros 100 anos. 

Com ou sem beijo. 


45x19 When tomorrow comes

 

Imagem: TingTing Huang

Querido (amado, adorado) Otto,

olá. 
Como vai você? 

Gostaria de mentir, gostaria que fosse mentira, mas
não tenho pensado em você. 

Acho até que não tenho pensado.

Tentei um exercício, um velho velho exercício, aquela coisa que vivi muitas vidas atrás. 

(Penso em você quando despelo uma laranja, etc etc.)

Eu queria te escrever uma carta de amor. Mesmo não sabendo mais se ainda te amo. 
Quero dizer, eu te amo. 
Mas, você sabe,
Aqui vai.

Eu sinto a sua falta. Isso não é mentira. 
Quando ando de elevador, no frio e no calor, existe uma ausência, um vazio, palavras não ditas e o silêncio dos segredos sagrados das mulheres e dos padres. 
Sinto a sua falta, da maturidade que desconheço, dos seus dedos e do cheiro do seu couro cabeludo, mesmo quando nem sei. 

Afundo no sofá no meio da madrugada, insone, alerta - às vezes, eu espero ouvir a sua voz no apartamento silencioso, mesmo aqui, a quilômetros e universos de distância. 

Sinto falta do seu silêncio, suas cores. 

Elas não existem aqui, suas cores, Otto, elas são só suas. 

Se eu pudesse escolher um lugar do mundo pra me teletransportar, aqui, agora, por segundos que fossem, eu iria agora me sentar na sua frente em um café escuro, pra te ver comer sua fatia de torta sem prestar atenção a ela, girando o garfo entre os dedos enquanto mexe no celular, como quem tem ou quer ter todo o tempo só pra si. 

Eu quero te ver. 
Eu quero respostas, Otto. Sobre mim, sobre nós, quem sou eu e os mistérios do universo. 

Sinto que tô perdida e, sempre que me sinto assim, 
te encontro 
dentro de mim. 

Curioso, não? 

Fique bem. Fique vivo. 

Com amor, 

B.