46x01 E de Estupro

 

Imagem: TingTing Huang

Ela nem sequer conseguia dizer a palavra. 

Olhava pra mim com aqueles olhões enormes, azuis. 

E dizia "o que ele fez comigo", "fez aquilo", "forçou aquilo", "a mesma coisa da outra vez", "aconteceu de novo". 

E o tempo todo, no meu ouvido, uma voz ríspida gritando que eu a corrigisse. 

Eu, impassível, calada, ouvindo e ouvindo. 

Aquilo o quê?
O que foi que ele fez com você? 

E ela circulava, evitava a palavra como se o nome da coisa carregasse consigo o poder de trazer tudo de volta, como se dizer a palavra fosse 
Como se a palavra fosse a lembrança, como se a palavra fosse o homem no escuro, o peso do corpo e o cheiro 

Como se 7 letras a tivessem segurado de encontro ao chão. 
Como se 7 letras carregassem a culpa de tudo o que houve, e não eles.
7 letras e ela. E o nome dela. 

Todo o peso do mundo nas costas de uma pessoa tão pequena, de uma palavra tão pequena e tão apavorante, terrível, grotesca,
e só eu ali, tão pequena e crua e imatura, 
quem sou eu pra tirar o peso das costas de Atlas? 

Eu sou Ninguém. Ou, talvez, 
Ninguém seja quem eu quero ser. 

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