46x18 Golden

 

Imagem: TingTing Huang

Oi.

Queria começar direito, formal.
Não consigo, não consigo levar isso a sério.
Escrevo pra dizer que te amo.
É, escrevo porque precisava botar isso no papel. E nunca te entregar, e nunca te dizer. 

Que merda. 

Eu amo você. 

Tenho tantas razões, tantas coisas pra dizer. 

Você é tão--
Intensa. Veloz. Brilhante. Amo a sua pele, o jeito como a sua voz muda ao longo do dia.
Eu amo quando você ri.
Eu amo quando você fica pensativa.
Eu amo tudo sobre você, e isso assusta pra porra.
Você é doida. De um jeito mágico, místico, misterioso, sua pele queimada brilhando sob a luz do céu da manhã, e eu só queria que você soubesse--
Eu não quero ficar só. Eu quero ficar com você. 

Quero ficar com você. 

Penso em você o tempo todo. Na sua boca, no seu corpo nu
Perdoe se pareço vulgar, mas é que eu sou vulgar. Penso no seu corpo nu, penso em fazer sexo com você em todos os lugares que conheço e desconheço.
Penso no gosto que a sua boca vai ter, agridoce, na sua saliva quente.
Às vezes, penso nisso enquanto estamos juntos. Não consigo evitar.
Você fala, e você ri e você toca de leve o meu ombro.
Sinto arrepios.
Às vezes, à noite, penso em você.
Quero ficar com você. 

Quero poder olhar pra você, quero poder te tocar sem medo.
Quero poder te dizer todas essas coisas em voz alta. Quero não precisar desviar meus olhos dos seus, por medo de que você possa ler minha mente.
Quero parar de falar sobre assuntos amenos quando estamos juntos.
Quero poder acariciar seus cabelos, te puxar na minha direção.
Eu quero poder te dizer o quão incrível você é.
E tudo bem, se você não sentir o mesmo--

Não.

Não.
Eu quero que você sinta o mesmo. Eu realmente, realmente, quero que você sinta o mesmo.
Mas sim, eu sei. Eu me conheço.
Você é diferente. Tão brilhante e aberta e eu sou tão--
não você.
Às vezes, acho que te amo porque você é tudo o que eu não sou.
E eu sou tudo o que você não é.
Como daria certo?
Acho que essa sombra que me acompanha, que consome tudo, que suga tudo, acabaria por te devorar.
E eu não quero que ela te devore. 

Então, me resigno a sentar do seu lado no horário de almoço, te ouvir falar sobre essa outra pessoa por quem você talvez esteja apaixonada.
Você reluz e eu dou risada. Por dentro, eu sufoco.
Eu o odeio, sem conhecê-lo.
Odeio que ele possa te tocar, odeio que ele possa te consolar, odeio que ele possa tocar seus seios, odeio que ele tenha te visto nua na penumbra do seu quarto.
Odeio como você fala o nome dele, odeio os apelidos carinhosos que vocês trocaram.
Odeio as coisas que ele te diz. 

Naquela noite, naquela que você bem sabe,  eu ia te dizer que te amo.
Estávamos bêbados, no mesmo hotel.
Eu, menos bêbado do que gostaria, você toda sorridente.
Estava tentando criar coragem, achar coragem no fundo de uma garrafa.
Você cheirava a sabonete.
Seu rosto, suas mãos a um toque de distância.
Eu tinha fantasiado várias vezes, eu tinha o discurso na ponta da língua.
Paramos na porta do seu quarto.
Você me olhou. Como se soubesse, como se, talvez, quem sabe, quisesse...?
Eu queria dizer.
Mas eu não disse.
Eu nunca vou entender o que houve. Quero dizer, houve tanta coisa. Tanta gente.
Então, você disse "Boa noite".
Eu não dormi aquela noite. Meu coração parecia que ia sair pela boca. Minha mente correndo veloz, gritando que eu batesse na porta do seu quarto, feito uma cena de comédia romântica, daquelas que você tanto aprecia.
Eu devia ter batido.
Eu devia ter te beijado com toda a intensidade do que eu sinto. 

Perdi a oportunidade.
Essa e outras tantas, incontáveis.
Um oceano entre a sua boca e a minha.
E, agora, eu me sinto extremamente sozinho. 

Ainda sonho com você. Noite e dia. Enquanto dirijo pra casa depois do trabalho.
Quando estou correndo no parque.
Quando despelo uma laranja.
Quando ouço a nossa música, aquela que você desconhece.
Sinto vontade de sair correndo, fugir, a toda velocidade, dessa obsessão que você se tornou, da vontade de te ter pra mim.
Talvez você nem exista. Talvez eu esteja apaixonado pela versão de você que criei na minha cabeça. 

Não daria certo, certo?
Quero dizer, você quer romance, longas caminhadas na praia ao luar, de mãos dadas.
Eu quero sombra, aconchego, sexo, pedir comida e comer no chão, quero ficar nu com você por dias a fio.
Você quer sair, ir a cafés, discutir política e justiça social.
Eu só quero ir ao cinema e decorar as curvas do seu corpo, eu não quero saber de filosofia, eu quero saber de poesia e teatro, da sua língua dentro da minha boca,
você quer dançar lento na cozinha, e eu quero cozinhar pra você, escovar os dentes pra te beijar de novo e de novo e de novo. 

Dane-se! Eu quero o que você quiser.
Diga sim agora, e eu te busco em casa em algumas horas, eu te levo pra onde você quiser ir,
vamos ver o nascer do sol e fazer bruxarias sob a lua negra.
Feitiços de amor e morte, e você pode me sacrificar nas fogueiras quando tudo acabar.
Sei que soa como maluquice, mas eu preciso escrever sem pensar muito sobre tudo.
Sei que você nunca vai ler, sei que nunca vai saber.
Então eu preciso dizer, eu preciso colocar no mundo que eu largaria o que estou fazendo agora pra ficar com você.
E isso me deixa enfurecido, ensandecido, porque eu sei que não tenho a coragem necessária.
Se eu tivesse--

Eu amo como você se importa. Mesmo que finja que não.
Você é uma boa pessoa.
As pessoas tem sorte por ter você perto delas. 

Eu estou exausto. Mentir cansa. Tem sido cansativo, todos esses anos.
Eu te amo, e tenho te odiado, e me odiado.
É um limiar tênue.
Eu não quero brigar, eu não quero me afastar, mas eu não consigo mais ficar perto.
Lembro-me desse dia, muito tempo atrás.
Eu toquei você e você encolheu. Um choque, eu senti como se meu corpo todo estivesse aceso, elétrico.
Como se eu acordasse.
E, então, você se afastou. Tenho andado por aí feito um sonâmbulo, desde então.
A espera de um toque, uma palavra, um sinal. 

Eu não quero ficar só.
Eu quero ficar com você.
Mas eu não posso, entende? Se pudesse ler isso, se pudesse entender toda essa bagunça, toda essa insanidade.
Eu quero que você fique bem e eu não sou uma boa pessoa.
Eu quero que você seja feliz. 

E eu quero ser feliz com você.
Mas eu não sei se consigo. 

Eu não acho que consigo. 

Talvez,
um dia?

Se não for tarde demais,
quem sabe?

46x17 Amoral gods at the end of time

 

Imagem: TingTing Huang

Penteio meu cabelo olhando no espelho do outro lado do quarto, sentada na beira da cama desarrumada. 

Estou velha. 

Cabelos brancos, pequenas rugas espalhadas pelo rosto, que nenhum procedimento estético ainda foi capaz de ocultar. 

Estou velha demais pra isso? 

Ouço-o no banho, seu assobio curto, fora do ritmo. 

Estamos velhos, estamos todos velhos. 

Já passa das 10h, Gabriela deve estar acordada em casa, alerta, me esperando pra levá-la à aula de dança.

Ela já tem 10 anos. 

Às vezes, me pergunta onde passei a noite.
Tento não mentir, mas não sei se é hora de dizer a verdade.
E o que é a verdade? Qual é a verdade? 

Eu não me lembro exatamente quando foi que me apaixonei irremediavelmente por Pedro.
Um dia, acordei assim, como num episódio psicótico de início súbito, sem histórico prévio.
Era recém-casada, então.
Só me lembro da tristeza, da confusão e da angústia.
Das centenas de tentativas vãs de entender quem eu amava mais: Pedro ou Edgar.
Eu me lembro da incerteza, do vazio, da saudade de Pedro.
Lembro do pavor de me separar de Edgar.
De tantas decisões erradas, tomadas por medo do que iriam dizer sobre mim.

Lembro de perceber, finalmente, que não era nem um, nem outro: que eu queria ficar com ambos. 

Com o calor amável e aconchegante de Edgar. Com seu sorriso, sua maturidade, sua inteligência.
E com a solidão de Pedro, sua paixão, seus segredos.
Eu queria tudo e ninguém podia me convencer de que não se podia ter tudo. 

Capengamos. 

Discussões infinitas sobre nós, sobre amor e posse, monogamia. 

Fiquei com os dois, ou acho que sim. 

Não foi perfeito. 

Ninguém me disse como fazer, ninguém nos ensinou como agir. 

Só agimos. 

Às vezes, tenho a impressão de que ainda acham, mesmo após todos esses anos, que Pedro não passa de um capricho meu.
Um hábito vergonhoso, um vício.
Se ele também sente isso, não sei, ele não fala. Nunca fala.
O mesmo Pedro, imponente, taciturno, uma criatura de hábitos. 

Volto pra casa, e Edgar já não me encara desconfiado.
Parece sempre cansado, sempre cheio de coisas pra contar, opiniões pra desfiar, um beijo no canto da boca.
Quer passear no parque, quer ir ao cinema de mãos dadas.
Quer mostrar pro mundo que eu sou mais sua.
Mesmo sabendo que não pertenço a ninguém, só a mim mesma. 

Um dia, minha menstruação atrasou.
Esperei semanas até que descesse, em negação.
Tive tanto medo.
Tínhamos acabado de alinhar nossa rotina, só agora Edgar parecia mais receptivo à presença de Pedro em nossas vidas.
Pedro e eu recentemente tinhamos começado a fazer planos.
E agora, isso.
Um bebê.
De quem?
Dá pra dividir uma criança como se divide um romance? 

Gabriela nasceu prematura.
34 semanas e 5 dias.
E eu a amei. De um jeito diferente que eu nem sabia que existia.
Eu a amei e temi por ela, temi por eles.
Tive medo de que a rejeitassem por ser minha, por ser nossa, por estar no meio da bagunça que eu havia criado.

Pedro farejou Gabriela como quem fareja um objeto desconhecido. Olhava pra ela desconfiado, arredio. Levou um tempo, mas ele logo estava contando e recontando seus dedinhos miúdos, em silêncio, sorumbático.
Edgar chorou. Passava tanto tempo perto dela, queria falar com ela, queria vê-la, queria cuidar dela o tempo inteiro, selvagem, feroz, protetor.
Não sabíamos, à época, mas era quase como se ele soubesse.
São idênticos. Mesmo rosto, mesmo nariz, mesma boca, mesmos olhos. Riem igual, falam igual, dormem igual.
Aos poucos, ele foi tomando pra si o que já sabia que era seu.
E Pedro foi passando ao cargo de tio que traz presentes no Natal e no aniversário. 

Pedro nunca se casou.
Nunca falamos sobre o assunto.
Ele saiu com outras mulheres, lá atrás. Eu nunca me senti no direito de impor limites.
Aos poucos, ele pareceu se resignar.
Não falamos sobre filhos, sobre casamento. Apenas sobre o hoje, o agora, grudo em seu corpo numa prece pra que ele seja feliz. 
Pra que ele esteja feliz. 

Edgar quer mais um filho.
Fantasiamos, antes de dormir, sobre um bebê novo, uma casa maior, talvez outro gato.
Seria bom.
Talvez.
Abraço meu marido no escuro, e ele me diz que me ama. Que coisa boa de se ouvir, e de dizer. 

Estou velha.
Penteio os cabelos escuros da minha filha, e ela me pergunta se eu estou apaixonada.
Digo que sim.
"Pelo meu pai?"
Reflito, por um instante, antes de responder.
"Também", eu respondo.
E parece mais do que suficiente, ela acena com a cabeça. 

Queria que essa história tivesse um fim, uma moral.
Queria entender o que ela significa.
Pra mim, pra nós.
Mas eu acho que a escrevi justamente porque ela não tem. Porque eu não quero que tenha.
Porque eu acredito - ou quero acreditar - que nem tudo na vida precisa fazer sentido, ter explicação, seguir um padrão.

Só isso, mais nada. 

46x16 The floor is acute mania

 

Imagem: TingTing Huang

Boca seca, bebo água, copo meio cheio, metade água, metade medo. 

Surgiu aqui, na minha mente, solo fértil e não faço questão da rima, brotou uma semente, 
floriu um pensamento ácido e sombrio, feito o eu que você ama no escuro. 

Como se esse eu da penumbra visse a luz do dia, finalmente, de dentro de mim. 

Uma fera acuada, mas não enjaulada. 

Acorda e vê o mundo, pela primeira vez, em silêncio. 
Uma miríade de sons, cores, dores, o cheiro de

Ela cora, confusa, milhões de informações em um segundo. Circulando aos pares, 
um beijo,
uma  cor,
uma cidade, uma dor, 
um homem. 

Em círculos, cirandas, voltas rápidas e inodoras, 
1, 2, mil voltas. 

E eu aqui, eu agora, eu presente, passado e futuro, 
tudo numa só, 
eu me lembro de já ter me sentido assim. 

Também me lembro de não me sentir assim, 
e eu nunca mais quero nada diferente disso. 

Eu sinto como se tivesse ainda 20 e poucos anos, e fizesse frio, um tempo nublado, e brasília tivesse cheiro de nuvem.
Como se eu tivesse alguém pra olhar e sua mão pra segurar depois da aula. 

Como se essa sensação pudesse salvar o mundo inteiro e ninguém mais precisasse sofrer. 

E eu juro, eu não vou dormir, 
eu vou ficar acordada, eu não preciso dormir, 
até você voltar, até tudo se encaixar, até 

até tudo parar de girar.

Não me deixe sozinha hoje, 
não hoje, 
falta pouco.

Eu posso sentir. 

Early Cuts: All of you, some of you, none of you

 

Imagem: TingTing Huang

Noite passada, sonhei com você. 

Com você não-você, a sensação sem corpo que toma forma de figura sem rosto no centro do universo do Id. 

Sonhei com a coisa disforme que não tem nome, nem cheiro, nem cor
nem sombra, nem
Inorgânico

Somatizo. 
Sinto queimar o peito, parece até que- 
Não.
Não parece. Parece que

Então o que é?

Que nome tem essa vontade presa nos confins da mente, na memória dos ossos e das mãos. 

46x15 Maze Runners

 

Imagem: TingTing Huang

Encosto a caneta no papel e minha mente fica automaticamente vazia. 

Eu não me sinto vazia, me sinto derramando. 

Caminho pelo labirinto. Às vezes, é dia. Às vezes, é noite. às vezes, um meio termo, sem nunca passar pelo mesmo lugar duas vezes. 

Ou, talvez, sem jamais ser a mesma pessoa passando pelo mesmo lugar duas vezes. 
Complicado. 

Vou deixando migalhas, que os pássaros e as pessoas comem, me perco, 

Feito Ariadne, ou era Medeia?, ou eu sou Medéia, nem me lembro, desfio as roupas e amarro pelos galhos, deixo um rastro de fios pra trazer de volta alguém que já foi embora. 

(Às vezes, tenho a impressão de estar vivendo a história toda ao contrário. Não era pra eu estar lá fora? Quem é o herói dessa história, tô entrando ou tô saindo?)

Já nem me lembro. 

De vez em nunca, até me pergunto, olhando meus cascos brilhantes, patas peludas, se---
Não. 

Sacudo a cabeça, como se a ideia fosse uma mosca a fazer zoada no ouvido. 

Pra onde ir? 

Estou saindo, estou chegando. 
Onde fica o meu lar? 

Minha respiração solitária vai se adensando, quase um pequeno fantasma de névoa, uma companhia. 

Sinto falta da voz de alguém. Há meses, meses que não ouço, 1 ano já. Tudo agora me parece tão vago, cinza. 

Na minha mente, a voz de minha mãe, a bênção, o cheiro do ar e do mar. 
Sinto que andei tanto, que me distanciei tanto do centro, meu coração bate na goela, rápido. 

Sinto o gosto do meu sangue, o gosto do sangue de homens e mulheres que se sacrificaram pela minha divindade, pela minha sobrevivência. Eu os honro sob a lua negra, e sigo em frente, rasgo meus braços na sebe crescida, os galhinhos puxando meus cabelos e ricocheteando no meu rosto. 

Corro. 

Eu sinto como se pudesse sair voando, eu sinto o gosto do sal, eu sinto a textura da pele, da carne, eu sinto o cheiro do útero da minha mãe, eu sinto como se nada, absolutamente nada, pudesse me derrotar, eu sinto como se fosse eu a dona do meu próprio destino. 

Então eu corro, e corro e corro até

Antes de vê-lo, eu sinto o seu cheiro, de suor salgado, jasmim e menta. Eu ouço sua túnica e seus sapatos em contato com a pele, eu sinto sua hesitação pulsando nas minhas veias. Eu sinto o cheiro do seu medo, azedo. Ouço seu coração bater rápido como o de um beija-flor. 

Instintivamente, eu me escondo nas sombras pra vê-lo melhor, prendo a respiração. 

E ele aparece, parcialmente iluminado pela lua negra. Um homem, mas diferente. Empunhando uma espada e uma bola de fios carmesim, que brilha, pulsa. 

Um herói.

Um herói, como os das histórias dos homens, enviado pelo Pai pra me libertar das correntes do centro desse labirinto infernal. 
Um herói, pra me reconduzir ao trono. 

Quero avançar na direção dele, mas paraliso. Não consigo me mover, não consigo ir até ele. 
Não sei o que é isso que estou sentindo, mas espero um momento, um segundo, inundada por algo que nunca senti antes, que nem sei se sei nomear,

meu corpo todo, eletrificado, 
alerta, 
os pelos eriçados
coração explodindo no peito
vontade de correr e gritar

Ele se aproxima e eu só tenho um segundo pra decidir

se é amor ou medo,

antes que tudo se dê como era de se esperar. 


46x14 Manic Pixie Dream Girl


 Imagem: TingTing Huang

Acordei dentro de você.
Que loucura!

Dentro de você tem agora um pouco de mim. 

Eu sempre quis morar dentro de você, abraçar seus pensamentos, ver o mundo pelos seus olhos escuros. 

Queria te ver despenteado, desperfumado. 

Tridimensional, pernas nuas e o lençol ainda desfeito. 

Eu queria te ver tomar café sozinho, sem ninguém pra te olhar. 

Quem é você quando é só você? 
Em que você pensa, o que você sabe, o que você quer dizer, 
o que você sente, manic pixie dream boy? 

Quem você é fora da minha fantasia? 
Que gosto a sua boca tem quando você não está nos meus sonhos? 
Eu estou nos seus? 

No que você pensa quando não pensa em mim, na minha boca, na minha vida, quando eu não sou o centro do seu universo - se é que eu sou, mas como poderia não ser? 

Manic pixie dream boy, por que às vezes parece ser tão silencioso e escuro dentro de você? 
Não era pra ser tudo colorido, não era pra ser tudo uma repetição de imagens e momentos de nós dois, meu cheiro e a vontade do meu beijo com gosto de álcool e açúcar? 

Como você ousa, Manic pixie dream boy, ser mais do que uma fantasia? 

Ter ideias, interesses, opiniões, saudades, uma história patológica prévia, zero interesse em política e filosofia, e religião, e literatura e

em mim. 

Como você ousa, Manic Pixie Dream Boy, ser real, 
ser humano, 

não ser meu? 

Early Cuts: Save yourself

 

Imagem: TingTing Huang

Tenho pensado em quem é a mulher no espelho. 

Qual é a sua cor? E a cor dos seus olhos, 
a cor dos seus sonhos, 
A mulher no espelho, ela sonha? 

Eu me sento e ela se senta para tomar um chá quente e escuro, 
no fim da tarde. 
Gosta de mate. 
Gosto de muitas coisas pequenas e justas e com texturas ásperas e temperatura marcante. 

Sinto a necessidade de entender quem eu sou dentro e fora do mundo do espelho. 
Se eu sou muito ou sou pouco. 

Perco ainda as palavras, eu não sou mais quem eu era, eu não sou mais quem eu sou, eu não sou mais quem

mas, quem? 

Tenho dores imensas e profundas, nas costas, nos dedos, nos olhos, nos receptores. 
E nada faz passar, nada faz melhorar. 

Olhei um homem pela janela e foi a primeira vez que vi alguém que não era eu.

E que era eu. 

46x13 Cila

 

Imagem: TingTing Huang

Besta em guarda, anda pelos corredores de um castelo submerso, carregando um molho de chaves, flutuando, sob a luz do luar. 

Às vezes, ela se veste, às vezes, flutua nua, de corredor em corredor. 

Para em frente a cada porta, confere a tranca, retranca, 01, 02, 03 voltas de chave. 
Nunca entra, nunca dorme, nunca come. 

Só tranca, Cila, sempre fecha uma por uma e, depois que termina, volta a fechar. 

Noite alta, água morna, Cila passa, trancando, 01, 02, 03 voltas de chave. Tranca portas há muito emperradas. 

No fim do corredor, uma réstia de luz nova. 
Cila gela. 
Corre-flutua, o molho de chaves balançando preguiçoso em sua mão. 
Anda-corre pelo chão de madeira morta até chegar bem perto da porta recém destrancada. 

Puxa forte a maçaneta pra si, e ela não cede. 

Puxa, puxa, puxa, tensiona os pés, o pescoço, puxa com todo o corpo, uma força de leviatã, até fechar. 
E tranca, 01, 02, 03 voltas de chave. 

Pronto. 
Tudo certo. 

Suspira, assustada, por um instante.

Depois, volta ao trabalho, 
e tranca
e tranca
e tranca. 

Early Cuts: Fire walk within me

 

Imagem: TingTing Huang

Caro Otto, 

olá. 

Como vai você? 

Nossa comunicação vai ficando cada vez mais escassa. Às vezes, acho que passou, que você é apenas aquele chiclete que eu gostava, mas que teima em voltar à moda. 

Já não estou em chamas. 
Apagou-se o fogo. 
Tem caos, dentro e fora de mim. 
Uma chuva de cinzas, ininterrupta. 

Às vezes, parece que nada cresce aqui, não tem espaço para crescer, pra plantar, pra florescer, enquanto não parar de chover cinza. 

Sonho desordenado, não entendo. 
A borra do chá só me diz que não.