Imagem: TingTing Huang
Penteio meu cabelo olhando no espelho do outro lado do quarto, sentada na beira da cama desarrumada.
Estou velha.
Cabelos brancos, pequenas rugas espalhadas pelo rosto, que nenhum procedimento estético ainda foi capaz de ocultar.
Estou velha demais pra isso?
Ouço-o no banho, seu assobio curto, fora do ritmo.
Estamos velhos, estamos todos velhos.
Já passa das 10h, Gabriela deve estar acordada em casa, alerta, me esperando pra levá-la à aula de dança.
Ela já tem 10 anos.
Às vezes, me pergunta onde passei a noite.
Tento não mentir, mas não sei se é hora de dizer a verdade.
E o que é a verdade? Qual é a verdade?
Eu não me lembro exatamente quando foi que me apaixonei irremediavelmente por Pedro.
Um dia, acordei assim, como num episódio psicótico de início súbito, sem histórico prévio.
Era recém-casada, então.
Só me lembro da tristeza, da confusão e da angústia.
Das centenas de tentativas vãs de entender quem eu amava mais: Pedro ou Edgar.
Eu me lembro da incerteza, do vazio, da saudade de Pedro.
Lembro do pavor de me separar de Edgar.
De tantas decisões erradas, tomadas por medo do que iriam dizer sobre mim.
Lembro de perceber, finalmente, que não era nem um, nem outro: que eu queria ficar com ambos.
Com o calor amável e aconchegante de Edgar. Com seu sorriso, sua maturidade, sua inteligência.
E com a solidão de Pedro, sua paixão, seus segredos.
Eu queria tudo e ninguém podia me convencer de que não se podia ter tudo.
Capengamos.
Discussões infinitas sobre nós, sobre amor e posse, monogamia.
Fiquei com os dois, ou acho que sim.
Não foi perfeito.
Ninguém me disse como fazer, ninguém nos ensinou como agir.
Só agimos.
Às vezes, tenho a impressão de que ainda acham, mesmo após todos esses anos, que Pedro não passa de um capricho meu.
Um hábito vergonhoso, um vício.
Se ele também sente isso, não sei, ele não fala. Nunca fala.
O mesmo Pedro, imponente, taciturno, uma criatura de hábitos.
Volto pra casa, e Edgar já não me encara desconfiado.
Parece sempre cansado, sempre cheio de coisas pra contar, opiniões pra desfiar, um beijo no canto da boca.
Quer passear no parque, quer ir ao cinema de mãos dadas.
Quer mostrar pro mundo que eu sou mais sua.
Mesmo sabendo que não pertenço a ninguém, só a mim mesma.
Um dia, minha menstruação atrasou.
Esperei semanas até que descesse, em negação.
Tive tanto medo.
Tínhamos acabado de alinhar nossa rotina, só agora Edgar parecia mais receptivo à presença de Pedro em nossas vidas.
Pedro e eu recentemente tinhamos começado a fazer planos.
E agora, isso.
Um bebê.
De quem?
Dá pra dividir uma criança como se divide um romance?
Gabriela nasceu prematura.
34 semanas e 5 dias.
E eu a amei. De um jeito diferente que eu nem sabia que existia.
Eu a amei e temi por ela, temi por eles.
Tive medo de que a rejeitassem por ser minha, por ser nossa, por estar no meio da bagunça que eu havia criado.
Pedro farejou Gabriela como quem fareja um objeto desconhecido. Olhava pra ela desconfiado, arredio. Levou um tempo, mas ele logo estava contando e recontando seus dedinhos miúdos, em silêncio, sorumbático.
Edgar chorou. Passava tanto tempo perto dela, queria falar com ela, queria vê-la, queria cuidar dela o tempo inteiro, selvagem, feroz, protetor.
Não sabíamos, à época, mas era quase como se ele soubesse.
São idênticos. Mesmo rosto, mesmo nariz, mesma boca, mesmos olhos. Riem igual, falam igual, dormem igual.
Aos poucos, ele foi tomando pra si o que já sabia que era seu.
E Pedro foi passando ao cargo de tio que traz presentes no Natal e no aniversário.
Pedro nunca se casou.
Nunca falamos sobre o assunto.
Ele saiu com outras mulheres, lá atrás. Eu nunca me senti no direito de impor limites.
Aos poucos, ele pareceu se resignar.
Não falamos sobre filhos, sobre casamento. Apenas sobre o hoje, o agora, grudo em seu corpo numa prece pra que ele seja feliz.
Pra que ele esteja feliz.
Edgar quer mais um filho.
Fantasiamos, antes de dormir, sobre um bebê novo, uma casa maior, talvez outro gato.
Seria bom.
Talvez.
Abraço meu marido no escuro, e ele me diz que me ama. Que coisa boa de se ouvir, e de dizer.
Estou velha.
Penteio os cabelos escuros da minha filha, e ela me pergunta se eu estou apaixonada.
Digo que sim.
"Pelo meu pai?"
Reflito, por um instante, antes de responder.
"Também", eu respondo.
E parece mais do que suficiente, ela acena com a cabeça.
Queria que essa história tivesse um fim, uma moral.
Queria entender o que ela significa.
Pra mim, pra nós.
Mas eu acho que a escrevi justamente porque ela não tem. Porque eu não quero que tenha.
Porque eu acredito - ou quero acreditar - que nem tudo na vida precisa fazer sentido, ter explicação, seguir um padrão.
Só isso, mais nada.
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