48x16 Recorrência - parte 1

 

Imagem: TingTing Huang

(Caro leito, peço desculpas pela confusão de tempos verbais. É que eu também estou confusa)

Ela está sentada em uma mesa, no canto do salão. Sozinha, descalça, mexendo no celular. 

Ele, com um drink na mão (o sexto, ou sétimo, ou décimo), caminha até ela, atravessando a pista de dança como se atraído por um imã. 

- Tudo bem? - ele grita, por cima da música. 
Ela acena afirmativamente e sorri. Ele se senta ao lado dela. 

- Cadê o Antônio? - pergunta, sobre o noivo dela.
- Ele foi embora. 'Tava cansado. 

A música muda e o grupo na pista de dança grita, entusiasmado. Os noivos iniciam passos estranhos, descoordenados, seguidos por todos os outros convidados. O olhar dele encontra o de Kamila, e ela cai na risada e continua dançando. 

Talvez ele a peça em casamento. Não hoje, não aqui. Talvez no mês que vem, ou no dia dos namorados. Talvez seja a hora. Ela está pronta, ele acha. Ele está pronto, ele acha. Toma um gole de gim, sente a bebida arder. Olha para Maria. 

Ela está olhando para os convidados-dançarinos, sem olhar pra eles. Ela sempre fez isso. Olhar sem realmente olhar. Como se ela existisse em dois lugares, dois tempos, dois universos. 
Seus cabelos estavam diferentes, mais longos e escuros, cobrindo parte do rosto dela. 
Ela usava um vestido de uma cor inominada, algo no espectro dos azuis, longo e justo. 
Poucos adornos, brincos dourados, um colar fino, discreto e o anel de noivado na mão direita, grande, enorme e, ao mesmo tempo, minúsculo e delicado, as pedrinhas reluzindo contra a pele negra. Parecia cansada. 

- Com quem você vai embora?
- Morgana, ela respondeu, sorrindo. 

Morgana era uma amiga em comum, vista pela última vez se atracando com um dos padrinhos no caminho do banheiro masculino. 

- Boa sorte, ele desejou. 
Ela riu. 
- Vou precisar mesmo. 

Considerou voltar para a pista de dança, mas não conseguiu. Não conseguia se levantar. Estava preso, colado naquela posição, pesado feito chumbo. Mais bêbado do que previra, provavelmente. 
Tentou se concentrar em levantar e quase derrubou a própria bebida. 
- Você tá bêbado? - ela perguntou
- Um pouco, mentiu. 
Ela pegou água de uma jarra em cima da mesa e entregou um copo cheio a ele. 
Ele bebeu alguns goles. 

O cabelo dela fazia curvas, ondas, brilhando contra as luzes. 
Ela não gostava de ser tocada sem permissão. Ele sabia. Mas ele realmente queria tocar o cabelo dela. Ou o pedaço de ombro nu que surgia por debaixo dele. 
Talvez isso o ajudasse a parar de pensar. 
Pensou em dizer a ela que só conseguia sonhar quando ela estava por perto. Sonhos ruins, longos, labirintos ou um sonho, recorrente, no qual ele procurava por ela, mas ela já tinha ido embora. 
Quando ela ia embora da cidade, ele não sonhava. Sonos sem sonhos alternavam-se com insônia, e ele acordava no meio da noite com Kamila abraçada ao seu corpo firmemente, como se ele é quem fosse desaparecer, fugir, sumir.
Nessas noites, sentia uma angústia visceral, como se a sua vida estivesse prestes a acabar, ou como se o tempo nunca mais fosse voltar a passar. 

Pensou em contar isso a ela, mas desistiu. Ficou pensando em relógios e remédios, e no meio desses pensamentos, sua mão tomou vida própria e tocou no cabelo dela. 

Ela não se afastou ou encolheu. Olhou pra ele e sorriu.
- Quer mais água?, ela disse, chegando perto para que ele ouvisse. 
Ele fez que não com a cabeça e recolheu a mão. 
- Eu gosto --- do seu cabelo assim. 
- Obrigada. 
- E eu gosto de você, ele disse, como só um bêbado diria. 
- Eu sei! Também te amo - ela sorriu, um sorriso sincero, grandão. 

17 anos de amizade contidos e confusos, imersos em -
submersos em um oceano de possibilidades. 
E ele estava bêbado e, mais do que isso, estava exausto. 
- Eu te amo - ele disse, sério, sentindo o gosto das sílabas, de álcool, açúcar e resignação. Era a primeira vez que ele dizia em voz alta. Sentiu-se, ao mesmo tempo, sufocar e aliviar-se de toda a tensão. Quis gritar e chorar. Olhou pra ela. 
- Sim, eu também! - ela riu. 

Ah. Talvez a coisa certa seja dar um passo pra trás. O passo, bater em retirada, dar risada, deixar que as três palavras ditas caiam no chão e virem fumaça, só palavras de um bêbado. 
Mas não, é tempo, e ele sente o coração explodindo, e ele quer quebrar a maldição e voltar a sonhar, então
- Não, ele diz, eu te amo, ele repete, delineando as palavras com um pouco de desejo e um tanto de dor. 
E espera um milhão de anos até que ela diga, bem perto do seu ouvido. 
- Eu sei. Só não sabia que você também sabia.

Eles se olham nos olhos e se veem e se reconhecem e
Nicholas, o noivo, se aproxima gritando e dançando:
- Vocês estão passando mal? 
E, antes que ele possa responder que ele precisa desaparecer, que todo mundo precisa sumir, que ele precisa entender - 
Ela se levanta. 
- Vou pegar mais água pra ele, diz. 

Ele tenta se levantar e ir junto, ele precisa entender o que ela quis dizer, e se levanta, mas suas pernas pesam 3 toneladas e o mundo todo gira. Ele vomita e, depois, tudo desliga. 

48x15 Hollow Woman

 

Imagem: Ting Ting Huang

I

É assim que o mundo acaba. 
É assim que o mundo acaba. 

Eu sinto

Sentada no campo de batalha silencioso, depois que a guerra termina
a última pessoa a ir embora depois de um funeral
quem apaga as luzes
o chaveiro depois que uma chave se perde. 

Durmo cedo, e tarde, sono longo e sem sonhos, dessa vez. 
Um espírito sussurra nos meus ouvidos surdos, secos, ocos. Espíritos sem formas, com cheiro de especiarias, 
eles contam histórias sem palavras, sons puros que um dia ouvi, e que já não ouço. 
De pé no penhasco, me recordo do seu canto de guerra, e não pulo. 
Eu sei, agora, eu vivo com os pés no presente, passado e futuro, feito um oráculo, e eu sei, agora, que não devo temer e que não devo pular e que não devo. 

Fantasmas sonolentos do passado me tentam, mas eu não pulo, 
estou oca. 
Oca e impermeável, permanecerei oca, por ora. 

II

Você me chama, me convoca das profundezas do reino dos sonhos e da morte e do sono. E seu chamado inaudível me afeta como um apito afeta um cão e eu me ponho em guarda. 

Mulheres cantam, as damas do lago, e eu não ouço, eu não sei, só sei que preciso seguir em frente, não posso parar, até o final. 

Sempre em frente, ecoam as palavras em minha mente. 

III

Caminho só, e não deveria, eu não preciso, mas eu quero. 
Silêncio, e um pouco mais de silêncio. 
Pra além da ausência do verbal, eu preciso me esvaziar do cansaço provocado pelo não dito. 
O franzir da testa, o muxoxo, ombros eretos e caídos, o toque e o abraço. 

IV 

Invisível. 
Evito tantos olhares que, aos poucos, deixam de me ver. 
Ou sou eu quem deixo de vê-los?
São cegos, estou cega?
É nesse ponto de encontro final que abordo a multidão sem pedir socorro, e eles passam reto ou sou eu quem os atravessa sem tocá-los. 
Todos tão vazios e surdos quanto eu, impermeáveis, numa busca igualmente vazia por algo que posso preencher. 

V

E aqui cai o pano. 
Encontro-o no meio do nada, o último segundo, no clarão, com direito a uma única microexpressão, com direito a escolha, milhões de opções pra mostrar o que eu preciso dizer, demonstrar, eu preciso te contar, antes que você não possa mais ver ou ouvir, porque é aqui que o mundo acaba. Penso em gritar, quero gritar, gostaria de gritar, devo gritar, te vejo aqui e agora

nesse ponto exato e único do espaço tempo, um clarão ilumina nossos rostos pela última vez, quero gritar, vou gritar, mas deixo escapar um (único, rápido e baixo)

suspiro. 


48x14 (Un)desirable bonds

 

Imagem: TingTingHuang

Onde você 

MORA

VIVE

SE ESCONDE

Tenho essa coisa, digo a Vermund. 
Essa coisa que não sei o que é. 
Arranho a superfície da coisa, mostro a ele:

- Esta é a coisa

- Eis a coisa

Ele assente com a cabeça e franze a testa, analisa; não conclui nada. 

A coisa atrai olhares, chama a atenção. 
A coisa. 

Um a um, eles se aproximam, analíticos, simpáticos, amorosos, silenciosos ou não. 
A coisa é pesada, medida, avaliada. 

Depois, eles se enfileiram, os grandes especialistas do nosso tempo, especialistas em coisas que não são exatamente A coisa, e me explicam, um a um, suas teorias sobre 

A COISA. 

Ouço alguns, os primeiros, com atenção, depois me desligo. 

Depois de dezenas, talvez centenas de opiniões, não consigo mais ouvir. 
Não consigo, estou cansada de conclusões, preciso ouvir inconclusões. 

Exijo, demando que me digam
"Eu não sei". 

Mas todos eles sabem demais, sabem tanto que eu não posso, não consigo, não quero mais saber sobre

A COISA.

48x13 Omni-man or how God created His favorite son

 

Imagem: TingTing Huang

12, como os apóstolos, é seu número da sorte. 

Deus, o todo-poderoso, é um homem baixinho, bigode cheio. Pela manhã, ele nos inspeciona, um por um. 

Ao primeiro som da Sua voz, me ponho alerta, mesmo antes que ele me chame pelo nome: Lilith. 

12 filhos, eu sou a quarta. nem a primeira, nem a última. 

4. O número mais irrelevante da dúzia, às vezes acho. 

Diariamente, ele nos inspeciona, olha os dentes, pesa, mede, critica. 
Pra mim, nada. 
Nunca diz nada. Nem bom, nem ruim. Nada. 
Ele me inspeciona, sem transparecer emoção alguma e, às vezes, sinto que vou ficando cada dia mais invisível. Eu poderia desaparecer e Ele nem notaria. 

Questiona Adão, o primogênito, seu rei ariano, fazedor de todas as coisas, sempre pronto a serví-Lo. À bela Eva ele não diz nada. Ela não diz nada. Eu me pergunto se ela se importa. 

E, então, Lahai-Roi e eu, Lilu, por quem passa direto.  

Molech, que recebe as crianças sacrificadas nos altares com doces e canções. 

Iblis, a rebelde, Mefistófeles, Oni, Vanth, Marid...

E ele se detém e analisa cada detalhe do seu favorito, Morax. O Omni-man. 

Pesa, mede, murmura elogios, e briga e grita. E ele: nada. 

Deus o isola e diz coisas e segredos e palavras mágicas enquanto trabalhamos na Sua construção sem fim. 

(A Construção Sem Fim: não sabemos o que é. Todos os dias, Deus distribui tarefas e nós as realizamos, sem questionar, sem reclamar (muito))

Um dia:

Deus entra, e pesa e mede e olha os dentes.

Na ordem, eu sou a quarta, o número mais desimportante, eu diria. 

Distribui tarefas e a minha é tão desinteressante quanto eu, mas a realizo, em silêncio. 

Ao chegar em seu favorito, o Omni-man, pela primeira vez em 3 eternidades, ele diz: NÃO. 

Prendemos a respiração, ar em suspenso, sinto medo e sinto uma tensão física em antecipação à demonstração da Grande Fúria de Deus, mas

ela não vem. 

Feito criança, ele grita, briga e xinga. 
Omni-man, sem expressão, a tudo responde com essa palavra minúscula cujo significado mal conheço: "não".

Por fim, Deus sai da sala. 

Pra nunca mais voltar. 

Early Cuts: Little giant (ou Estevão e as conversas do dia)

 

Imagem: TingTing Huang

Estevão tem o dobro do meu tamanho, eu penso. Poderia esmagar minha cabeça com as mãos, eu sei, sem muito esforço. 

Mesmo assim, caminhamos, até o sol nascer, perdidos, sem saber onde termina a rua imensa. 
Silêncio e ruído coexistem, eu caminho rápido - porque tenho medo - e ele também - porque está feliz. 

Estevão me conta, em segredo, na língua dos gigantes, que vai ficar bom. 

Não acredito, e retruco, na língua dos robôs, que tal coisa é altamente improvável - estatisticamente falando. 

Esquina a esquina, quadro a quadro, ele me conta os segredos dos homens e mulheres, e dos pigmeus e dos fantasmas ao redor da mesa. 
Conta sobre a grande tenda, os mistérios da penumbra e da Terra de Gigantes, sobre crescer numa família de pigmeus. 

Eu não digo nada, só penso e penso. 

E ele, corajoso, gigantesco, me faz sombra pra que eu possa pensar, planeja aventura e grandes buscas, e eu juro que penso em ser assim também. 

48x12 Mom & Dad II

 

Imagem: TingTing Huang

Tá tudo ao contrário, tudo errado. 

Desmonto e me remonto, peça por peça, buscando o defeito que você não me diz qual é. 

Troco tantas peças que nem me reconheço mais. 

Navio de Teseu, eu cruzei todo esse estreito pra te encontrar. 
E você nem sabe quem eu sou. 
Percebo, também já não sei mais. 

Não consigo mais sentir o gosto das laranjas, de peixe. 

E não consigo chorar. 

Consigo guardar segredos e mágoas como ninguém. Não me lembro mais da história, ou do seu cheiro. Mas me lembro do nome do segurança de Getúlio, mas me lembro dos nomes dos dentes que roubei. 

Só consigo me sentir bem quando estou sendo útil. 

Desmonto e monto, até não sobrar mais nenhum resquício seu, do que é humano, do que dói, quero ser toda Dela, toda ela, e não quero mais ser ninguém, de ninguém. 

Desmonto, e remonto, angustiada, até virar uma coisa - essa coisa - disforme, metálica, inorgânica, 
o monstro de Frankenstein que vocês teimam em recriar. 

Sem nome, sem nada de meu, e eu não quero mais. 
Eu não quero mais.
(o quê?)

Eu não quero mais. 

Early Cuts: 90 dias no deserto

 

Imagem: TingTing Huang

Foi conduzido ao deserto por 3 homens uniformizados. Acordaram-no no meio da noite, sem muitas explicações, para ser posto a prova pelo grande espírito maligno. 

Durante 90 dias, ele jejuou, involuntariamente. 

Depois, o craving. 

O tentador: levou-o ao ponto mais alto do templo. 

48x11 Blip

 

Imagem: TingTing Huang

Se você quiser, desapareço. 

Num piscar de olhos, estalar de dedos.

Sumo. 

Pra sempre, não volto mais, te deixo só pra encarar a tragédia de existir sozinho e não ter a quem culpar. 

Desapareço no meio da noite, levando porta retratos, cabides, minhas calcinhas e as suas memórias de nós dois. 

Esvazio a geladeira, os vestígios de mim, excluo meu perfil no streaming e as nossas fotos na beira do lago. 

É só desejar com vontade que, amanhã de manhã, eu já não lavo a louça do café, nem levo as crianças pra escola. 

Amanhã, bem cedo, quando você desejar, prometo que vai acordar só. 

E eu vou acordar 

livre. 

48x10 To believe in nothing at all

 

Imagem: TingTing Huang

Falo, e não digo nada. 

Tiro um tempo para refletir sobre as coisas passadas e presentes e futuras. 

Arranco crostas de feridas secas, pedaços de cabelo e pelos, belisco e cutuco a pele, e queimo os punhos com cigarros acesos. 

Cubro a boca e jorram coisas, cobras, lagartos e não me assusto, eu sei que não existem. 

Lembro de coisas confusas, o demônio e sua orelha, olhos cor de lilás, lavanda e tulipas recém cortadas, dentes de dragão sepultados na lama, heróis que voam em cavalos alados, a hostilidade de uma besta presa no labirinto, eu penso e penso e não me lembro se isso é meu ou se é do outro. 

Não quero mais o que não me pertence. 

Early Cuts: The Birthday Blues

 

Imagem: TingTing Huang


30. A idade do sucesso. 

3 meses antes, ou depois. 

Olho o espelho e impenso, rechaço a ideia de quem sou eu. 

30 anos e, aos 9, eu quero ser tanto, eu quero ser mais, eu queria não ser eu. 

2 semanas, um dia mais, um ano de vida (a menos). 

Que dia terrível pra se ter nascido, mês agourento e sujo. 

Não quero bolo, mas quero. Quero significado, significar, da meia noite às 23h59, eu quero explodir em fogos e queimar feito uma vela no escuro quente, sufocante. 

Meu Deus, eu quero morrer, e não morro. E, a cada segundo que passa, parece mágica, quero morrer mais e mais e sinto medo de morrer com a mesma intensidade. 

Brutal, duro. 

Guardo um segredo que só posso contar, quero dizer, talvez só eu, 
talvez nem eu saiba. 

Sinto que desejo algo, ou preciso desejar ou quero desejar e isso por si só já configura em desejo. 

Preciso acordar, mas não quero, mas e se

E se 30 for mesmo a idade -

48x09 Sharp Objects

 

Imagem: TingTing Huang

Ele desperta, no meio da noite (sim, ele também) e pensa, com calma e cuidado sobre a possibilidade de -

Feito um jorro de água, inicialmente fria, e depois morna, ele sente que é certo.

Lava o rosto e olha-se no espelho, toca o vidro. Gelado, ingênuo. 

E não se reconhece mais. 

Está cansado, cansou-se, da máscara, da farsa, da inverdade que pesa em casa passo e expressão dita ou não dita. 

Acendem-se as luzes, lá fora, ou amanheceu, e seus punhos continuam em riste, já não dorme, não come. 

Tem coisas, ele se lembra, que não tem mesmo jeito. 

Toma 01, 02 cps e mastiga, com força, até sentir o amargor, sob o olhar atento da esposa. Tão ansiosa, tão querida, tão (tola? crédula?). 

Respira fundo e força um sorriso, só mais um, ou outro, sentindo cada músculo rijo e dolorido, uma máscara aterradora. 

Pergunta-se se é possível mesmo viver dessa forma mais uns 30 ou 40 anos. Só mais um pouco, sem que ninguém saiba. 

A ideia causa taquicardia. Pensa nas noites insones e no medo. 
O medo é o pior. 

Engole comida quente sem sentir o gosto, sem prazer. Mastiga quantas vezes for preciso até engolir os pedacinhos. 

Mastiga. E sente medo. Mastiga. E sente medo. 

Medo que não passa nunca. 

Mastiga comprimidos. 
E sente medo. 

Ele só quer não sentir mais medo. 
As portas se abrem e fecham, e fecham, e fecham, até que não se abrem mais. 

Vira a chave na porta e, quando só, uma voz grita:

"Vai!"
"Coragem!"

Ouve baterem à porta, e sabe que o tempo urge, o corpo urge. 

Olha ao redor e se vê no espelho, aos 20 anos, mal se reconhece. Deixa de ser homem e se torna, de novo, bicho. Pronto para matar. 

"Coragem!"
Tenta lembrar o lema do príncipe do livro de contos de fadas que possuía quando era criança. A divisa do príncipe aventureiro. 
"Coragem!"

E, num rompante, ele finalmente insipira, expira, sangra e deixa cair no chão 
o caco de vidro,
o sangue,
o medo, 

a vida. 

48x08 Terrores Noturnos

 

Imagem: TingTing Huang

Durante a aula, me vejo nua. 

Sempre atrasada, sempre correndo. Fujo de homens e sombras e serpentes, em círculos, presa, num labirinto em Atlântida, me afogo.

E, de novo, ressuscito, a caminho de uma aula para a qual me atraso, ou entro na sala errada, completamente nua. 

Feito Sísifo rolando a pedra, de novo e de novo, eu me afogo sem conseguir sair da água, sem nem ao menos entrar. E não me importo porque qualquer um desses pesadelos é melhor do que

Cassandra. 

Acordo, no meio da madrugada, apavorada. 
Sonhei que você morria. 
Mas sonhei,
ou previ?

Sou capaz de prever o futuro? 
Não era, mas isso era antes. Isso era ontem. 
Agora, talvez, eu seja. E se for? 
3h da manhã, escuridão total fora da janela. 

Mas posso ligar? Devo ligar? 
E dizer o quê?
E fazer o quê se a ligação não for atendida? 
Se não chega resposta?

Sinto um aperto no peito, não consigo dormir, caminho pelo labirinto, desesperada, em busca de respostas, fazendo preces até

Pouco antes do amanhecer, insone, me deparo com uma linha de lã vermelha, cor de sangue viva, cintilhante, que brilha mesmo no escuro. 
Sigo a linha, sem medo e ela me leva por corredores estreitos, claros, e escuros também, chão de grama e pedra. Eu a sigo pra fora da minha mente e saio já de manhã, só pra te encontrar, vivinha da silva, sã e salva. 


Fev/2024

48x07 Pride and joy

 

Imagem: TingTing Huang

Eu quero acreditar quando você diz, eu quero. 
Quero me sentir bem. 
Quero agradecer sinceramente. 
Quero respirar aliviada, 
quero a parte que falta.
Quero ser fácil de encontrar aconchego, quero palavras que me deem colo.
Quero fazer e sentir. 

Não só dor, amor também. 
Quero sentir amor. 

Quero dormir cedo, e acordar tarde. 
Em paz. 

Quero a parte que me cabe, minha herança, meu tesouro. 
Eu quero mais do que migalhas. 

E eu quero dizer isso em voz alta. 
E quero te ouvir responder que eu mereço mais
que eu sou mais
que eu sou bonita e importante e valente e inteligente
que eu estou bem
que vou me sair bem
que eu te faço feliz
e que tudo bem ser como eu sou
que tudo bem ser quem eu sou

Eu quero ouvir você dizer. 

E, mais ainda,
quero acreditar quando você diz. 

48x06 Conundrum

 

Imagem: TingTing Huang

Ele me perguntou se eu me lembrava.
Eu disse que sim, mas não é verdade. 
Eu não me lembro. 

Durmo e acordo sem entender ainda quem sou, onde estou, como cheguei aqui, pra onde vou. 

Escapam entre os meus dedos os fragmentos escorregadios das memórias, e eu às vezes pesco um ou outro me vazando pelas orelhas, como se fugissem em desespero. Eu as engulo em seco, feito Cronos, e processo todas de forma distorcida e tola. 

Todos os dias, ele fala. 

Mas eu não sei mais responder, eu não sei falar com você, eu só sei falar o que precisam ouvir. 

Penso em números ordenados em fila e nos meus sonhos aparecem apenas os rostos de desconhecidos. 

Já não compreendo meus desejos, mas eu sei que existem, eu sei que eu existo. 

Mas não posso provar. 
Eu sei. 
Eu me lembro de existir. 

Eu não me lembro de nada. 

Early Cuts: Bubble

 

Imagem: Ting TingHuang

Sinto como se fosse explodir. Como uma bolha feita de material rígido e frágil, ao mesmo tempo. 

Sinto como se fosse, mas não explodo, nada me fere o bastante. 

E, pasme, eu quero explodir. 

Entendo que a dor única e breve de explodir não pode ser pior do que o que estou sentindo nesse exato momento. 

A tensão, a sensação de que a minha pele está tensionando ao máximo, dolorida, no ponto de ruptura. 

Eu sou invencível ou, talvez, só muito irrelevante. 

Uma besta magnífica. 

Early Cuts: Older

 

Imagem: TingTing Huang

"E Jacó disse ao seu pai: 
Eu sou Esaú, teu primogênito"

O terrível. 

Ele se senta em sua gaiola dourada, no mesmo lugar, há 16 anos. 

Espera e calcula, planeja o sonho com a retomada do trono e sua glória.

Ele pinta e escreve. 

Delira, só, embriagado ou sóbrio. 

Conversa, ás vezes, com seus carcereiros, sem saber se são reais ou produtos de sua loucura. 

Está louco, o Rei Louco. Às vezes, acorda no meio da noite, com mede de que o seu irmão, finalmente tenha vindo ou mandado alguém matá-lo. 

Passa dias sem comer, por medo do veneno inodoro. 

Não toca em nada que venha de fora, não abre as tintas e nem toca nos pincéis, tudo é venenoso, tudo é imundo. 

Depois, melhora. E come. 

E chora, e chama pelo nome do irmão, e pede perdão por seus crimes, recita uma lista e clama pela morte rápida, come tudo, bebe as tintas e evacua sangue, sem morrer. 

Nem mesmo a morte o deseja. 

E nem ele sabe o que desejar.