27x01 Alodinia

Imagem: TingTing Huang

Manhã de sábado, bêbada de sono e vodka, meu telefone toca. Alex. Não atendo, volto pro meu sono de sonhos vívidos e tolos, mas o telefone toca e desperta e eu sei que não posso ficar o resto da vida nessa cama.
Tomo banho, corro pro Balaio, ressaca me furando a cabeça, Alex sentado na minha mesa, na mesa do nosso primeiro dia dos namorados, como se soubesse que me magoaria. E eu não duvido que saiba.
- O que você quer? despejo, á grisa de cumprimento. Ele me olha, por trás dos óculos escuros. Me pergunto se ele também está vendo o que vejo por trás dos meus, o mundo em chamas.
- Eu queria te ver.
Parece simples, mas nada é simples entre nós, por isso me sento e observo enquanto ele toma seu café com nome de mulher.
Sei que ele não me chamou pelo prazer da minha companhia. Ele quer me ver sangrar, sempre, então me preparo em silêncio, pra receber o primeiro golpe.
Não demora.
- Soube que seu namorado terminou com você.
- Hm.
- Isso explica o seu estado. Você parece lixo.

Não é mentira. Meus cabelos revoltos se emaranham e se contorcem, embaraçados, impenteáveis. Minhas roupas estão folgadas, andei doente, perdi peso. Não tenho dormido, olheiras enormes dominam meu rosto.
E eu me sinto um lixo.

- Eu fiquei me perguntando... O que houve: O que você fez dessa vez? Fodeu com a cabeça dele, claro, como você sempre faz. Deve ter feito tudo direitinho, planejado cada palavra, só pra depois agir do jeito de sempre e foder com tudo.
Não me aguento. Cansei de ficar me culpando. A merda de um relacionamento tem duas pessoas. Eu não vou carregar isso sozinha, obrigada, nem mesmo pra não discutir com um idiota como o Alex.
- Eu fodi tudo?? Eu fiz o que eu sabia fazer. Eu fiz até melhor do que esperavam de mim, o que é bem mais do que você já fez na sua...
- Você é uma filha da puta cínica, sabia? - ele me interrompe - Tem coragem de sair por aí agindo como se estivesse sofrendo, como se tivesse dado o seu melhor, quando nós dois sabemos que você não é capaz de amar ninguém.  Você é tão fodida que não consegue fazer isso. Só sabe ferrar com as pessoas. Com todo mundo que já sentiu qualquer coisa por você. E essa porra de fingir que está sofrendo pra escrever em algum caderno o quanto sua vida é infeliz. Você nem se importa. Você só faz isso porque se sente uma bosta. Não porque você gosta de alguém, porque fez as coisas. Você se sente uma bosta porque não consegue fazer isso. Nunca vai conseguir. Você é fodida. Só se aproxima das pessoas pra machucá-las.
Ele acende um cigarro, as mãos tremendo de raiva, o rosto manchado de vermelho, a mesma raiva de sempre que o faz desviar os olhos, querer me bater e me machucar, sabendo que não pode, ou que não consegue.
Pego um cigarro, acendo. Trago uma, duas vezes.
Odeio fumar, mas não importa. É um statement. Adequado.
Olho meus nós dos dedos, a rua vazia, os óculos de sol de Alex.
- Você está certo.
Ele olha pra mim, sem dizer nada.
Continuo:
- Eu nunca amei ninguém. Nunca vou. Não sou capaz. Isso que estou sentindo agora, essa dor, essa falta de qualquer coisa... É culpa. Vai passar logo.
Trago o cigarro, tenho um breve acesso de tosse tosco - falta de costume -, e ele me observa inexpressivo.
(Talvez ele tenha vindo aqui pra isso, pra me lembrar: Eu não sou capaz. A parte mais triste disso tudo é que ele não se importa. Isso não muda a forma como se sente. Um dia, eu vou criar coragem pra machucá-lo de novo, e vou dizer a ele a verdade, que isso que ele sente não é o que ele pensa que é. Que ele também têm arrastado um cavalo morto por aí, como eu tenho feito, e que seria tão melhor se ele enterrasse seus mortos.
Mas não é a hora ainda. Alex deixaria de ser Alex sem o gosto do meu sangue na boca. E, nesses tempos difíceis, não se pode dar ao luxo de ser feliz.)
Recuperada, me levanto e beijo o topo da sua cabeça.
- Obrigada por me lembrar. - sussurro.

Volto pra casa e deito na cama, sem vodka, sem nada, sentindo a dor até me convencer de que é só culpa.
Não pode ser outra coisa.
Eu não sou capaz de outra coisa.

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