29x13 The host

Imagem: TingTing Huang

Aviso: Este trecho, bem como os dois textos anteriores, foi escrito em 2013.

"Quem é parasita de quem, querido?
Quem rói pelas beiradas,
quem carrega as marcas dos dentes de quem?
Quem adoece?
Mas quem toma emprestado o corpo?
E de quem é a alma nele?"


Eu disse a uma amiga: "Isso não é amor, amor não dói, não é pra doer".
Mas eu não sei o que era, leio esse texto no canto de uma folha do meu caderno do cursinho,  passando quase despercebido, e sinto uma dorzinha, um incômodo. Um alívio.
Isso não é algo que uma pessoa feliz escreveria, uma pessoa que sabe o que está fazendo.
Eu não quero Otto de volta, eu não quero ninguém.
Não é uma dor nova, sempre dói, e dói muito.
E vira a gente pelo avesso, de um jeito que não se pode simplesmente desvirar.

Eu sobrevivi, Otto. Quero ir até a sua casa, bater na sua porta, te enfiar essa folha pela goela, gritar "Eu sobrevivi à nós, eu posso sobreviver a qualquer coisa", mas eu não poderia sobreviver a nós de novo. Olho pra essa folha e sinto uma coisa ruim, o estômago revirando, borboletas antigas ou náusea, nem sei.

O tempo passa e a gente esquece. Isso é bom, nos deixa capazes de viver de novo, de amar de novo. Mas eu não quero esquecer.
Você foi incrível, cuidou de mim na minha pior fase, de um jeito que eu nunca mais vou deixar ninguém cuidar, viu meus pesadelos, me ajudou a pentear o cabelo, me trouxe pra casa do hospital. Eu nunca nunca vou deixar de ser grata por isso.
Mas você partiu meu coração, e eu nem sabia que era possível que acontecesse de novo, de maneira tão brutal.
Sangrou tanto, doeu tanto, que eu prometi nunca mais chorar quando alguém fosse embora, e não chorei. Chorei por muitos motivos, mas não por esse, esse nunca mais.
Talvez seja fevereiro, talvez seja o cheiro dessa cidade, do meu apartamento, das minhas coisas, o gosto do chá, o gosto de chocolate branco da sua boca. Talvez seja o medo, a pressão, a vontade de fazer coisas que eu jurei pra você que não faria mais, o gosto dos cigarros que eu não sentia desde que você foi embora. Mas tudo têm voltado, como se eu estivesse recuperando a memória, como se você estivesse em todos os lugares.
Andei pensando sobre tudo o que está errado em mim, todas as coisas ruins que fiz pras pessoas de quem gostei. E eu quis que você estivesse aqui, pra me dizer que as pessoas são todas estragadas por uma razão ou outra, que eu não tô mais quebrada do que ninguém, que tem gente que entende,tem gente que não entende. Que você acha lindo, e deveras curioso, o motivo de eu escrever tantos números no corpo. Pra segurar minha mão quando eu estou mudando, dizer "oi" pra quem quer que eu seja, daquele seu jeito de quem sabe das coisas. Lembro de você dizendo que eu não deveria me envergonhar, "poucas pessoas tem universos dentro delas". Mas eu sinto vergonha, Otto. Me fizeram sentir vergonha, e medo, e sentir que eu era toda errada e descontrolada.
Doente.
Difícil demais de lidar.
Suja e pequena, do jeito que você me disse pra nunca me sentir.
Conseguiram me quebrar as pernas, e eu não sei se consigo me levantar.
Me fizeram sentir pequena em tantos sentidos, estúpida e cruel, e talvez eu seja.
A pior parte, é que talvez eu seja.

Eu queria você aqui, de novo.
Mas você foi embora.
"Você não me ama mais", você disse.
E eu disse mil coisas, fiquei com tanta raiva, tanto medo. Mas talvez eu não te amasse mais. O que não impediu que eu sofresse as dores intensas da morte de nós.
E eu entendo agora porque você foi embora.
Aquela coisa nos olhos, aquele beijo seco, o abraço solto.
Eu deveria ter ido também, mas não tenho e nunca terei a sua coragem.

Achei seu bilhete, entre as páginas do livro do Dickens. E senti tanta dor, depois de todos esses anos, vinda de um lugar que eu achava que nem existia, que eu tinha guardado tão fundo que eu achei que nunca mais fosse achar.
Mas você dá um jeito, você sempre dá um jeito.
Só que você foi embora.
Eu não te pedi que fosse, eu não queria que você fosse.

Então não volte.
Não me mande mensagens, nem sinais de fumaça, nem me espere no lugar de sempre, nem me deixe mensagens espalhadas por aí.

Eu sobrevivi à nós.
E foi a coisa mais difícil que eu já fiz.
Não me obrigue a fazer isso de novo.
Não volte.

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