Imagem: TingTing Huang
Quando criança, me disseram que, se você ouve alguém chamar seu nome sem que ninguém o tenha feito realmente, só pode ter sido ela.
Ouço a voz dela no vento que balança as folhas na terça de manhã e quando caminho sozinha no início das férias de verão.
Eu a vejo nas formas circulares, e ela me chama todos os dias, naqueles segundos preciosos nos quais o dormir se confunde com o acordar.
Ninguém fala sobre ela, ninguém liga para ela, e ela caminha, solitária, observando as pessoas em suas roupas desalinhadas, emocionada com a profusão de cores e com as gotas de alma que escorrem pelas pontas dos dedos.
Eu a conheci muitos anos atrás, no corredor estreito e escuro que levava ao quarto que eu dividia com meus pais quando criança. Ela - porque a minha é uma mulher - me olhou nos olhos e me pediu segredo, disse que nos encontraríamos de novo. Desapareceu, pra retornar muitas vezes mais.
Caminhamos juntas no labirinto que é a minha vida, de mãos dadas, incontáveis vezes. Ela era a mão segurando a faca de pão, o toque do telefone no meio da madrugada, a pessoa que amarrou meus cabelos quando eles caiam nos meus olhos e me impediam de fazer o que era preciso, a força me segurando quando eu precisava correr e pedir ajuda pra salvar a vida de Ophelia e quem me fez correr até a casa de Inga pra ver se ela ainda estava respirando. Ela foi a última a ver Felipe e quem me contou a história sobre um menino que chamava a mãe enquanto sua alma escorria pelas orelhas. Ela apagou as luzes e me cobriu durante a noite, muitas vezes. A certeza da existência dela já me tirou pela cama em algumas manhãs, e ela costumava me abraçar durante horas a fio, quando eu não conseguia chorar. Ela leu minhas primeiras histórias e me cantou canções de ninar.
Ela me pegou no colo e me contou coisas que eu não consigo colocar em palavras. Ela me fascina de tantas formas, e penteia meus cabelos, me diz quando devo escovar meus dentes, ela me coloca a caneta na mão quando não quero mais escrever e me explica coisas que eu não compreendo, eu não compreendo.
E eu andaria com ela por aí, indefinidamente. Às vezes, eu acordo no meio da noite e eu estou pronta. E eu sei o que há pra saber. Eu digo a ela, eu digo a ela todas as razões possíveis e explico que não tem volta, que todos os dias eu me despeço, que eu deixo a casa em ordem, as luzes apagadas e as contas pagas, esperando que ela me chame.
Mas ela me conhece há tempo demais. Ela me conhece desde antes, da época em que eu era pó, desde o momento em que meus átomos se encontraram, ou desde quando eu vagava pelo grande salão das almas. Então eu acordo no meio da noite, digo a ela que está tudo pronto, eu já posso ir, e ela responde que eu só posso ir quando arrumar meu quarto,
quando disser adeus,
quando jogar fora as folhas velhas,
escrever um livro,
fazer algo de útil,
ir ao show do Rubel,
terminar só mais esse semestre,
terminar de ler todos esses livros na estante ("você não quer saber o final daquela história?"),
as séries nessa lista,
descobrir o que acontece quando o vênus retrógrado acabar,
disser a Otto o que sinto.
E, assim, eu vou vivendo,
uma noite
e depois a outra,
depois uma semana,
um mês,
um ano
e o outro.
L. me diz que não sabe, não entende como é que passamos dos 20 anos.
Como eu passei dos 20 anos sem remédios.
E é simples, tremendamente simples:
eu só finjo que algo vai acontecer.
E eu preciso ficar pra ver.
A parte estranha e curiosa da vida é:
algo sempre acontece.
Bom ou ruim, mas eu sempre acabo satisfeita por ter ficado pra ver.
Aí eu me viro pra ela e digo
"só mais um pouquinho. Você pode voltar amanhã?"
E ela sorri daquele jeito de quem sabe exatamente quando voltar, sem precisar que eu diga, me cobre, me beija a testa e sai por aí, pra levar quem realmente precisa ir.
Quem tem a coragem que eu não tenho
e que espero nunca mais ter.
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