Imagem: TingTing Huang
Vida e morte, eu estou pronta?
Se o paciente me diz que sente dor, o que eu faço?
Que pílula eu escolho? É hora de pedir gasometria, seguir os critérios, fluxogramas, protocolos, diretrizes, ou de olhar nos olhos dele e conversar?
Mas nem tudo se resolve conversando, e eu sei disso, mas também não se resolvem com os punhos, então eu não sei resolver de outro jeito.
Pare, respire, qual é a dose? Qual é a maldita dose??
Eu tenho que saber?
O que é que eu tenho que saber?
Alguém me sussurra uma canção antiga sobre a Besta e eu paraliso na frente de um paciente imaginário, eu tô tentando ajudar, mas eu não fui realmente feita pra ajudar, ou fui?
As máquinas apitam, eu observo enquanto as pessoas se desesperam e eu me desespero, porque eu não sei o que fazer.
Eu sei outras coisas, o panteão greco-romano, ou partes dele, sei fazer estrogonofe de frango, eu sei os nomes dos perpétuos e o que acontece no final de "O clube mefisto", mas nada disso ajuda, nem os nomes dos presidentes do Brasil ou as principais obras de Clarice Lispector, o preparo correto de jello shots, eu posso recitar "Ismália" e cantar "Dog days are over", "Riptide", "Me cura".
Eu posso cantar, se isso for ajudar, te conto uma história, eu invento uma história, eu jogo tarô e descubro se você vive ou morre, mas eu não sei quanto de atropina eu uso pra te mandar de volta pra casa, intacto, eu não sei se primeiro vêm os corticóides ou a imunoglobulina, plasmaférese ou o que tem antes da intubação.
Eu sinto muito, mas eu não posso ajudar, não posso arriscar, não posso dizer a coisa errada, trocar o número na dose ou escolher um medicamento só porque é o único que conheço.
Eu não posso nem segurar a sua mão ou dizer que vai ficar tudo bem.
Essa parte o horóscopo não explica, ninguém me contou que eu teria que furar seu peito no lugar certo ou que você poderia ficar pior com minhas tentativas de te fazer melhorar.
E eu sei que parece que desisti, mas eu tô pensando, tô lutando com todas as informações que acumulei ao longo da vida, com os pronomes oblíquos e a resenha de um livro da Ana Miranda, matrizes e lentes, eu tô caçando números em desespero, listando contraindicações, eu tô procurando o ruído certo nos seus pulmões, o espaço perfeito entre as tuas costelas, eu tô orando pra todos os panteões, enquanto minha mão treme e treme, eu não paro de tremer, e você também treme, estertora, e eu tento pensar
eu tento pensar, no meio de todo aquele ruído,
eu tento pensar,
mas não sei se tô pronta,
não sei se algum dia estarei pronta.
O problema é que o teu corpo não se importa se tô pronta e a vida escorre pela tua boca, a máquina grita e os teus pulmões queimam, alguém me empurra e toma a frente, grita comigo e me pede uma posição, uma dose, uma ação
e é agora ou nunca
Pra você, não tem meio termo.
É agora ou nunca.
A máquina apita mais uma vez, me chamando à ação, me convocando pra lutar pela sua vida, pela minha vida, me pedindo uma bravura que eu não tenho ainda e eu quero sair correndo, eu quero sair correndo até que meus sapatos fiquem gastos, correr por dias a fio, sem parar, sem nunca olhar pra trás, jogar fora esse jaleco e encontrar outro rumo pra vida, eu tô com tanto medo, eu só quero sentir o vento nos cabelos, o sol no rosto e ter a vida que eu tinha antes disso tudo, eu não quero que ninguém dependa das minhas decisões, eu quero--
- A dose, doutora, a dose! Agora!
A língua desenrola, sozinha, sem que eu tenha tempo pra pensar: "1 a 2 mg/dose, de 10/10 min", que eu nem sei como sei, ou se sei, ou se confundi, ou se li errado, se você vive ou se morre.
Tô esperando a tua resposta, a resposta pras minhas orações, pras minhas dúvidas.
E eu poderia correr agora, sair pela porta e não voltar nunca mais, (é agora ou nunca)
mas eu fico.
Só mais um dia, só mais esse dia.
Eu preciso que você fique bem.
Mesmo que eu não fique.
Então eu não corro, eu espero.
Eu espero, e rezo pros deuses das paredes brancas, dos tubos e máscaras, os deuses do oxigênio e das seringas.
E espero, como toda e qualquer criança espera, toda e qualquer pessoa, porque, no fim dia,
no fim da aula,
no fim da vida,
diante da morte
eu sou só humana.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
0 comentários:
Postar um comentário