40x19 Bad Juju

Imagem: TingTing Huang

Bad Juju: any action that has a harmful or bad vibe to it.

- O que você disse?
Eu não ouvi.
Eu estava bêbada.
Ou não?

Tem alguma coisa errada,
eu acabei de tremer.

Me distraí olhando suas sobrancelhas,
eu simplesmente gosto delas,  eu gosto do jeito como você morde o lábio inferior,
eu gosto do jeito como você repara em tudo e eu tô perdida demais não reparando nada.

Bad juju, você diz a coisa certa, você faz todas as coisas erradas do jeito certo,
bad juju.

Eu tô dando risada tão alto que meus ouvidos explodem,
eu tô feliz.
Bad juju.
Então eu me viro pra você,
você mexe a boca e eu não sei se entendi direito,
mas você estragou tudo, você estragou tudo porque eu não te disse que podia dizer isso.

Bad juju.
Eu tô quebrando garrafas,
eu quebro garrafas porque tô confusa
porque não sei o que vai acontecer amanhã.
porque eu tô ansiosa,
porque eu tô zangada
e feliz.

Aí eu acordo, no meio da noite,
numa casa que não é minha
e você tá olhando pra mim
e eu não quero magoar ninguém,
eu quero dizer isso
mas eu tô te magoando se disser,
eu tô te magoando se não disser.
Bad juju.

Eu acho que me desapaixonei por você.
Isso é bom, isso é lindo,
isso é mágico.
Fell out of love.
Você diz boa sorte,
eu digo boa sorte,
mas o fim da minha frase se estende e caminha atrás de você.

Eu dou uma risada tão alta,
eu tô tão feliz
que isso tem que ser errado de alguma maneira.

Ou será que não?
Ou será que tá na hora de eu me importar um pouco menos com toda essa bagunça de regras e consequências e
saltar?

- You are bad juju, girl. - diz a voz na minha cabeça - Bad, bad juju.
Eu sei.

- Você quer fazer alguma coisa agora?
("You are bad juju, girl. Bad, bad juju")
- Não

Eu quero.
Eu realmente quero.
Eu quero retirar o que eu disse, vou ir pra casa e bater a cabeça na parede.
Umas 100 vezes.
Mas eu não retiro.

Porque eu ainda não sei o que isso quer dizer.
Eu não faço a menor ideia.
Só sei que é assim.
Só sei que sou assim

Bad, bad juju.

40x18 14

Imagem: TingTing Huang

Você fez de novo.
Eu tô ouvindo a sua história, palavra por palavra, e aí você diz essa coisa, essa coisa familiar que me faz pensar
"Here we go again".

E isso me assusta.

Eu não quero isso de novo.
Eu quero e não quero estar de novo em uma montanha russa, sentir frio na barriga, borboletas no estômago, eu quero segurar a sua mão, eu quero tocar suas sobrancelhas,
mas eu não quero te machucar.

Eu não posso ser essa pessoa.
Eu não posso ser quem vai te machucar dessa vez
e eu não sei se posso ser quem não vai.

Tenho medo das brigas que ainda não tivemos,
de que não valha a pena,
tenho medo da sutileza no final das suas frases e do jeito como é confortável passar a noite com você,
eu tenho medo da textura do seu rosto e da estranheza de um nós dois.

Eu gosto de mim.
eu gosto de só.
Do caos, eu não preciso de heróis,
eu não preciso de você,
eu posso passar sem isso.

Sem saber o gosto da sua boca,
sem me tornar uma história que você vai contar pra alguém em uma noite fria,
uma das pessoas que espero que uma garota um dia respeite e reverencie,
não com ciúmes, não pra se sentir insegura
pra pensar
uau, elas trouxeram você aqui.
Elas trouxeram você agora, assim, meu.

Eu me encosto no banco do carro, escuro,
tão escuro,
e eu não tenho certeza se vale a pena.

Talvez eu tenha medo de que seja bom,
que beijar você seja uma estrada sem volta,
talvez eu esteja com medo de admitir que finalmente segui em frente,
talvez eu esteja com mais medo de me machucar do que de te machucar,
talvez eu esteja com medo de quem eu me torno quando gosto de alguém

tantas possibilidades,
tantas razões lógicas pra ficar assustada
e a minha cabeça rebate todas com a sua voz, dizendo "Foda-se", do seu jeito extremamente infantil e bizarro.

Eu não sei o que fazer,
eu não quero ter que decidir sozinha,
não me deixe decidir sozinha.

Digo isso, mas tô com a impressão estranha:
já tá tudo decidido.
Você também acha isso?

40x17 Throwaway

Imagem: TingTing Huang

"Isso não é real. Nada disso é real. Você não é real. Eu não sou"

Estamos sentados, esperando, no centro do mundo.
O vento sopra as cortinas, fresco, cortando o dia quente e o silêncio da manhã, o sol ilumina o quarto apenas o bastante pra que possamos olhar um pro outro.
Estamos assustados, mas eu tô feliz aqui.
Vai acabar logo.
Estou ouvindo.
Os sons de risada, as vozes das pessoas.
Ele aperta a minha mão.
Tenho 36 anos.


Acordei cedo e fiz o café.
Era domingo.
Eu olhei para o jardim e pensei que, talvez, devesse aprender jardinagem.
Plantar flores e algumas ervas. Tomates. Definitivamente, tomates.
Ele poderia me ajudar, quando estivesse melhor.
Suspirei.
Provavelmente, seria mais um dos nossos projetos inacabados.

Sacudi a cabeça.
Eu deveria estar escrevendo.
Mas o dia estava tão bonito, parecia até um dia de mentira.
Mentira.
Todos aqueles dias eram de mentira, ele dizia.

Subi as escadas e fui até o quarto do bebê.
Ele dormia chupando o dedo, inocente, não sabia de nada sobre o que acontecia ao redor.
Movia as pernas como se sonhasse.
Com outras vidas, talvez.

Fui para o nosso quarto e as janelas já estavam abertas.
Você estava lá. Acordado, esperando, sempre esperando.
Sentado, quieto, magro, sujo, barbudo, despenteado, assustando nossos amigos e familiares, me assustando.
Você me olhou quando entrei e vi que estava envergonhado.
Eu te peguei no pulo, de novo, e nós dois sabemos, sem precisar dizer, que você está torcendo pra que tudo acabe.
- Você tomou seus remédios?
Você sacode a cabeça, não tomou. Não tem tomado.
- Você não vai tomar?
De novo, você sacode a cabeça. Suspiro e me sento na cama, de costas pra você.
- Você não pode tentar de novo?
- Tentar?
- Tentar. Tentar ser feliz. Éramos felizes. Ainda podemos ser.
- Não consigo. Não quando eu sei que nada disso é real, não quando eu sei que vai acabar a qualquer momento.
- Talvez não acabe. Talvez só acabe quando --
Desisto.
Já tivemos essa conversa.
Já argumentei tantas vezes. Sobre vida e morte.
Além disso, o médico já me disse para parar de dizer a palavra morte. Risco de suicídio, ele dissera. E, mesmo assim, contra as ordens médicas, contra toda a lógica, eu te trouxera pra casa, onde você podia delirar a vontade.

Olhei para o seu rosto e você continuava em silêncio, observando o sapato.
O maldito sapato.
Olhei pra ele também, considerando finalmente te internar, jogar aquela coisa maldita fora,
aí percebi que algo estava errado.
Algo estava muito errado.
Eu olhei à minha volta, meu estômago afundou, eu senti algo, um pressentimento, um foi como se estivesse sendo sugada pra fora de casa, como se minha vida estivesse desaparecendo aos poucos.
Eu pude ouvir um barulho desconhecido e familiar de pássaros, panelas, carros. Cheiro de canela. O barulho de portas abrindo e fechando, passos na escada.

Tentei me recuperar, mas a sensação não passava.
Não era real.
"Existe outro lugar, além do aqui e agora", você dissera.
Olhei pra você, assustada, e você me olhava, ansioso.

- O que acontece agora?
- Esperamos.

Eu me sentei ao seu lado, apertei sua mão e ficamos juntos, olhando.

Em algum momento, o bebê acordou, chorando,
e nenhum de nós se mexeu.
Ele chorou,
chorou,
chorou

e então, afinal,
silêncio.

Esperamos.

40x16 Paint it black

Imagem: TingTing Huang

Disse em voz alta a nossa senha secreta e esperei.
Mas você não veio, você nunca veio.

Estava com as malas prontas, paguei as contas, arrumei a casa e deixei bilhetes.

Acendi um cigarro, porque é o que eu faço quando não sei o que fazer. Eu nem fumo.

Eu estava sempre com medo.
Mil armas apontadas pra minha cabeça e eu  só conseguia pensar no que ia acontecer depois daquele agora.

Eu pedi sua ajuda, mais alto, mais alto, mais alto, mas você nunca veio, estava tarde, eu estava com frio, com medo do que acontecia no escuro.

Ouvi um ruído e os pelos da minha nuca se eriçaram.
Olhei na direção da noite escura e eu soube
ele estava lá, me esperando, me chamando, me cantando pra ele.

Eu não queria mais fazer aquilo.
Eu precisava que você viesse me salvar.
Mas você nunca veio.

Alguma coisa brilhou no escuro e ele me chamou, numa voz rouca, cantou meu nome, meu nome, e eu tentei resistir à vontade de correr até lá e me jogar na escuridão.

Gritei nosso código, repetidas vezes, na esperança de que você finalmente ouvisse, mas você nunca o fez.

Ninguém nunca veio, eu era de novo uma criança sentada de castigo no escuro, 1 2 3 4, esperando que alguém viesse me pegar no colo e me levar embora. Mas ninguém nunca veio.

Eu gritei até perder a voz, até aceitar que você nunca viria,
que ninguém viria.
Até aceitar que eu seria meu próprio herói.

Ele me chamou, do escuro, quente, vivo.
Eu já era adulta, então, adulta em um corpo de criança,
pronta pra matar ou morrer, sozinha no escuro.

Eu podia viver fugindo,
eu podia me render, de novo e de novo, deixar que ele me machucasse até não sobrar um pedaço intacto, até não sentir mais dor.
Eu podia deixar.
Eu podia continuar te chamando.
Então cortei minha língua, tirei minhas roupas e me joguei no escuro, que me acolheu como uma filha pródiga.

Eu me lembro de encontrá-lo na escuridão
ele emanava calor, medo, dor, confusão
e arranhava meu rosto,
partia meus ossos,
fazia meu sangue frio jorrar,

Eu me lembro do cheiro da madeira, da textura da escuridão, da maneira como ele chamou meu nome enquanto eu o rasgava em pedaços, com os dentes, com as unhas,
enquanto o acertava com pedras
enquanto cortava seu rosto.
Eu me lembro de tudo.

De cada palavra,
cada grito,
do exato momento em que você,
desesperado,
repetiu as palavras que eu passara séculos pronunciando,
nosso código secreto.

Era você.

Você estivera ali o tempo todo,
me chamando,
tentando me salvar.

Apalpei seu rosto úmido de sangue,
enquanto você repetia nosso código, feito uma prece.

Toquei seus cabelos, testa, olhos, nariz, boca, queixo, pescoço.
Você me chamava.
Você precisava de mim e eu estava ali por você.

Segurei sua cabeça, firmei seu corpo com com meu próprio peso e quebrei o seu pescoço,
com um movimento seco,
breve.


Não preciso mais de heróis.

40x15 Eritrofobia

Imagem: TingTing Huang

- Quando eu te conheci, achei que você não gostasse muito de mim haha - ela diz.

Eu não gosto de você.
E você provavelmente nunca vai saber.

Eu não sou boa em expressar sentimentos complexos.
Parece raiva, mas é só euforia. Parece amor, mas é tristeza. Parece desprezo, mas é amor. Parece carinho, mas é absolutamente nada.

De tanto cometer erros de expressão que levaram a erros grotescos de interpretação, parei de expressar sentimentos complexos.
Assim, desisti.
Guardei, no silêncio de mim, as palavras que eu nunca pude te dizer, as palavras que você nunca vai ouvir da minha boca.

Eu detesto muitas pessoas.
Pessoas demais pro meu próprio bem, e eu sofro mais com isso do que elas.
Pense bem:
Em alguns dias, eu me sento com a pessoa que detesto. Conversamos. Eu a ajudo, aconselho, eu faço o possível pra que ela fique satisfeita.
E isso me mata por dentro, me apodrece aos poucos, pedaço por pedaço, necrosa, e eu não digo nada.
Não porque sou falsa, eu não prometo a ela amizade eterna ou favores inestimáveis, não saímos juntas, não nos visitamos.

Mas então, por que não digo a ela
eu detesto você?

Porque é complexo.
E eu não expresso sentimentos complexos.

Aprendi cedo que expressar sentimentos é complicado.
É difícil voltar atrás.
É difícil prever as coisas, é difícil lidar com as consequências.
Sempre preferi esperar passar.

Passa raiva,
passa a paixonite,
passa tudo e eu fico,
em silêncio,
sentindo dor e tentando não deixar a mágoa me cortar demais,
tentando não sangrar na frente dos outros,
ou descontar nas pessoas erradas.

Mas é difícil.
Então eu tento mesmo ficar em silêncio,
vai passar
vai passar

Mas nem sempre passa.

E aí eu tenho que dizer.
Eu simplesmente tenho que dizer,
porque só dizer pode consertar as coisas, certo?

Então eu digo.

Depois de muita hesitação, depois de sangrar centenas de vezes,
sempre na frente de outras pessoas,
eu tô dizendo.
Eu tô dizendo pra consertar as coisas, não pra quebrar de vez.

Mas nunca sai como eu gostaria.
Se eu tô tentando consertar,
você me ouve como se eu tivesse dito que acabou, eu não quero mais ouvir a sua voz, eu não quero mais te ver nos corredores ou estar no mesmo ambiente que você.
Você foge, escorre entre os meus dedos e
eu não quero mais dizer nada.

Eu não vou mais dizer nada.

Nem pra você,
nem pra ela.

- Quando eu te conheci, achei que você não gostasse muito de mim haha - ela diz.
- Ah, é? - sacudo a cabeça, rio.

Mudo de assunto.

40x14 Fora de contexto

Imagem: TingTing Huang

Caro Pégaso,
escrevo aqui porque não posso te ligar pra dizer o que tô pensando.

Quero dizer, até posso,
você até gostaria que eu o fizesse, mas não o farei.
Porque não faria sentido,
e porque escrevo mais pra mim do que pra você.

Uma amiga me perguntou
"Como foi que você conseguiu superá-lo?"
E eu não soube responder na hora, mas pensei um pouco e agora sei a resposta.

Eu consegui superar você quando percebi que não é assim que funciona.
Não se apagam as pessoas das nossas memórias como se nunca tivessem existido, eu jamais arrancar do meu corpo a memória do seu cheiro e do seu sorriso.
E eu também não quero mais.

Porque você esteve lá por mim,
você me ajudou, ficou comigo em uma época em que eu não podia ficar sozinha, em que ninguém deveria ficar só.
E eu sou muito grata por isso, mais ainda quando penso que, se você não estivesse lá,
eu teria ficado só.

E eu não consigo nem imaginar o que teria acontecido.

Odiar você não era a saída, nunca foi, embora tenha sido satisfatório, por um tempo.
Parte do processo.
Acho que eu precisava parar de te ver menos como o cavaleiro da armadura brilhante,
que esteve lá quando eu precisei, capaz de entender tudo e todas as coisas,
e mais como humano, uma pessoa que cometeu erros,
que comete erros, que vai cometer erros.
Não com a intenção de me magoar ou de se magoar, só porque as pessoas erram.

Eu não vou te defender,
eu não vou me defender.
Pessoas cometem erros.

Quando eu tento pensar, analisar certas coisas,
até percebo que muitos erros foram cometidos com as melhores intenções
e isso me faz sorrir, me faz pensar que, se a gente tivesse sido um pouco mais egoísta,
talvez as coisas tivessem sido mais bem sucedidas haha.

Outro dia, uma pessoa se referiu a um rapaz de quem gosto muito da seguinte forma "Ele é o novo x (você, no caso)?"
E isso me fez pensar que pessoas não são substituíveis.
Engraçado, porque eu sempre acreditei nisso.
Mas não agora, não posso simplesmente pegar outro de você e colocar no lugar porque não existem dois de você (Graças a Deus haha), assim como não existem duas de mim.
Não, existem pessoas por aí que vão nos fazer sentir muito melhor, ou muito pior.
E nenhuma delas vai tomar o lugar uma da outra.
Nenhuma delas vai nos fazer esquecer o que aconteceu.

E a melhor parte disso tudo é que eu aprendi muito.
E eu não quero esquecer nada do que eu aprendi.
Sobre moedas,
sobre mães,
famílias,
segredos,
luzes,
sexo,
literatura,
música,
comida,
sobre as costas das pessoas,
sobre o meu próprio valor,
política,
a tristeza intrínseca das pessoas,
e muitas muitas outras coisas.

Obrigada.

Espero que você esteja ok,
sinceramente.

Atenciosamente,
B.

40x13 Aquela coisa

Imagem: TingTing Huang

Eu estava andando na rua outro dia, desprotegida, sem casaco ou guarda-chuvas, usando minhas botas favoritas
e você passou por mim e me fez sentir aquela coisa.

O que é aquela coisa?

Ah, você sabe, aquela coisa, aquele conjunto de sinais e sintomas que não fazem sentido nenhum, e que você só percebe de qual síndrome fazem parte quando é tarde demais e você já não pode fazer tratamento ambulatorial.

Eu estava sentada, comendo qualquer coisa e aí eu olhei nos seus olhos e senti aquela coisa.
Aí eu sacudi a cabeça e dei aquela risada. É, aquela risada patognomônica, mas eu simplesmente fingi que não aconteceu.

Também teve aquele outro dia, sabe?
Eu fiquei sentada por alguns segundos a mais,
depois olhei pra trás quando você foi embora.

Sabe aquela coisa, aquela que me deixa com um bom humor irritante,
aquela coisa que me fez voltar a me preocupar com o estado caótico do meu cabelo, do meu quarto, do meu rosto, dos meus pensamentos, da minha vida inteira?

Sabe aquela coisa que me faz fechar a porta na sua cara sempre que parece que você vai entrar,
mas aí você de alguma forma coloca o pé pra me impedir de fechar, feito um desenho animado,
e entra e senta sem ser convidado,
deita no sofá, come toda a minha comida, enquanto eu ajeito os óculos, embasbacada, desconcertada, assustada, insegura e incerta sobre o que acabou de acontecer. Sobre o que não acabou de acontecer.

Aquela coisa que faz com que certas coisas comecem a acontecer
e tudo me parece parte de uma encenação bizarra
de uma peça que eu já fiz antes,
mas que está sendo remontada por outras pessoas.

Aquela coisa que me faz dizer umas frases ensaiadas,
umas frases que eu já até sei de cor,
e que eu não quero mais usar.
"Eu quero um texto novo, vamos pelo menos fazer isso diferente, eu não fico em casa sentada esperando,
eu te chamo pra sair,
e a gente vê o que acontece", penso, mas não faço nada, eu me sento em casa, tomo medicação pra ver se aquela coisa passa.

Mas eu acordo e aquela coisa me faz sentir vontade de falar com você,
e eu, horrorizada,
desligo o celular e vou ler um livro.
Descubro uma música nova e me pergunto---

Eu odeio aquela coisa,
aquela cosia viciante
a sensação de acelerar o carro quando você vai passar pelas tesourinhas, só pra sentir um frio na barriga,
querer te ver
não querer te ver
as cores e luzes, músicas, livros, séries
eu adoro aquela coisa

E é, eu sei,
aquela coisa é coisa minha,
começa intensa, passa rápido feito um piscar de olhos,
e eu não posso bagunçar as coisas por causa de um piscar de olhos.
Então, aquela coisa vai ter que ficar aqui, sem nome, sem definição precisa.

Certo?
Quero dizer, é a coisa certa a se fazer, não?
Com aquela coisa?

Aquela coisa, sabe?
Se não souber, tudo bem,
mas você tem que saber,
porque se você não souber

eu não quero saber sozinha.

40x12 Tennessee Honey

Imagem: TingTing Huang

Cheguei em casa, tranquei as portas, abri as janelas, cobertas pelas cortinas que te impedem de entrar.
Respirei fundo.
Livre.

Coloco o colchão no chão, eu já posso sentí-la acordando, se espreguiçando dentro de mim, como quem dormiu por anos e agora sente fome, uma fome que não cessa, de contato humano, de ouvir a própria voz, tocar os próprios cabelos.

Abro e fecho as mãos, tentando entender o movimento desse corpo que não é mais só meu,
onde eu não vivo mais só,
eu nunca estive só.

Tem um vento sutil soprando, quente, e eu danço ao som dele, passos lentos, e depois rápidos demais pra parar.

Meu corpo se move, ocupa espaços, faz uma dança bizarra e ilógica, elétrica, enquanto meu coração bate rápido, sem saber
que agora tudo pode acontecer

Eu me deito no chão e respiro,
deixando o ar entrar e sair dos pulmões,
eu sinto as pernas dela se esticarem dentro das minhas,
seu rosto tomando forma por debaixo da minha pele
enquanto eu deixo de ser eu.

Sem paixões ou sonhos,
personalidade
ou lucidez,
eu vou me apagando aos pouquinhos,
sem querer outra coisa.

Ela segura meu coração devagarinho, contém meus pulmões
e então aperta e solta,
aperta e solta
devagarinho
até que eles aprendam e repitam
até que meu coração bombeie o sangue todo do meu corpo no ritmo da canção do vento,
até que minha respiração se torne uma música assoviada

E todo o meu corpo
desliga

E reinicia
Ela abre meus olhos, os olhos dela
sorri um sorriso que não é meu
e cantarola uma canção, mais antiga do que eu,
mais antiga do que todos que já conheci,
que me lembra um sonho que tive quando ainda nem existia

E só então, quando a canção chega ao fim,
ela se espreguiça, usando meus braços
e se encolhe feito uma bola
e dorme

pra que eu finalmente possa acordar.

40x11 Uma incansável tapeação

Imagem: TingTing Huang

Então, dia dos namorados.
Faltam exatamente 12 minutos pro final do meu 24º dia dos namorados nesse mundo maluco.

Eu não tenho namorado.
Eu não estou apaixonada por ninguém.
E isso é surpreendentemente ok.
Ok, só mais um desses dias em que eu acordo atrasada, levo mil anos pra pentear meu cabelo, passo horas em filas no mercado e em lojas, só porque o sistema caiu ou porque eu saí de casa meio tarde, eu faço meu próprio jantar, dou risada de algo que a minha irmã me diz.

Sei lá, eu tô feliz.
Feliz o bastante pra encher a barriga sem culpa, porque eu fiz esse frango assado maravilhoso,
pra dormir a tarde inteira,
falar com o melhor, pior e único ex-namorado do universo sobre nada,
assistir episódios de séries aleatórias,
dar risada das piadas terríveis do melhor amigo de arco-íris que se pode ter,
terminar um livro,
e não ficar obcecada com o fato de não ter feito algo que deveria ter feito.

Tô feliz e orgulhosa de mim mesma.
É, as coisas não estão saindo como eu gostaria.
Não tenho escrito nada relevante,
ou estudado tanto quanto gostaria,
ou sido a pessoa que gostaria de ser.
Mas eu tô me surpreendendo, de um jeito bom.

Tô surpresa com a força das minhas crenças,
com os movimentos que meu corpo sabe fazer,
e com as sensações que ele pode alcançar.
Surpresa com o final das histórias que eu nunca contei,
com as pessoas e suas histórias,
as cores do céu em uma tarde de domingo,
minha incapacidade de cantar no ritmo certo ou de me apaixonar,
com o fato de que, às vezes, pessoas são só pessoas,
músicas são só músicas,
e nem tudo o que eu escrevo aqui ou no papel está escrito em pedra.
Eu tô surpresa com o fato de que quebrar minhas regras pode não significar trair tudo em que acredito,
tô surpresa com a minha coragem de falar o que sinto.
Porra, eu tô falando o que sinto, quando eu sinto.

Tô surpresa com os meus cabelos se enrolando e desenrolando
formando nós que eu não consigo desembaraçar,
e com o fato de que isso me parece perfeitamente natural
bonito até
Tô surpresa com o fato de que eu até gosto de mim.

Não só da minha companhia, de me sentar na janela e ficar
gosto dos meus pensamentos,
da minha comida,
da maneira como eu digo "Pare, descanse",
e da minha própria proteção, dessas barreiras que eu criei, nem pra me trancar, nem pra deixar de fora quem eu amo,
só pra me proteger das coisas ruins da vida.

Gosto de tentar,
acertar ou errar.
Gosto de refletir antes de julgar (nem sempre é fácil, é difícil pra caralho),
gosto de ouvir a minha voz,
gosto dessa minha nova maturidade disfarçada,
de sair e me levar por aí, no meio da noite, sim sim sim
sem saber onde vai dar
do mistério no horóscopo,
gosto de desembaraçar meus cabelos no meio da noite, sem ter lugar pra ir,
sabendo que tudo é possível.

De fechar meus olhos antes de dormir e pensar
tem alguém por aí
e não pode ser qualquer pessoa, não é mais sobre gostos comuns, ou horóscopo ou destino ou declarações de amor
porque eu gosto de quem eu sou,
do meu rosto deveras estranho,
do meu jeito repelente de homens,
das coisas que eu digo e penso

E é, eu estou pronta,
pronta para passar de novo por essa tapeação que é estar apaixonada,
uma puta quantidade de dopamina solta,
mas não dá pra ser qualquer pessoa,
a qualquer momento.

E não é que eu queira ferrar com a espontaneidade da coisa,
é que não quero magoar ninguém e isso me parece importante,
o que eu quero me parece importante
e eu gosto dessa nova B.,
gosto de querer coisas
de querer pessoas,
de querer bem.

Então tudo bem, vai ficar tudo bem.
Eu desejo um dia dos namorados incrível pra todas as pessoas, com namorado ou sem. Espero que ninguém tenha se sentido amargurado por ver um casal de mãos dadas ou um homem comprando flores, espero que isso tenha sido banal ou bonito de ver.
Eu espero que tenha sido só mais um dia, ou um bom dia.

Eu espero que,
onde quer que você esteja,
quem quer que você seja,
onde quer que você se encaixe,
esteja bem.
Feliz.
Espero que tenha sido um dia engraçado, bonito, meio poético,
quente, rápido, azul, tranquilo.

Fique bem.

Feliz dia dos namorados.

40x10 Dando moral

Imagem: TingTing Huang

Sim.

Ele fica de pé na minha frente.
É você?

Eu tô sentada na minha mesa cativa, não pedi nem água pra beber porque não sei se consigo segurar alguma coisa no estômago além de borboletas.

Trouxe comigo esse livro que não é muito pretensioso, nem muito tosco, do Doctorow (ok, um pouco pretensioso), tô vestida de azul, olhando pela porta feito uma maluca, mas você nunca entra.

Entram esses dois caras e é claro que você não traria um amigo. Porque não. Certo? Traria? Eu não sei.

Mas eles se sentam juntos, falam sobre garotas, milhões de garotas de coração partido e eu tô bem feliz por não ser uma delas.

Acho que tô adiantada.
Olho meu relógio de bolso, e ele tiquetaqueia como quem diz "ele não vem", mas aí o sininho da porta faz barulho de novo e entra esse cara, esbaforido, eufórico, ele começa a contar mil coisas, pede uns doces, e eu acho que é você, mas ele é tão, eu não sei, tão
enfim, tem algo de errado e eu não sei bem o que é, então eu o deixo ir e me sinto muito estúpida por isso.

Aí entra esse cara e ele ri muito alto, ele é incrível, brilhante e eu realmente gosto de vê-lo aqui, mas é isso? É essa a sensação certa? Por que eu estou na dúvida se é? Não era pra eu saber de imediato, simplesmente me jogar de cabeça, ou não é assim que funciona? Já funcionou assim alguma vez ou eu é que tô tentando enfiar regras novas no jogo mais antigo do mundo?

Sei lá, só sei que ele também vai embora, mas eu já tô me acostumando a olhar as costas das pessoas.

Aí de novo, ele, mas a gente já passou por isso, não?
Já? Tem certeza? Porque pode ter esse pequeno detalhe, essa coisa que você não percebeu e que vai fazer toda a diferença, que vai ser exatamente o que falta pra funcionar.
- Me conta uma história
E outra
E outra.
Mas não é isso,
o que eu quero é outra coisa.

E eu realmente queria que fosse fácil de verdade.
Mas também prefiro que não seja.
Tiro o relógio do bolso, vejo que você tá atrasado,
mas não dá pra esperar, sabe?
Eu tô faminta.

Peço pizza e como,
acompanhada,
depois sozinha
e, se você correr, prometo guardar um pedaço pra você.

40x09 Better than hugs

Imagem: TingTing Huang

Não gosto de abraços,
nunca gostei.

Meu melhor amigo tem essa teoria de que pessoas precisam de um determinado número de abraços por dia.
Eu não acredito nela.

Abraços guardam duas sensações distintas,
grandiosas demais pra desperdiçar com gente que simplesmente está de passagem
abraços são sobre chegada, reencontro.
Abraços são sobre partida.

Eu poderia distribuir beijos na boca,
mas jamais conseguiria distribuir abraços.
Não gosto que me toquem.

Distribuo abraços ébrios,
abraços de cumprimento,
pequenas demonstrações de carinho
mas abraços,
ah, abraços
esses eu guardo pra momentos específicos

Abraços daqueles em que se poderia ficar pra sempre
daqueles que a gente dá sabendo que nunca mais vai dar de novo,
abraços doloridos
que deixam parte da gente na outra pessoa.

Esse texto nem era pra ser sobre isso,
mas escrever sobre abraços me lembrou desse abraço específico
que eu te dei, sabendo que seria o último,
tão intenso e breve que eu chorei, mesmo sem saber ao certo o porquê.

Esse abraço me trouxe aqui, anos depois.
Meu Deus, quanta coisa mudou naquele abraço,
quantas escolhas foram feitas,
quanta dor
por causa de um abraço.

Então, como eu poderia sair por aí abraçando
a torto e a direito
se tanta coisa pode mudar a partir de um gesto?

Entende, agora?
Eu não quero o seu abraço,
nem o contato com a sua pele,
eu não quero o seu cheiro,
ou o que você acha que um abraço deve conter,
eu não quero dizer adeus
eu não quero dizer olá.

Eu não preciso de abraços,
eu preciso de pessoas que fiquem.

Teu abraço talvez não melhore o meu dia (já aconteceu, é verdade, mas pode piorar. Também já aconteceu),
não vai me dar vontade de estar aqui,
definitivamente, não vai significar que tudo está perdoado,
nem mesmo me fazer acreditar que você gosta de mim.

Alguns gestos são melhores do que abraços,
dizem coisas que abraços nunca dirão (muito embora eles digam muito)
e eu percebi isso quando olhei para a menina que gritava ao meu lado na sexta,
pelo mesmo objetivo que eu.

A presença dela, a existência, sua vontade, seu grito
me fizeram mais acolhida do que qualquer abraço aleatório e constrangedor.
O fato de que ela ficou, sem saber quem eu era,
pra lutar por nós duas significou muito mais pra mim do que contato físico significa.

E as pessoas não compreendem ainda.
Eu mesma demorei a entender
que o amor está nas entrelinhas.

Amor está numa viagem de carro de 10 minutos,
nos seus resumos de anatomia,
mentiras contadas sem razão,
mensagens que chegam no meio da madrugada,
uma coleção de garrafas,
no gosto do chocolate branco,
garrafas de água,
feijão.

Você não precisa me tocar pra que eu saiba.

E, por favor, não me toque sem a minha permissão.
E, por favor, não tenha medo de me tocar.

É complicado.
Mas simples.

Você vai saber, vai entender
quando chegar a hora.

Mas, até lá,
apertemos as mãos.

40x08 Of other girls in different lights

Imagem: TingTing Huang

Gosto do escuro. O escuro na sua boca, o escuro da suas pupilas, o escuro dos cantos do seu corpo, nas notas da sua voz sussurrada e nos pigmentos da sua pele e pelos.

O tom violáceo da primeira luz da manhã que vejo de dentro do seu carro, hematomas e pequenos machucados de bater em portas, quinas, e sua língua roxa depois de beber suco de uva.

Gosto da luz das lâmpadas fluorescentes refletidas nas suas unhas, da luz e sombra das curvas do seu corpo.

Gosto das luzes que piscam quando você abre e fecha as mãos, as luzes no seu rosto, nos seus dedos, o gosto de luz na tua boca, joelhos e orelhas. A luz da tua voz

A sombra da tua ausência. A luz nas pontas dos teus dedos, no teu cheiro.
A escuridão das tuas mágoas, da parte do teu passado que desconheço.

Tem luz no calor do seu corpo, tem escuridão no aconchego do seu abraço, luz na textura da sua boca, luz nas conjunções, pronomes, no teu número, nas tuas vírgulas,
e tem escuridão na sua força, nos lugares onde o nós se esconde, onde o você e eu fica guardado.

Tem luz nas suas fotos infantis, na risada infantil que te vejo dar quando você se empolga, tem luz na maneira como você abre as portas, nos seus ossos.

Em tudo isso há sombra, ganhando espaço, ganhando voz, manchando nós dois.
Luz e escuridão se chocam, discutem, se abraçam, enquanto eu observo, assustada, maravilhada,
você me diz

- Acenda a luz. Eu quero ver a sua luz também.

Eu até tento, homem,
clic clac no interruptor,
clic clac,
mas a luz não acende
não tem luz.

Eu sou o que você vê.

40x07 Mojo

Imagem: TingTing Huang

Perdi.
Acabou.

Não consigo mais, aconteceu o que eu mais termia: perdi o jeito pra escrever, pra falar.

Começou com uma dissociação curta entre o meu pensar e o meu falar, parei de escrever, ficava cansada, parei de ver a poesia nas coisas, parei de rir.
Eu não sei rir.

Como posso fazer rir?

Eu sou incapaz de achar graça nisso, incapaz de qualquer coisa, fui carimbada com a incapacidade de fazer, de agir, tô com medo, apavorada de não saber mais fazer a única coisa que eu sei fazer.

E ninguém vê, ninguém percebe que eu não sou.
Eu não tô "não bem", eu não sou
Eu tô enlouquecendo, escrevendo furiosamente, um monte de bosta desconexa que não faz nenhum sentido, que eu não tô conseguindo fazer com que faça sentido.

Então é isso? Eu acordo um dia e acabou, simplesmente foi embora porque eu não fui boa e disciplinada o bastante, porque eu não soube usar direito?

Fico parada na frente do computador por horas, paralisada,
eu não consigo.
Acabou.

Sufoco um pouco e me dá vontade de chorar, mas eu não consigo.
Tô muito assustada, muito desesperada até pra isso.
Talvez até um pouco conformada, como se eu sempre tivesse sabido que eu não era boa o bastante. É claro que eu não era.

Certo?

- É isso o que você acha? - Felipe me pergunta, de volta do mundo dos mortos.
Eu não sei.
- Você sabe. Tem muitas coisas acontecendo. Muitas coisas te sufocando. Mas eu sei o que dá pra fazer com essas coisas. Dá pra transformar em palavras, de todos os tipos e tamanhos. Dá pra transformar em mim, me trazer de volta, não me deixe morrer de verdade.

Acendo as luzes, pego papel e caneta.
Eu tô escrevendo pra salvar minha vida, porque é tudo o que eu sei fazer,
eu tô escrevendo pra trazê-lo de volta à vida, de uma vez por todas,
eu tô escrevendo, mesmo que ninguém leia, mesmo que só uma pessoa leia, tô escrevendo pra fazer a diferença na vida de uma só pessoa que seja.
Tô escrevendo pra me sentar no metrô na frente de uma garota lendo algo com meu nome na capa.
Eu tô escrevendo porque sinto as histórias escorrerem pelos meus dedos, porque não consigo me conter, porque não consigo mais segurar os gritos dentro da minha cabeça.

Talvez eu não seja mesmo boa,
talvez eu tenha mesmo perdido meu mojo,
mas eu não vou parar.

Eu vou continuar escrevendo, dia e noite, em cadernos, guardanapos, atrás das provas, durante as aulas, eu vou contar as histórias que coleciono, eu vou escrever nas paredes, nas roupas, até que não haja mais nada pra escrever.

Por mim,
por você,
enquanto eu conseguir.

40x06 Nox

Imagem: TingTing Huang

Apagam-se as luzes.
Não durmo.

É maio, como poderia?

Existe fome no mundo, pobreza, homens que matam mulheres, dor e futuros incertos, oportunidades perdidas, um mundo de possibilidades que me mantêm alerta, pronta pra luta.

Farejo o ar, sinto o cheiro de álcool e pílulas, sinto o cheiro de sol, cabelos queimados, o cheiro de maio, de sangue quente, recém saído do corpo, a molhar a cama e o piso de azulejos brancos.

É maio, amo quem não deveria amar, odeio quem não deveria odiar.

Afio facas de trinchar, espero a guerra, eu não quero brigar e meu corpo não aguenta mais esperar, tenso, pela batalha. Meu sangue pede o seu sangue, minha lâmina pede a sua pele, meus dedos se cortam no aço fino dos segredos que eu escondo.

É maio.

Mostro as pernas recém-cortadas, frescas, escondo as marcas sob tão pouca roupa que elas se tornam invisíveis, que eu me torno invisível. As pessoas não querem ver o que as pessoas não querem ver.

Apago as luzes de Maio e espero, no escuro, as feridas escorrendo ácido, queimando a pele no trajeto até o chão.

Apago as luzes de maio,
apago as luzes de maio
e espero que as luzes de junho se acendam rápido, antes que algo pior aconteça.

Nox.

Lumos.

40x05 Amok

Imagem: TingTing Huang

Acuados, perseguidos, famintos, pressionados,
corremos.

Enlouquecidos, matamos às cegas, derramamos sangue inocente, bebemos à saúde de velhos demônios há muito guardados em baús.

Rasgamos o peito de amigos e inimigos, irmãos e filhos, sem pudor algum, aleatoriamente.

É tarde,
corremos, armados até os dentes, insatisfeitos e assustados, mortos de medo da morte e da vida.

Uma garota de vermelho me arranca um olho pra que eu nunca mais durma e eu te rasgo no meio, eu te rasgo em mil pedaços e tomo banho no seu sangue com cheiro de limão.

Sangro, sangue verde, ácido, e pulo obstáculos, urro de dor e de vontade, sede de sangue, medo do frio, instinto puro e febril, pavor de ficar só, teu nome me cega e eu percebo que te esqueci por uma hora inteira, um dia inteiro em que estive correndo e calando os gritos das pessoas com murros e mordidas, com meu sangue.

Eu me sento, ao final do dia, ofegante, suja de sangue azul e vermelho escuro, roxo, e assisto ao nascer do sol, outro sol,
só mais um sol,
sob a montanha de corpos de pessoas que eu não me lembro de ter ferido.

40x04 Vaca Nova

Imagem: TingTing Huang

- Oi
- Oi

Alto e claro, demonstro um desinteresse que não sinto, mesclado com uma gotinha só do interesse que sinto de verdade, 1 gotinha por minuto, diluída em um mar de desinteresse falso.

Minhas pernas viram geléia quando você me abraça.
Me pergunta se tô bem, eu não sei o que responder, digo que sim, e você.

Aqui é o mundo real, eu sinto medo do que vem depois, mas conto com outros subterfúgios, meu corpo, meu cheiro, a proximidade da tua boca do meu ouvido.

Sinto falta da sua boca e dói de leve cada vez que você se afasta.
Você diz que a gente se vê, eu congelo por dentro, mas tento bancar a desinteressada, digo "ok".
Mas não é ok.

Me dá a mão, vamos sair daqui e conversar em um lugar onde eu posso te ouvir falar da vida, me explica o que houve, me beija.
Mas não posso demonstrar isso, posso?
Não, eu fico no "ok", vou fingir não te procurar com os olhos, fingir não estar à espera, não estou, não quero estar.

Você vai se afastando devagarinho e eu podia dar de ombros, eu podia deixar pra lá. Mas eu me cansei de jogos, dicas, testes, teorias, quero um amor sem regras, erro e acerto, quero menos mentiras, ligar no dia seguinte sem que pareça que eu sou uma psicopata, pra dizer que gostei.

Faço menção de dizer a você o que tá entalado aqui dentro, homem, eu ando na sua direção, 1,2,3 passos e, a cada um deles, a coragem diminui, duvido do que sinto, do que você sente, será que vale a pena, me sinto meio boba e, quando finalmente me aproximo,

você sorri,
eu sorrio
e desvio meu caminho para a direção do banheiro mais próximo,
onde vou lavar as mãos de todas essas ideias terríveis
e fingir que nada aconteceu.