40x17 Throwaway

Imagem: TingTing Huang

"Isso não é real. Nada disso é real. Você não é real. Eu não sou"

Estamos sentados, esperando, no centro do mundo.
O vento sopra as cortinas, fresco, cortando o dia quente e o silêncio da manhã, o sol ilumina o quarto apenas o bastante pra que possamos olhar um pro outro.
Estamos assustados, mas eu tô feliz aqui.
Vai acabar logo.
Estou ouvindo.
Os sons de risada, as vozes das pessoas.
Ele aperta a minha mão.
Tenho 36 anos.


Acordei cedo e fiz o café.
Era domingo.
Eu olhei para o jardim e pensei que, talvez, devesse aprender jardinagem.
Plantar flores e algumas ervas. Tomates. Definitivamente, tomates.
Ele poderia me ajudar, quando estivesse melhor.
Suspirei.
Provavelmente, seria mais um dos nossos projetos inacabados.

Sacudi a cabeça.
Eu deveria estar escrevendo.
Mas o dia estava tão bonito, parecia até um dia de mentira.
Mentira.
Todos aqueles dias eram de mentira, ele dizia.

Subi as escadas e fui até o quarto do bebê.
Ele dormia chupando o dedo, inocente, não sabia de nada sobre o que acontecia ao redor.
Movia as pernas como se sonhasse.
Com outras vidas, talvez.

Fui para o nosso quarto e as janelas já estavam abertas.
Você estava lá. Acordado, esperando, sempre esperando.
Sentado, quieto, magro, sujo, barbudo, despenteado, assustando nossos amigos e familiares, me assustando.
Você me olhou quando entrei e vi que estava envergonhado.
Eu te peguei no pulo, de novo, e nós dois sabemos, sem precisar dizer, que você está torcendo pra que tudo acabe.
- Você tomou seus remédios?
Você sacode a cabeça, não tomou. Não tem tomado.
- Você não vai tomar?
De novo, você sacode a cabeça. Suspiro e me sento na cama, de costas pra você.
- Você não pode tentar de novo?
- Tentar?
- Tentar. Tentar ser feliz. Éramos felizes. Ainda podemos ser.
- Não consigo. Não quando eu sei que nada disso é real, não quando eu sei que vai acabar a qualquer momento.
- Talvez não acabe. Talvez só acabe quando --
Desisto.
Já tivemos essa conversa.
Já argumentei tantas vezes. Sobre vida e morte.
Além disso, o médico já me disse para parar de dizer a palavra morte. Risco de suicídio, ele dissera. E, mesmo assim, contra as ordens médicas, contra toda a lógica, eu te trouxera pra casa, onde você podia delirar a vontade.

Olhei para o seu rosto e você continuava em silêncio, observando o sapato.
O maldito sapato.
Olhei pra ele também, considerando finalmente te internar, jogar aquela coisa maldita fora,
aí percebi que algo estava errado.
Algo estava muito errado.
Eu olhei à minha volta, meu estômago afundou, eu senti algo, um pressentimento, um foi como se estivesse sendo sugada pra fora de casa, como se minha vida estivesse desaparecendo aos poucos.
Eu pude ouvir um barulho desconhecido e familiar de pássaros, panelas, carros. Cheiro de canela. O barulho de portas abrindo e fechando, passos na escada.

Tentei me recuperar, mas a sensação não passava.
Não era real.
"Existe outro lugar, além do aqui e agora", você dissera.
Olhei pra você, assustada, e você me olhava, ansioso.

- O que acontece agora?
- Esperamos.

Eu me sentei ao seu lado, apertei sua mão e ficamos juntos, olhando.

Em algum momento, o bebê acordou, chorando,
e nenhum de nós se mexeu.
Ele chorou,
chorou,
chorou

e então, afinal,
silêncio.

Esperamos.

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