39x13 Esquecer de lembrar

Imagem: TingTing Huang

Estava em casa, deitada e despertei.
Despertei, mas não estive dormindo.
Eu simplesmente estive.

Eu quis pão, e a memória do gosto de pão invadiu meu corpo, acordou meu eu de 8 anos: me lembrei do meu nome.

Lembrei-me do rosto da minha mãe e da risada da vizinha da minha falecida avó.

Eu me sentei na cama, lentamente, com muita dor, arranquei tudo o que me prendia a um mundo de esquecimento, meu corpo de novo forte, mesmo que enrugado e seco, murcho.

Quis escrever, apanhei lápis e papel no criado mundo, e as palavras me vieram, mas a mão não soube traduzí-las.
Tremi.
Rasguei o papel, joguei o lápis no chão, eu tive uma ideia, uma ideia que ia mudar o mundo, eu sabia o significado da vida, eu me lembrei,
eu me lembrei de como se construía um castelo de areia, a cor dos olhos do meu melhor amigo de infância, eu me lembrei do gosto da boca do pai dos meus filhos no nosso terceiro encontro, a minha poesia favorita e como engolir.

Eu me lembrei, e todo o meu corpo despertou num dia estranho, numa casa estranha, eu senti um medo quase paralisante de me olhar no espelho e descobrir que o pior havia acontecido.
Descobrir que eu tinha me esquecido.

Eu me levantei da cama aos poucos, eu fiz uma dança rígida, procurei uma roupa, eu estava viva, eu me lembrei, eu me lembrei, dancei e gritei ao som da música que o rubel cantou em um show que deve ter acontecido há uns 50 anos, eu era a moça que grita, eu queria amar de novo. Eu quero.

Ouvi passos lá fora, uma porta se abriu lá longe e eu sabia que era você, eu sabia porque eu sabia que só podíamos ter envelhecido juntos, mesmo que eu não conseguisse me lembrar dos detalhes, eu sabia, e eu queria te dizer que eu me lembrei, eu me lembrei de te amar e da nossa primeira dança lenta, do seu sorriso e do seu cheiro.

Fui até a porta pra te encontrar, mas minhas pernas fraquejaram e eu me esqueci como se andava, caí no chão, esqueci, eu esqueci como engolir a saliva e babei, não sabia mais abrir a boca, mas eu sabia escrever.
Eu sabia escrever, mesmo trêmula, eu sabia, eu precisava te dizer,
eu precisava que você soubesse.

Me arrastei, desesperada, até o papel e a caneta, mas, a dois passos curtos, emus braços e mãos se esqueceram o que era movimento, o corpo me traiu, virou um peso morto pra minha mente leve e eu chorei, jogada no chão, toda torta, fiz ruídos desconexos de palavras que minha mente conhecia, mas minha boca não sabia dizer.

E foi aí que você entrou, um minuto atrasado, trazendo seu cheiro, sua voz e uma juventude que eu não esperava. Era você e não era, era eu também, nos olhos de um estranho completo, tão familiar que eu podia jurar que era parte de mim.
Não era você,
era nós, a personificação de nós dois.

- Mãe?! O que aconteceu?

Eu tentei responder, eu tentei perguntar o nome dele, eu precisava saber, eu queria saber o que houve com você, o que houve comigo, mas ele não me respondeu, me pegou no colo, colocou na cama e me limpou, me cobriu.

Tentei chamar a atenção dele, eu queria saber, "eu estou aqui, eu me lembro", tentei dizer.
Mas o corpo, implacável, apagou as luzes aos pouquinhos,
apagou os primeiros anos, os meses, semanas, dias, amores, mágoas, meu primeiro beijo, citações, seu rosto. Apagou o seu rosto.
E, só então, apagou o meu, minha personalidade rude, minha preferência por Hershey's de amendoim e cajá-manga,
apagou tudo, tudo
de forma tão brutalmente eficaz

que eu me esqueci até
como é que se lembra.

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