37x08 Filhas de Ananse

Imagem: TingTing Huang

Sinto um palpitar diferente no peito, cheiro de mato e animais molhados.
- Papai está vindo, digo a ela.
Ela me olha, inexpressiva, pega seu pão e seu café e vai se trancar no quarto.

Uma aranha entra pela janela, sobre na pia, cria uma teia bonita, bem rápido, e fica se balançando nela, me hipnotizando.
Alguém bate à porta.
Não me levanto da mesa para abrir. Batem novamente.
Eu continuo sentada, comendo.
- Não vai abrir? - diz a voz de meu pai, atrás de mim.
Levanto da cadeira e o abraço. Ele cheira a sol, terra seca, resina, mato, talco.
- Senti sua falta.
Ele sorri e me dá a mão, que eu beijo "bença, pai", e ele sorri mais, satisfeito, e me abençoa. E eu me sinto abençoada, sinto o cheiro da terra molhada do lugar onde nasci, e o gosto das palavras do povo.

Pego um prato no armário, uma xícara lascada, mas bonita, e me viro pra entregar pra ele. Mas ele já está comendo, croissants e suco de laranja.
- Trouxe da viagem, explica.
Comemos.
Ele seu croissant, eu meu pão.
Meu pai é a única pessoa que gosto de olhar enquanto come. Tudo nele conta ou remonta a uma história.
Laranjas, seu cabelo rareando, suas camisas, os fios brancos de sua barba, seus jeans antiquados, seu chapéu - porque, sim, é claro que ele tem um chapéu -, seus olhos castanhos que já viram o mundo inteiro, ele já foi todas as coisas do mundo.
Ele já foi até meu pai, e ainda é, em dias como esse.

- Pai?
- Hmm?
- Tá tudo bem?
- Sim.
E ele sorri e me deixa entrever por baixo da pele, das histórias, seus muitos olhos, me olhando, brilhando, feito um céu estrelado. Meu pai.
Ele termina de comer, limpa a boca e o bigode sujos, pega a minha mão e a beija.
Levanta-se, pega o chapéu, aponta na direção da porta do quarto da minha irmã e eu sacudo a cabeça
"Ainda não"
Ele dá de ombros, sorri, pisca pra mim e, sem dizer adeus, desaparece, mais uma vez.

Eu o amo, meu pai.
Mas eu não posso deixar de me perguntar, às vezes, em dias como esse,
como seria ter um pai normal, sem tantas histórias guardadas num baú, como seria um pai sem tantos inimigos, sem tantas confusões, que voltasse pra casa todos os dias sem falta
Um pai mais humano, menos Ananse.

Penso nisso, retiro a louça da mesa e, por impulso, bebo o resto de suco no copo dele.
E o gosto me atinge feito uma carícia de um amante, faz com que meu coração dispare e me acalma, ao mesmo tempo.
Divino.
Sento na cadeira, saboreando o gosto na boca e, percebo
ter um pai normal,
bom,

talvez não fosse tão bom.

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